Chizuru escrita por sorvetii_x3


Capítulo 1
Oneshot




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A caixinha de lembranças sempre amanhecia aberta, e era seu dever voltar a fechá-la quando abandonasse o mundo de seus pesadelos e fosse para o mundo real, mais muitas vezes não tinha forças para fazer isso.


                  ...                                                                                        ...


O dia amanheceu nublado, as nuvens eram completamente brancas e fofas, dando a impressão do céu estar coberto de algodão doce. Os olhos castanhos passearam pelo cômodo escuro sem interesse, não havia dormido bem, tivera pesadelos, aqueles mesmos pesadelos que perseguiam-na há meses. Já devia ter se acostumado com eles, já devia ter se acostumado a ver todas as noites a única pessoa no mundo que não queria mais ver, a relembrar aqueles olhos tão únicos que haviam ferido-a tão fundo, que haviam feito sangrar até não sentir mais as pontas dos dedos. Mas não havia se acostumado.

Mas era esperado que naquela noite aqueles pesadelos fossem mais fortes, afinal, no dia anterior havia brigado com quem menos queria por telefone, por motivos sem importância, e no fim havia perdidos uma das três peças que constituíam sua vida, mas agora não podia fazer mais nada. Era apenas aceitar, e infelizmente continuar. 

Sentou-se na cama fofinha, suas costas doíam e a cabeça estava absurdamente pesada, além de saber que estava com olheiras que vinham até metade das bochechas, antes mesmo de olhar no espelho. Após mais alguns segundos com os pensamentos perdidos no ar decidiu se levantar e começar a se arrumar, afinal, não gostava de se atrasar, nunca gostara.

Arrastou os pés pelo chão frio do corredor, logo depois de entrar no banheiro já estava se despindo para tomar banho. Seus movimentos eram lentos, quase letárgicos, o que fez com que demorasse um pouco mais do que o normal somente para se despir e entrar na água. Ah, a água...Teve que fechar os olhos com o contato acolhedor da água morna com a pele, acariciando-a, fazendo com que desejasse apenas passar o resto de sua vida ali, imóvel, apenas aproveitando mais daquela sensação maravilhosa. Mas como a vida era injusta, ela não podia fazer aquilo.

Abandonou o conforto daquele banho e vestiu o uniforme da escola, apenas passou o pente nos cabelos para ajeitá-lo um pouco, finalmente indo para o quarto pra pegar a mochila.  Voltando de lá olhou o relógio, ainda estava um pouco cedo, mais não tinha nada mais a fazer em casa, e também não queria comer, apesar de seu estômago parecer estar se rasgando, e se demorasse mais sua mãe provavelmente iria acordar e obrigá-la a comer algo.

Quando abriu a porta da sala a primeira coisa que fez foi olhar para o céu, um sorriso triste moldou os lábios pálidos. É, o tempo estava nublado, a tarde provavelmente não seria muito agradável. Sempre se sentia melancólica quando o tempo estava assim, por mais que não gostasse de calor, a falta do sol parecia afetá-la de algum modo. Suspirou, desviando os olhos dos algodões doces que povoavam o céu para fixá-los no portão do jardim, e então caminhar até este.

O percurso até a escola havia sido o de sempre, pegou o mesmo ônibus, passou pelos mesmos lugares e saltou no mesmo ponto, mas algo parecia estar diferente naquela dia, as coisas pareciam menos coloridas, pareciam ter menos importância...Parecia estar faltando alguma coisa, mas descobrir o que era a coisa que faltava era o mais difícil, e na sua opinião, impossível. Aquele tipo de sentimento aparecia com constância, e ela nunca sabia o porque, às vezes ele passava rápido, em questão de apenas algumas horas, ou até minutos. Mas às vezes simplesmente não passava.

Já podia ver o aglomerado de alunos parados em frente à escola, e não demorou para uma de suas amigas acenar, chamando-na para que se juntasse a elas, e no mesmo momento ela foi, mesmo que não estivesse com ânimo para aquilo. Sorria, conversava sobre qualquer assunto e dizia as mesmas coisas de sempre com alegria de sobra, e quem a olhava daquela maneira não imagina o a gama de sentimentos que congelavam em seu interior.

Afastada do grupo em que estava ela viu uma figura que a muito conhecia, pediu licença as amigas e caminhou até lá. Ele estava recostado à parede de um comércio ao lado da escola, tinha um cigarro entre os lábios, uma touca azul marinho cobria os fios castanho escuro que vinham até quase os ombros, a expressão aérea mantinha-se sempre a mesma, e apesar dele estar de uniforme e com a mochila nas costas, ela sabia que ele nem chegaria a entrar na sala de aula.

Recostou-se na parede ao lado dele, mantendo-se em silêncio, ela sabia que ele já havia visto. O cheiro familiar da nicotina estava chamando-a, então, não conseguindo resistir à tentação retirou da própria mochila um cigarro de seu maço, e antes que pudesse pegar seu isqueiro ele já tinha estendido o dele a ela. 

- Obrigada. – Murmurou, pegando isqueiro e acendendo seu próprio cigarro, para então devolvê-lo a ele.

- Aconteceu alguma coisa? – Ele perguntou, ainda sem olhar para ela, conhecia-a tão bem que somente por olhá-la de longe já sabia que ela não estava bem, mesmo que para todos os outros ela estivesse.

- Não, está tudo bem. – Mentiu, fingindo um sorriso. Ela não conseguia mentir para ele, e ele sabia disso.

O silêncio se instalou entre os dois por longos minutos, até mesmo depois de ambos terem terminado seus respectivos cigarros, e ele já ter acendido outro. Mas não era um silêncio incômodo, pelo contrário, ara acolhedor, e além do mais era normal o silêncio entre eles por algum tempo. Entre eles, algumas vezes as palavras eram desnecessárias.

O sinal da escola tocou, todos os estudantes que antes estavam espalhados pela rua agora se dirigiam para um só ponto, os portões da escola. Suspirou, não queria entrar, sabia que nada que qualquer professor dissesse naquele dia entraria em sua cabeça, já tinham pensamentos de mais a ocupando naquela manhã.

- Se resolver me contar o que aconteceu, já sabe onde me encontrar. – Ele disse derrepente, antes de passar por ela, sumindo em meio aos outros alunos.

O par de olhos castanhos perdeu mais alguns minutos olhando vagamente para o portão da escola, até começar a arrastar seus pés em direção a este. Seus passos diminuíram de velocidade quando chegou no corredor, a quantidade de alunos que transitavam por ali já começava a diminuir conforme eles entravam e se acomodavam em suas respectivas salas, até ela ser a única ali.

Os passos cessaram logo depois de passar ao lado da porta da escada de emergência, a única escada no colégio que dava acesso ao telhado da escola. Foi como se ouvisse novamente as palavras que ele dissera a pouco, e agora a vontade de segui-las acabara de aumentar consideravelmente. Olhou novamente o corredor, ninguém por perto, ali estava sua chance.

Abriu a porta devagar para evitar barulho, e logo depois de entrar fechou-a, deixando-se ser engolida pela escuridão que habitava aquele lugar. O silêncio ali era absoluto, som da sola de seus sapatos se chocando com os degraus da escada era a única coisa que conseguida ouvir, tornando-o bem mais alto do que deveria ser,e com certeza bem mais perturbador, mas naquele momento não achava que algo poderia ser mais perturbador do que as coisas que passavam por sua própria cabeça.

Não demorou para que, com os olhos já acostumados com aquela escuridão, a porta do quarto andar. Parou em frente a esta, e levou alguns segundos até que uma de suas mãos abrisse a maçaneta e a brisa fria da manhã tocasse seu rosto, obrigando-a a fechar os olhos e aproveitar daquele toque suave, e não conseguiu não se perguntar se o toque das mãos frias da morte era parecidos com aquilo.

Quando voltou a abrir os olhos demorou alguns segundos para se acostumar com a grande quantidade de luz, e assim que o fez pode vê-lo sentado no chão, a alguns metros de distância dela, recostado a mureta que marcava o fim do telhado, e como não era novidade, estava com um cigarro nas mãos.

- Se continuar assim você vai morrer. – Comentou com um fraco sorriso no rosto enquanto se aproximava, tirando a mochila das costas e jogando em algum lugar do chão ali perto, logo depois de se sentar ao lado dele.

- Todo mundo morre um dia, mas cedo ou mais tarde, acho que isso não faz muita diferença. – Disse enquanto expelia a fumaça acinzentada dos pulmões, já esperava por uma resposta assim, aquela frase era bem típica dele.

Novamente, o silêncio. A falta de palavras alimentou os demônios em sua cabeça, e es lembranças da briga do dia anterior começaram a voltar. Havia acontecido de novo, havia se entregado, transformado algo que não merecia em importante, em necessário, e agora novamente estava pagando o preço.

Aquilo havia forçado o fecho da caixinha que guardava seu passado, e ele, que antes já era frágil, agora havia se estilhaçado por completo, deixando aquelas memórias dolorosas inundarem sua mente, assim como suas lágrimas estavam inundando seus olhos.

O primeiro soluço que abandonou seus lábios quebrou o silêncio, e o segundo não demorou a vir. As lágrimas queimavam os olhos e escorriam pelas bochechas, percorrendo um caminho já conhecido e rotineiro, até uma mão interromper o seu curso, limpando-as, e logo outra mão vir acariciar os cabelos desalinhados.

Deixou que sua cabeça repousasse no colo dele, que continuava a acariciar seus cabelos enquanto as lágrimas continuavam a cair, sujando ainda mais sua alma. Ele sabia que não podia evitar que elas caíssem, sabia que não podia salvá-la daquela dor, e isso machucava.

 Sua vida estava estável a apenas curtos dois meses, ela estava vivendo apenas para três coisas:  

Primeiro era ele. Que apesar de estar longe era quem mantinha sua sanidade bem perto, o responsável por mostrá-la a única luz no meio a escuridão em que estava imersa há muito tempo, e que mesmo que ela desviasse desse caminho, ele continuava apontando na direção certa.

Depois era o outro, aquele que sempre trazia a sanidade de volta quando ela fugia, que em meio a muita indiferença conseguia, mesmo assim, trazer o sorriso de volta aquele rosto com uma simples frase ou gesto acidental.

E finalmente ela. A caixa de madeira com cheiro de lembranças, aquela que ficava guardada em algum lugar escuro nas entranhas de seu coração, que guardava o amargo sabor da frustração e uma ferida que nunca cicatrizará. 

E agora, sem nenhum aviso prévio, uma dessas três coisas simplesmente desaparece, jogando-a novamente no mar sem fundo de que havia saído há oito meses atrás. Seu coração doía, ela sentia que ele estava sangrando, havia sido arrancado dele outro pedaço e novamente o pedaço fora grande, e dessa vez provavelmente não conseguiria se recuperar.

Agora era apenas ela, a indiferença confortante, a caixa quebrada a as lembranças.





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