Espelho escrita por Camilla Y


Capítulo 1
Capítulo Único




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Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
–Em que espelho ficou perdida
a minha face?

(Cecília Meireles)

Havia uma menina que morava em um espelho.

A vida era boa para ela. Todos os dias, ela acordava e esperava pela sua gêmea.

Elas sempre brincavam; era divertidíssimo! Sua gêmea fazia; ela repetia. Brincar de “siga-o-chefe” era a grande diversão para ela.

A menina do espelho era muito boa nesse jogo. Sabia fazer exatamente o que sua gêmea inventava. Aliás, seguia a outra nos mínimos detalhes. Não imitava à perfeição apenas os gestos e os olhares; as roupas, os brinquedos à tiracolo, eram sempre exatamente os mesmos...

A infância da menina do espelho foi boa. Ela foi tão feliz. Brincadeiras divertidíssimas povoavam seus dias. Sua gêmea lhe fazia uma careta; ela respondia fazendo a mesma de volta. E ambas riam. Riam de frente para a outra. E dançavam. Pulavam. Cantavam. Eram felizes.

Mas um dia, tudo mudou. A gêmea da menina do espelho não sorria mais. E era muito apressada. A brincadeira entre elas se resumia a passar maquiagem, pentear o cabelo, checar um novo visual. Não se pode dizer que a menina do espelho não gostasse desse tipo de brincadeira, mas ela sentia falta da outra. O contato entra elas era tão mais escasso, tão rápido demais.

Um dia, tudo pareceu piorar. A gêmea sentou diante da menina do espelho e tinha uma expressão triste. Muito triste. Logo, lágrimas começaram a descer pelo rosto em abundância, manchando toda a maquiagem.

A menina do espelho não sabia o que fazer. Nunca a tinha visto tão triste assim. Não eram lágrimas de dor física, que a menina do espelho conhecia muito bem, por já ter chorado com a sua gêmea quando esta caiu da bicicleta ou prendeu o dedo na porta. Não; essa era uma dor muito mais profunda e, por isso mesmo, mais intensa.

As lágrimas da garota já haviam manchado bastante de sua maquiagem e ela, revoltada, começou a passar a mão pelo rosto, nervosamente, querendo arrancar à força o que restava da pintura antes tão impecável. E a menina que morava no espelho, não sabendo exatamente como agir, optou por fazer o mesmo de sempre: imitou sua gêmea em cada gesto, em cada expressão. Era sua forma de lhe dar apoio, de lhe dizer que ela não estava sozinha.

Não foi o bastante. A garota de fora do espelho, subitamente, começou a olhar para a menina que lá dentro morava com raiva, com ódio. E então, palavras furiosas começaram a irromper dos lábios trêmulos de choro.

Palavras dolorosas e precipitadas. A garota começou a fazer acusações horríveis contra a menina do espelho. Dizia que era tola, que não deveria ser tão ingênua. Que agora pagava o preço por ser daquela forma e que era muito bem feito para ela. Quem mandou se deixar explorar daquele modo? Fora usada e agora era descartada! Bem feito, repetia a garota. Tinha sido merecido, ela gritava para a menina no espelho, com a voz embargada pela dor.

A menina do espelho não compreendia o que poderia ter feito para que a outra lhe tivesse tanta raiva. Uma vez mais, ficou perdida e, por isso mesmo, buscou agir do jeito que pensou ser o melhor. Quis que sua gêmea não sofresse tanto e, por isso, buscou relembrá-la dos velhos tempos. Quando, na infância, brincavam de “siga-o-chefe”, tudo era tão mais simples... Por que não tentar?

A menina apenas imitou a garota chorosa, dando-lhe assim sua forma de apoio. Essa brincadeira sempre lhes tinha aproximado. Queria compreendê-la, mas não conseguia. E sua gêmea também não parecia enxergar o que a menina tentava fazer por ela. A dor transtornava seus olhos e sua visão.

Talvez seja algo que aconteça apenas hoje, pensava a menina que vivia no espelho. Sim, poderia ser apenas um dia ruim. Tentou não se deixar tragar pela dor da outra. Tinha de ser forte por ela.

Entretanto, não foi apenas um dia. A esse se seguiram muitos outros, todos cheios de angústia, desespero, lágrimas incontidas, palavras furiosas, olhares acusativos. A menina do espelho ainda tentava se mostrar ali para ajudar a outra, ser o seu apoio, mas já sabia que era em vão.

Um dia, a garota estava mais zangada que o normal. Em seus olhos, havia tanta mágoa que a menina no espelho ficou assustada. Não sabia pelo que esperar.

Depois de olhar para o espelho de forma aterradora por alguns instantes, a garota se afastou dele, parecendo que deixaria seu quarto. Contudo, próxima à porta, ela pegou um vaso que ficava sobre uma cômoda e, violentamente, atirou-o contra seu próprio reflexo.

O vaso espatifou-se contra o espelho, que se quebrou em inúmeros cacos de vidro pelo piso. A garota ainda derramava algumas últimas lágrimas, que, por algum motivo, traziam uma dor nova, lancinante e desconhecida e que trespassou-lhe o peito no instante em que viu sua imagem se partir em pedaços cristalinos pelo chão.

Outros dias se seguiram, naturalmente. Vieram outros momentos de tristeza e solidão, lágrimas e dor, como ocorrem e como sempre irão ocorrer.

Um novo espelho foi colocado no lugar daquele que se partira. A garota ainda se maquiava diante dele, ainda chorava diante dele...

Entretanto, ela finalmente notava que algo dentro de si havia mudado. Não era mais a mesma. Uma parte sua tinha ficado, definitivamente, para trás. E a sensação da perda era muito mais dolorosa que todas as outras que já experimentara.

Irreparável é quando nos perdemos de nós mesmos.


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