Obducto escrita por Letícia Silveira


Capítulo 1
Secessão


Notas iniciais do capítulo

Olá!
Bem, escrevi essa one-shot pensando apenas no concurso que o Nyah divulgou (por isso tem poucas caracteres, tinha um limite). Porém, não consegui adaptá-la ao estilo de contos e, quando o fiz, não gostei. Deixá-la sem o final era a mesma coisa que não construir uma crítica social.
Aliás, eu também não tinha 03894238492348 reais para pagar, então não queria me comprometer.
Obrigada - MESMO - por ler.
Beijos e fique com a paz...



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Não, eles não eram uma família comum. Mesmo reunidos a uma mesa estreita de jantar, os quatro integrantes daquele almoço não se comunicavam. Palavras não expressavam o ódio crescente em seus respectivos peitos, ou a raiva explícita em suas expressões.

O pai de família, que deveria ser o exemplo masculino para os filhos, encontrava-se, mais uma vez, embriagado; resmungando algo inteligível para os demais.

A mulher, que servia o prato do marido, curvando-se como acostumara-se com o tempo, balbuciava as últimas notícias sobre o recente acidente aéreo ocorrido na região Sul do país.

O filho mais novo lia distraidamente um livro, cansado de ouvir os resmungos de sua mãe por ler em refeições; por mais que ela reforçasse o dito toda vez que o visse relendo os Contos Gauchescos, épica obra de Simões Lopes Neto.

A filha mais velha encontrava-se curvada sobre a sua cadeira, comendo nervosamente a sua comida. Era sempre assim: a mulher comia o mais apressadamente que conseguia e direcionava-se ao quarto, aonde trancava-se, em busca de não ceder às mais diversas persuasões de seu pai. Não que ela gostasse daquilo; pelo contrário, repudiava-o por isso e odiá-lo-ia para o resto de sua vida. A mãe não se manifestava quanto a isso: a força do marido era o triplo da sua, e denúncias à polícia apenas aumentariam a sua fúria. Além disso, o homem da família tinha contatos muito importantes no interior do estado riograndense; aonde viviam. Não adiantaria desacatá-lo.

– Cale a boca, mulher! – Bradou o homem desinteressado em ouvir os murmúrios de sua mulher, arrastando a voz para pronunciar as míseras palavras.

Ela calou-se imediatamente, sem coragem de fitar o rapaz com quem casara-se. Ele não era como antigamente, como o jovem que ela escolhera para juntar-se em matrimônio. Ao contrário de suas amigas que se viram obrigadas a casar com grandes fazendeiros mais velhos, por obrigação de seus pais, ela escolhera o seu marido. Ela criara o seu próprio destino.

Suspirou involuntariamente. Era tão comum lembrar-se de seu namoro quando jovem com o seu amado. Agora, contudo, encontrava-se presa em um pesadelo construído pelas suas próprias atitudes. Iludira-se com o doce ensejo de criar uma família ao lado de homem que julgava ser honesto. Namorara com ele por um ano apenas, sobressaltando-se ao casar-se tão nova. Não, não devia tê-lo feito. Deveria ter esperado até estar madura, casar com mais de dezoito anos (e não com dezesseis, como fizera-o) e aprender sobre as verdadeiras características de seu "amado". O desconhecido que se encontrava sentado à mesa não poderia ser julgado como "amado" (ele não merecia tal reconhecimento).

– Mamãe, por que não fez arroz hoje? – Perguntou o menino, confuso. O prato tão tipicamente brasileiro era uma das especiarias de sua mãe.

Ela sorriu, maravilhada por ter um motivo para continuar a viver. Por mais que não pudesse fazer nada contra o abuso à sua filha, amava a sua prole incondicionalmente. Era indescritível o sentimento que a preenchia quando observava o crescer de um sorriso em um de seus rostos. Recentemente, todavia, a manifestação da felicidade não emoldurava o rosto de sua filha. Rápida e repentinamente, assim como surgira, o sorriso da mãe desfizera-se. Corroía-a saber que era inútil na questão de reverter o quadro de infelicidade de sua filha. Concentrou-se, porém, em responder ao filho mais novo, que ainda a observava:

– Estamos ficando sem arroz. A seca realmente devastou a nossa plantação. Talvez devêssemos...

– Não compraremos dos agricultores de Arroio Grande! – Interrompeu o homem, recuperando a lucidez por alguns minutos. Tratando-se de orgulho, ele era capaz de morrer de fome. Algo sagrado para ele, ao invés de ser a saúde de seus filhos ou o seu bem estar, era a sua reputação.

A mulher virou-se de costas, fingindo agarrar a jarra de água; para, na verdade, revirar os olhos. Acostumara-se, afinal, com as contínuas negações do marido. Caso não fosse do modo visto corretamente pela sociedade agrária, não poderiam fazê-lo. Insuportavelmente orgulhoso.

– Mas, papai, iremos morrer sem comida... Eu já vi isso acontecer na África: primeiro, ficamos magrinhos; depois, adoecemos e, logo, morremos. Eu não quero isso para mim, para nós.

Seus olhinhos umedeceram, esbranquiçando com as lágrimas. As imagens africanas apavoravam-no enquanto ele pensava no pior que poderia vir a acontecer.

– Calma, filho! Nós reverteremos essa situação. – Murmurou, com condolência, a mãe; referindo-se a todo o quadro de sua família enquanto afagando as suaves e negras madeixas do filho.

Não acontecera isso, porém. A menina mais velha fugira de casa após mais uma noite sendo violentada pelo seu pai. Com a ajuda de parentes da capital Porto Alegre, viajou com tal rumo, buscando apoio financeiro.

O filho mais novo sofrera as consequências da seca da estiagem: como dissera, falecera através das etapas que, antes, pareciam de ser apenas boatos.

O marido fora preso por um curto tempo por agredir uma prostituta em um bar, em uma de sua viagens.

A mãe da família, que, enfim, encontrava-se a sós, apenas observava a paisagem; embalando-se na velha cadeira de madeira de balanço, que rangia ao movimentar-se. Sua vida apenas era um espelho de suas atitudes, como um rio cristalino. Ela subestimara-o, não prevendo a sua profundidade e mergulhando em sua imensidão, acabando por afogar-se e acordar de seu ludíbrio.

Não deveria ter precipitado-se tanto em sua juventude, ou deixado-se levar pelos encantos másculos de seu marido. Sua família poderia estar destruída, mas ela ainda conseguiria reerguer-se como fizera inúmeras vezes na vida e como faria novamente.


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Notas finais do capítulo

Triste, não? Infelizmente, a realidade está à nossa frente, apenas negamo-nos a vê-la.
Espero que deixem um recadinho curto sobre o que acharam e em que preciso melhorar.
Beijos e muito obrigada por ter lido esta triste história.



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