As Cem Melhores Historias Da Mitologia escrita por Allan
Juno, esposa de Júpiter, descobriu um dia que estava grávida.
— Meu primeiro filho! — dizia ela, orgulhosa, a todo instante.
O Olimpo inteiro aguardava com ansiedade irreprimível o nascimento do primogênito de
Júpiter. Que tal seria? Teria a audácia viril do pai ou puxaria à beleza austera da mãe? E que
inclinações traria do ventre? O gosto pelas batalhas? O pendor bucólico dos pastores? Ou, quem
sabe, o refinado talento do artista?
Todas as indagações ficaram suspensas nas línguas, pois Juno estava agora prestes a parir
o bebê tão esperado.
De repente um grito atroou pelos corredores do palácio de Júpiter.
— Não, não... Meu filho, isto?!
Tais foram as primeiras palavras ditas pela mãe, ao receber nos braços a criança recémnascida:
um bebê peludo, de cor escura, como que encardido ou chamuscado, e que produzia
feições horríveis quando chorava — ou estaria, o pobre, a sorrir?
Júpiter, constrangido, afastara-se da deprimente cena — o primeiro drama doméstico e
familiar de uma série que teria de enfrentar. Juno, a seu turno, com a cabeça voltada em direção
oposta ao berço onde estava o bebê, roía as unhas.
"Eu, Juno, rainha do céu, mãe de um demônio", pensava.
O choro horrendo do bebê não cessava; não era, nem de longe, aquele choro forte e
melódico que se esperaria do filho do senhor do Universo. Não, aquilo não era um choro, mas
um guincho rouco e desprovido de qualquer encanto ou harmonia.
Juno, envergonhada daquele guincho humilhante, tapava os ouvidos, pressionando com
toda a força a polpa dos dedos roídos sobre a entrada de suas divinas orelhas. Mas o ronco, o
guincho, o chiar, o estrídulo, o relincho — o que quer que fosse aquilo — não cessava nunca.
— Basta, criatura! — disse Juno, pondo-se em pé com decisão. — Deve ter havido,
afinal, algum engano. Com este corpo de tritão, deve ser filho de Netuno, rei dos mares, e não de
Júpiter celestial. Volte, pois, para o seu lar.
Juno, cega de desgosto, ergue a criança do berço. Num esforço supremo o garoto ainda
tenta um último estratagema: dar à mãe um sorriso terno e alegre.
— Olha a boca esgarçada! Vai chorar de novo! — diz Juno, cega de ódio. Então, após
rodopiar por duas vezes no ar a infeliz criança, arremessa-a do alto do Olimpo. Um grito
medonho desce das alturas, e durante o dia e a noite aquela voz ecoa por mares e continentes. O
dia amanhece outra vez, e o menino peludo, feio e imensamente infeliz ainda voa, rodopiando
pelos ares. Seu destino parece ser o revolto mar que se abre lá embaixo, como uma goela azul e
escancarada, pronto para tragá-lo em suas ignotas profundezas.
"Escondido bem no fundo do oceano, ninguém jamais o descobrirá!", pensara a deusa,
um instante antes de arremessá-lo.
Duas massas líquidas e azuis, separadas como dois imensos lábios salgados, recebem,
então, o bebê, para se fechar logo em seguida com o fragor de duas ondas gigantescas que se
chocam, borrifando as estrelas lá no alto com um turbilhão de espuma.
— Que espantoso ruído foi esse? — pergunta Eurínome, filha de Tétis e do Oceano, à
sua mãe.
— Algo caiu do céu direto em nossos domínios — exclama Tétis, a mais bela das filhas
de Nereu e futura mãe do irado Aquiles.
— Vamos ver o que é! — grita Eurínome, seguida de imediato pela mãe.
No fundo do oceano, engolido pelas águas, está o pequeno e peludo garoto, a se debater
convulsamente entre as funestas ondas. Tétis agarra-o imediatamente e sobe com ele até a
superfície:
— Levemos o pobrezinho para terra.
Deste modo chegam os três à ilha de Lemnos. Após cuspir o resto da água que agoniava
seus pequenos pulmões, o pequeno ser pedala seus pezinhos e faz uma careta de choro para
aquela estranha que o tem em seus braços.
— Veja, que lindo sorriso! — diz Tétis, encantada.
Ao escutar essas palavras o serzinho se anima e remete agora, no melhor de seus
pequenos esforços, aquilo que pretende ser o mais grato dos seus risos.
— Veja, Eurínome, ele sorri de novo! — exclama Tétis.
Envolto em um cobertor, o garoto é levado para uma profunda e calorosa caverna.
— Aqui ele estará aquecido, o pobrezinho! — diz Eurínome, beijando a testa cabeluda do
pequeno deus, que conhece pela primeira vez o significado de um gesto chamado carícia e de um
sentimento chamado afeto.
As duas estão preparando a nova morada para o bebê, quando Tétis, voltando-se para
onde o bebê estava, percebe que ele sumiu.
— Onde se meteu este menino? — perguntam-se as duas nereidas.
O garoto, engatinhando, metera-se numa escura furna. Atraído pelo fogo da lava que
agitava-se nas profundezas da terra, lá vai ele, destemido, descobrir o que é aquilo. Será um
pedacinho desprendido do sol, que escorreu do céu para ir meter-se dentro da terra?
Um grito rouco atrai a atenção de Tétis e de sua filha.
— Ouça, ele deve estar nas grotas!
Elas o encontram sentado, com um pedaço de ferro metido entre os dedinhos
chamuscados; um trejeito de dor denuncia que ele e o Fogo já foram apresentados.
— Veja, ele sorri mais uma vez! — diz Tétis, encantada.
Entretanto, o cumprimento do Fogo, seu novo amigo, não foi dos mais delicados. Mas
este garoto já descobriu que o melhor é ir logo descobrindo o que o mundo tem de mau e
perigoso. Afinal, esta lição ele aprendeu do berço.
— Já que gosta tanto de vulcões, vamos chamá-lo de Vulcano — diz Tétis a Eurínome.
— Excelente nome! — brada a outra. — Vulcano. Vulcano. Vulcano.
O garoto volta-se misteriosamente para as duas. Nos seus dedinhos chamuscados brilham
duas pequenas coisinhas, delicadas e douradas.
— O que você tem aí, meu moleque?
Com um brilho radiante nos olhos, o pequeno Vulcano estende às suas duas mães
adotivas dois pares de maravilhosos brincos, que ele mesmo confeccionara.
— Meu Zeus! — diz Tétis, com um riso cristalino que ecoa pelas paredes da profunda
gruta. — O danadinho é um artista!
Sim, Vulcano, acossado desde o primeiro instante pelo infortúnio, é alma forte e lúcida,
com discernimento bastante para fazer mudar em beleza a dor que o destino lhe remete.
Assim cresce o pequeno, metido em sua forja nas profundezas da terra, confeccionando
as mais belas peças de ferro, bronze e metais preciosos de todo tipo.
Aos nove anos já é artista bastante para fazer uma peça de beleza estonteante.
— O que é isto, Vulcano querido? — pergunta-lhe Tétis, sua mãe adotiva.
— Um presente para Juno, minha mãe! — exclama o deus, já um esperto adolescente.
Trata-se de um magnífico trono dourado, todo cinzelado e reluzente. No mesmo dia se
apresenta no Olimpo, carregando seu maravilhoso presente.
— Quem e você, feia criatura? — pergunta-lhe uma das Horas, porteiras do céu.
— O filho da rainha do céu — responde Vulcano. — Queira abrir os alvos portões,
subalterna.
Vulcano, como se vê, já aprendeu perfeitamente a se defender. Quando o jovem feio,
coxo e peludo apresenta-se nos salões do Olimpo, é recebido por um coro celestial de risos.
— Isto aí, filho de Júpiter e de Juno? — exclamam, incrédulos, os habitantes da morada
dos deuses.
Vulcano retira, então, o veludo que envolve o magnífico trono dourado.
— Aqui está, minha mãe, o presente com o qual pretendo ganhar a sua afeição!
Juno, que a princípio envergonhara-se de tal filho, agora o vê com outros olhos. Afinal, o
brilho que o trono dourado despede reflete-se um pouco sobre o seu corpo disforme, e um
monstro pintado a ouro já é, ao menos, pintado a ouro.
Juno, lavada em orgulho, senta-se, então, sobre o trono maravilhoso. Um coro
estrondoso de palmas ensurdece o Universo. Vulcano, beijando a mão de sua mãe, retira-se,
então, com um largo e dócil sorriso, como faria o mais vil de seus lacaios. "Não é mau garoto,
afinal!", pensa Juno. "Mas por que insiste em fazer cara de choro diante de minha presença?"
Durante o dia inteiro a rainha do céu despachou de seu novo trono.
— Vou comer aqui mesmo, em meu maravilhoso trono, a ambrosia e o néctar divinos —
diz ela a Hebe, a sua copeira.
Somente no fim do dia, quando seu traseiro divino começa a tomar um formato indigno
da formosura curvilínea de uma deusa, é que ela pensa em erguer-se, afinal, de seu trono
faiscante.
— Mas o quê? Como? O que se passa com minhas nádegas celestiais? -pergunta-se, ao
tentar erguer-se sem sucesso. — Hebe, Hebe, corra já aqui!
A afoita Hebe surge correndo.
— Hebe, Júpiter que me perdoe, mas não consigo levantar-me de meu maravilhoso
trono!
— Ah, Juno suprema, isto é compreensível! — diz Hebe, tentando ajudá-la com a maior
dignidade possível. — Afinal, você não desgrudou vossas nádegas sublimes um instante do
assento de vosso trono maravilhoso.
— Cale a boca e me ajude! — diz Juno, com o rosto escarlate do esforço.
Ajudantes são chamados. Gemidos de dor percorrem os corredores enquanto tentam
descolar a rainha do céu de seu trono maravilhoso, dourado e magnificamente cinzelado.
— Que lindas filigranas há aqui na base, deusa suprema! — diz um ferreiro, convocado às
pressas para desentalar a rainha do céu da prisão de seu sublime trono.
— Cale a boca e me tire daqui, maldito idiota, ou vou mandar fazer lindas filigranas você
sabe onde! — grita Juno, rainha do céu, começando a perder a realeza moral.
Ao cabo, nenhum dos deuses consegue libertar Juno.
— Chamem o desgraçado — diz, afinal, Juno, rendida. Vulcano volta ao palácio de sua
mãe.
— Vamos, filho ingrato, diga o que quer para me libertar de tamanho opróbrio! — diz
ela, fuzilando o filho com o olhar.
— Quero apenas ser recebido em minha casa com respeito e poder transitar livremente
pelo Olimpo, como deus e filho da maior das deusas — responde Vulcano, serenamente.
— Está bem, agora liberte-me — diz Juno, mais aliviada.
— Ah! — diz Vulcano, como quem lembra de algo muito importante. — Quero também
tomar por esposa a maravilhosa Vênus, pois amo-a perdidamente.
— Vênus... com você? — diz Juno, incrédula.
— Sim, bem sei que sou feio, mas conheço algo das mulheres para saber que não
desprezam, também, a segurança— responde Vulcano, deus sapientíssimo. — E com minha forja
possa sustentá-la e lhe dar todo o luxo e riqueza que sua beleza merece.
Vênus é chamada e, diante de proposta tão vantajosa, aceita imediatamente. Vulcano
toma suas delicadas mãos e deposita nelas o beijo de seus rudes lábios, e remete à mais bela das
deusas o seu melhor sorriso. "Ele me ama mesmo", pensa Vênus, "pois chora, diante de mim, de
felicidade!"
Assim Vulcano e sua mãe Juno fizeram as pazes, tornando-se o deus artífice amado e
respeitado em todo o Olimpo.
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