Kuroi Crystal escrita por Luciane


Capítulo 5
Capítulo 4 - Fuga




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Hideki viu quando os ‘caras’ entraram em um beco à frente. Com isso, tentou desesperadamente correr ainda mais rápido. Eram quatro contra um. Rapazes furiosos de um lado e uma indefesa colegial do outro. Não, ele jamais permitiria que nenhum deles tocasse um só dedo nela. Teriam que matá-lo antes disso! Contudo, veio a surpresa. Assim que se defrontou com a entrada do beco, viu-se obrigado a se desviar rapidamente de um sujeito arremessado em sua direção, observando espantado enquanto este caía totalmente inerte no chão. Hesitantemente, voltou os olhos para dentro do beco observando, um a um, os três que restavam, também nocauteados.
Mais à frente estava a responsável por tudo. O capuz agora já não lhe cobria mais o rosto, e Hideki pôde fitá-la melhor. Os cabelos lisos, castanho-escuros, pareciam alongar-se até pouco abaixo dos ombros, mas estavam presos por um frouxo rabo de cavalo. Apenas alguns fios permaneciam soltos na frente, caindo-lhe sobre o rosto... Aquele rosto, aqueles traços... Não havia dúvidas de que era mesmo ela. Porém, havia algo diferente... Seus olhos não tinham mais o brilho de antes. Pareciam totalmente inexpressivos, sem emoção. Mas talvez fosse algo momentâneo... Era ela... Tinha que ser!
-Karin...? – Disse em voz baixa, quase sem se dar conta.
A garota, que já o encarava na defensiva, aguardando qualquer movimento a mais como um pretexto para atacá-lo, ficou intrigada. Ninguém, além de seus tios e de seu primo, a chamava pelo primeiro nome. Hideki percebeu a desconfiança e logo tentou corrigir a situação:
- Er... Digo... Sayuki Karin? É o seu nome, não é? Ouvi esses caras te chamando assim.
Ela continuou a encará-lo com desconfiança. Não saberia dizer o que, mas havia algo de familiar naquele rapaz... Por fim, perguntou de maneira hostil:
- Quem quer saber?
Hideki pôde sentir um “baque” ao ouvir aquela voz. Estava mais do que confirmado: era ela! Mas a Karin da qual ele se recordava era uma menina alegre, simpática, sorridente... Aquela pessoa diante dele parecia rancorosa, fria, agressiva... Teria a vida sido tão dura para mudá-la de tal maneira?
Percebendo que ela ainda aguardava por uma resposta, limitou-se a dizer:
- Um amigo.
- Não tenho amigos. – Rebateu ela de imediato, antes de começar a caminhar em direção à saída do beco.
Ao passar por Hideki, seus olhares se encontraram por um momento, mas ela logo desviou a atenção para frente, saindo do local. Ele a seguiu com os olhos, observando enquanto ela se afastava. Nisso, percebeu que um dos rapazes despertava e olhou para ele, que resmungava no chão:
- Aquela maldita conseguiu dar o fora levando o meu celular.
Ao ouvir aquilo, Hideki franziu a testa, colocando a mão no bolso da camisa em busca de sua carteira. Por algum motivo, não se surpreendeu ao perceber que ela não mais se encontrava lá. Pensou em que momento teria dado oportunidades para ser furtado. Ela nem havia encostado nele! ...Ou havia? A verdade era que a surpresa em reencontrá-la o impossibilitava de afirmar com certeza.
Tornou a olhar para a garota que já ia um pouco distante e tratou de segui-la, com o cuidado de permanecer a certa distância para não ser notado.
*****
O fogo do desejo estava aceso. Aliás, em se tratando daquele rapaz, difícil mesmo era apagar esse "fogo”... Estava com uma garota de quem sequer sabia o nome, em um antigo dojo que pertencera a sua família. Entrou pelo local já aos beijos e ‘amassos’, encostando-a contra uma parede, ao mesmo tempo em que começava a tirar-lhe o kimono.
Nesse momento, ouviu um barulho próximo à porta e voltou seus olhos para lá, mas não com real preocupação. Seu único constrangimento seria ser flagrado pelos pais da menina, mas sabia que não corria esse risco, já que eles moravam num ponto distante dali, quase ao final do vilarejo. Qualquer outra pessoa que os flagrasse não representaria nada além de uma interrupção momentânea. Entretanto, sua postura tranquila se alterou repentinamente ao ver quem era. Shiawase Akemi. Irmãzinha de seu melhor amigo, e melhor amiga de sua irmã. Notou que os olhos dela, naturalmente dóceis e frágeis, o fitavam de forma assustada. Sentiu-se péssimo por vê-la assim, o que só piorou quando ela saiu do local, correndo.
Logo se refazendo do torpor inicial e sem dar a mínima para a garota com a qual há pouco se esfregava, o rapaz iniciou uma corrida alucinada em perseguição à jovem que o flagrara. Quando finalmente a alcançou, segurou-a pelo braço.
-Akemi! Me escuta, eu...
-Idiota... – Ela murmurou, em meio a soluços - Você é um idiota!
Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, ela começou a socá-lo no peito, enquanto ele a prendia pelos braços, tentando contê-la. Não que ela o estivesse machucando... Mesmo porque seria impossível imaginar que uma garota tão frágil fosse capaz de machucar alguém. Quando ele, enfim, conseguiu contê-la, os olhos dos dois se encontraram. Para ele, o choro daquela garota parecia um tanto incompreensível; afinal, eram apenas amigos. Os pais dela o haviam praticamente criado, sendo assim, eram como irmãos. Aliás, também não entendia porque havia ficado tão transtornado quando se viu descoberto por ela em sua intimidade de momento. Segurando-a ainda pelos braços, ele perguntou:
-Por que está desse jeito? Você me conhece há muitos anos, sabe que eu sou assim. Não entendo por que ficou nesse estado.
Depois de fitá-lo em silêncio por breves (porém intermináveis) segundos, num impulso, ela o puxou pela roupa, colando por um breve instante seus lábios aos dele. Quando se afastou, abaixou o rosto, terrivelmente constrangida diante da própria atitude. Ele, por sua vez, mostrou-se confuso com o fato.
Akemi afastou as mãos do corpo dele, olhando para o chão enquanto recuava alguns passos.
-Desculpe... Eu não sei por que fiz isso. Não deveria ter feito isso, Yuu...
E ele impediu que ela concluísse o que dizia, quando rapidamente contornou sua mão pela cintura da garota, trazendo-a para junto de si e beijando-a novamente. Dessa vez, um beijo de verdade. Um beijo que, apenas naquele momento, ele descobriu que desejava há uma vida inteira.


-A... ke... mi... – Murmurou Yuuhi, enquanto despertava.
Abriu os olhos, encontrando-se num quarto que sua mente sonolenta ainda demorou alguns segundos para identificar como sendo de um alojamento de estudantes próximo à sua escola. Um local aparentemente sem regras, onde as meninas facilmente entravam e saiam trazendo cigarros, bebidas, namorados ou meros casos passageiros.
Olhou para a adolescente que dormia ao seu lado e, enfim, lembrou-se dela. Era uma amiga de outra garota com quem ele já havia ficado e que, por ‘coincidência’, estudava na mesma turma de sua irmã Tiemi. Haviam marcado de sair juntos naquele dia e não fora difícil para Yuuhi convencê-la a irem para um ‘lugar mais sossegado’. Conhecendo bem o albergue onde a estudante vivia, ele logo sugeriu que fossem para lá.
Olhando para o relógio da cabeceira, ele viu que já estava tarde. Levantou-se, e vestia suas roupas quando a garota murmurou, sonolenta:
-Yuu-chan, você já vai?
-Preciso ir, gata. – Ele respondeu, debruçando-se sobre a cama e beijando-lhe o pescoço – Tá na minha hora.
-Vai me ligar?
-Claro que vou. Pode esperar.
Ele não ligaria, e sabia disso. No fundo, a garota também sabia, mas nenhum dos dois se importava.
Terminando de se vestir, ele saiu. A forte dor de cabeça que sentiu o fez lembrar que, antes de ir parar naquela espelunca com a garota (que ele sequer sabia o nome), havia bebido um pouco – apenas para tentar aliviar o stress que, ultimamente, era grande.
Primeiro, a história de Mitsuki querer ir para Kyoto. Por mais que detestasse admitir, sabia que sentiria muito a falta dela, de sua irmã caçula, e também de Tiemi. Elas eram a única família que conhecia... Não das mais convencionais, é verdade, mas eram verdadeiramente a SUA FAMÍLIA! E como se isso já não bastasse, a convivência na escola também não estava das melhores. Desde que a tal Sayuki colocara os pés naquele colégio, sua vida havia virado um inferno. Teve que suportar os comentários acerca da luta que perdeu para ela, bem como da carteira que ela lhe roubou, fazendo-o de bobo. Agora, seu posto de “Bad boy número um” estava ameaçado... E, pior: ameaçado por uma garota! Sem contar que algo nela o incomodava. Aquele seu olhar!... Por mais que tentasse, não conseguia tirá-lo da cabeça.
Não demorou a chegar em casa; antes de entrar, olhou as horas: eram quase nove da noite. Entrou em casa, encontrando Mitsuki e Asami sentadas num sofá, assistindo tevê. Deteve seu olhar na irmã por um instante... Aquela lhe daria, com certeza, um bocado de trabalho quando crescesse mais um pouco... Era uma menina bonita. Tinha muito de seu pai, mas também lembrava um pouco Mitsuki. Tiemi, ao contrário, não tinha nada de sua mãe... Na certa, devia parecer-se com o falecido pai...
“Falecido”? O pai de Tiemi havia mesmo morrido? Pela primeira vez, percebeu que não sabia absolutamente nada sobre o pai da garota... Ela também pouco falava sobre o assunto.
Cumprimentou as duas e, sem mais palavras, foi para o seu quarto. Abriu a porta e acendeu a luz, assustando-se um pouco ao perceber que havia alguém em sua cama.
- Que isso agora, garota Ò_ó?! Quem te deu o direito de ‘sair entrando’ assim no meu quarto ¬¬?
Para a sua surpresa, não obteve resposta. Olhou-a com mais atenção. Ela não parecia muito bem. Ainda usava uniforme e estava com um olhar distante... Um tanto... Triste? Isso o preocupou. Era raro ver tristeza nos olhos daquela garota.
- Tiemi? – Ele chamou com a voz mais baixa, já fechando a porta do quarto. Ela desviou seus olhos para ele.
- Yuuhi. – Respondeu, com certa tristeza na voz.
Preocupado, o garoto se aproximou.
- O que foi? Alguém te fez alguma coisa?
Ela respirou fundo, antes de contar:
- Mamãe quer ir embora no final de semana.
Yuuhi suspirou, sentando-se na ponta da cama.
- E aí? – Perguntou ele, vendo as lágrimas que brotavam dos olhos da irmã.
- Eu não quero ir. Moro em Tóquio desde pequena. Não quero ficar longe da minha escola, dos meus amigos...
- Tem que pensar direito sobre isso, Tiemi. Sei que não quer se afastar de seus amigos... Mas vai querer ficar longe da sua família?
Ela olhou para ele, antes de responder:
- Mas parte da minha família vai ficar aqui.
Foi a vez de Yuuhi sentir um leve nó na garganta. Nunca poderia imaginar que Tiemi sentiria sua falta caso fosse embora. Mas sabia que ele, sem a menor sombra de dúvidas, sentiria a dela.
Ela prosseguiu:
- Eu não tenho pai, Yuuhi. Talvez você não saiba, mas, pra qualquer garota, faz uma tremenda falta ter uma presença masculina por perto. Sei que minha mãe sempre se esforçou pra que eu nunca viesse a sentir falta de um pai, mas não é a mesma coisa. No entanto, você sempre cuidou de mim, sempre me protegeu e... Apesar de não querer nada com a escola, de ser um tapado, tarado, irresponsável, arrumador de confusão...
- Tá, tá! ¬¬’ – Ele a cortou, levemente irritado – Dá pra ir direto ao elogio?
- ...Apesar disso tudo, eu sempre tive muito orgulho de dizer pra todo mundo que você é o meu irmão.
Ele sentiu a emoção aquecendo-lhe os olhos, mas conteve heroicamente as lágrimas que insistiam em tentar fluir. Tiemi surpreendeu-se ao sentir a mão do irmão passar de leve sobre os seus cabelos. Surpreendeu-se ainda mais quando o ouviu dizer:
- Mitsuki não vai gostar nada dessa história... Mas... Acho que a gente consegue se virar bem ficando por aqui sozinhos.
Nesse momento, ela não controlou mais o choro. Perguntou aos soluços:
- Não vai ficar irritado em ter que andar pra cima e pra baixo com “a filhinha da sua madrasta”?
Yuuhi sorriu e fez que não:
- Vou ficar muito orgulhoso de andar pra cima e pra baixo com a minha oneechan. – E deslizou levemente as costas da mão sobre o rosto da garota, enxugando-o. – Agora pára de chorar, koneko-chan. Em vez disso, é melhor você ir logo falar com sua mãe.
Ela fez que não com a cabeça:
- Amanhã eu faço isso. Acho que vou dormir... Estou com o sono atrasado daquela festa maluca que a gente foi ontem.
- Eu também tô quebradaço.
- Andou bebendo, não foi?!
- É, acho que passei um pouquinho da conta. Acordei num quarto com uma mina que eu nem lembro o nome. Mas que ela era gostosa, ah isso era!
Tiemi suspirou:
- Tem que começar a tomar um rumo na vida, Yuuhi! Por que não oficializa logo o seu lance com a Nami-chan?
- Pra quê? Tô tão bem assim! E a Nami também não reclama.
- Ela é a garota certa pra você, Yuuhi; vocês se gostam. Não sei porque ficam nessa de “relacionamento liberal”.
- Tiemi-chan, entenda: tá pra nascer a mulher que vai conseguir me prender. Sem contar que... Eu gosto da Nami! Adoro ela! Ela é uma puta gostosa e... Er, “Puta” advérbio de intensidade, não adjetivo O.o... Mas, eu realmente não me imagino vivendo preso apenas a ela, nem a mulher alguma.
- Sejamos sinceros... Ela é o adjetivo também u.u’. Mas, eu ainda acho que ela seria a garota certa pra você.
- Faz o seguinte... Vai dormir, vai.
Concordando, eles trocaram um ‘boa noite’ e ela saiu do quarto. Yuuhi deitou-se na cama e em poucos minutos já adormecia.
*****
Okinawa - Japão
Ele estava cansado... MUITO cansado. Jamais precisara tanto de uma boa noite de sono como naquele momento. Havia corrido a cidade inteira atrás de uma lixa de unhas, passado horas de pé em uma loja enquanto aguardava Nathalie fazer suas ‘intermináveis’ compras, carregado sacolas e mais sacolas de bugigangas para ela e, como se não bastasse, ainda tinha ido à ópera! Não, isso já era demais, tanto para o seu físico quanto para o seu psicológico.
A limusine finalmente parou em frente à mansão e ele saiu. Como um bom cavalheiro, abriu a porta do carro para sua patroa, estendendo a mão para ajudá-la a descer. Apenas nesse momento, já quase no fim daquele dia exaustivo, é que pôde perceber o quanto aquela menina era bonita. Seus cabelos lisos e bem longos estavam presos por um alto rabo de cavalo. Usava um belo vestido azul claro, o que combinava e realçava ainda mais a cor dos seus expressivos (e exóticos) olhos. Mais parecia uma boneca de porcelana. No entanto, mesmo assim... Jovem, rica e bonita, ela não parecia feliz...
-Talvez seja porque ela é totalmente insuportável! – Pensou.
Enquanto a acompanhava entrando na mansão, olhou para a mão que o segurava pelo braço. Atentou-se ao fato de ela não ter as unhas compridas...
Ao chegarem à sala encontraram, sentado no sofá, conversando com Marie, um homem europeu, de quarenta e dois anos, cabelos curtos e loiros e olhos azuis. Nathalie parou de caminhar, surpresa ao vê-lo.
- Papai?
Ele olhou para ela e sorriu.
- Boa noite, Nathalie.
Tal formalidade causou certa surpresa a Jean. Sabia que o Senhor Charpentier não via a filha já há alguns dias, e seus olhos ao vê-la esboçavam um carinho verdadeiro, embora suas atitudes fossem formais e distantes.
Ao notar a presença do jovem, o homem lhe sorriu:
- Boa noite, Jean.
- Er... Boa noite, senhor.
- Sua mãe me informou que agora você é o novo acompanhante de minha filha. Fico feliz com isso. Conheço você desde garoto e sei que a Nathalie está em ótimas mãos.
Jean sorriu, um pouco sem-graça. Notou que sua mãe também sorria, parecendo feliz em ver o patrão elogiá-lo daquela maneira. Logo em seguida, ela pediu licença e se retirou. O senhor Charpentier olhou mais uma vez para a filha.
- Nathalie, será que poderíamos conversar um minuto?
A garota fez que sim em silêncio. Sabia que, para seu pai querer conversar com ela, realmente deveria ser um assunto muito importante. Ele não tinha muito tempo para ela, bem como parecia não se preocupar muito em ter... Olhou para Jean e pediu/ordenou:
- Estou com sede, traga-me um suco.
- Er... De quê?
- De qualquer coisa. E rápido.
Ele então saiu, dirigindo-se à cozinha.
Nathalie voltou a olhar para o pai, que pediu que ela se sentasse. Sentiu mais uma vez que aquela conversa não seria nada boa...
*****
Tóquio
Ele ainda a seguia, já há algumas horas.
Viu-a parar em outro beco e vender para um sujeito estranho um celular, um relógio e outros três ou quatro objetos que não conseguira identificar. Depois, ela ainda parou outras duas ou três vezes para brigar, sempre com rapazes aparentemente muito mais fortes que ela. Por vezes, Hideki teve que se controlar para não intervir, até que percebeu: aquela garota não precisava da ajuda de ninguém para se defender. Pelo contrário! Era surpreendentemente habilidosa em brigas de rua.
Mais tarde ela se distanciou um pouco do centro da cidade e, por fim, entrou em um armazém abandonado. Seu espião, sem hesitar, também entrou no local.
Andava cautelosamente, evitando fazer qualquer barulho. Havia grandes caixas de madeira espalhadas pelo ambiente impregnado de poeira e teias de aranha por todos os cantos. A única iluminação existente eram feixes de luzes externas que entravam por algumas telhas quebradas.
Num determinado ponto, Hideki parou, escondendo-se atrás de uma das caixas enquanto observa a colegial, que, sentando-se no chão, apoiou as costas numa parede. Avistou quando ela abriu a mochila e de lá tirou algumas carteiras, das quais começou a contar quanto de dinheiro havia conseguido. Contudo, ela de repente parou a contagem ao ter a nítida sensação de estar sendo observada.
- Apareça. – Ela ordenou, num tom de voz alto, porém sem gritar.
Sem saídas, Hideki obedeceu à ordem e se mostrou para a garota, que, ainda sentada no chão, encarou-o com o mesmo olhar frio e rancoroso de antes.
- Quem é você? – Karin indagou, ainda mais desconfiada em relação àquele desconhecido.
- Já disse que sou um amigo. – Ele explicou, calmamente.
- Já disse que não tenho amigos.
Suspirando, Hideki tentou se aproximar um pouco mais. Fez isso lentamente e com cautela, temendo ocasionar alguma reação brusca na garota.
- Eu vim apenas pedir minha carteira de volta. Pode ficar com o dinheiro, mas eu preciso dos documentos.
Quanto àquilo, ela não mostrou resistência. Pegou uma das carteiras e jogou para Hideki, que a pegou no ar. Tinha esperanças de que, com aquilo, ele fosse embora. Mas o rapaz não deu qualquer sinal de que faria isso.
- O que uma menina como você faz num lugar desses? – Ele indagou.
- Não é da sua conta. – Foi a resposta seca e automática.
- Está se escondendo? – Ele insistiu.
- Já disse que não te interessa.
- Onde estão os seus pais?
- Dá o fora!
- Está fugindo, então?
- Vai embora! – Ela elevou o tom de voz, ainda mais irritada – Já te entreguei a tua maldita carteira. Agora vai e me deixa em paz.
Percebendo que aquilo não o levaria a lugar algum, ele desistiu de tentar obter qualquer informação. Pelo menos naquele momento, sabia que não descobriria nada a seu respeito. Fitou-a por mais um instante e se voltou, saindo do local.
Karin o observou, até que ele sumisse de suas vistas. Depois se deitou no chão, apoiando a nuca sobre as mãos e fitando o telhado. Aquele local – até que decidisse o que fazer... Até ter dinheiro suficiente para tentar sair da cidade – seria o seu ‘doce’ lar.
*****
Okinawa
-Tóquio? Mas... Quando? – Perguntou Nathalie um tanto surpresa.
Sentado em um grande e confortável sofá, seu pai respondeu tranquilamente:
-No final de semana.
-E ficará quanto tempo?
-Um ano, talvez um pouco menos. Quando o Hotel que estamos abrindo lá adquirir estabilidade, não creio que minha presença ainda seja necessária.
Ela permaneceu totalmente sem palavras por um tempo. Como se já não bastasse passar dias, às vezes semanas, sem ver o pai, agora ele estaria viajando para passar um ano fora, em outra cidade.
Louis pareceu perceber-lhe a aflição. Só então comentou:
-Mas você poderá ir comigo. Lógico, se quiser. Mas eu creio que você vá preferir ficar.
Ela tomou fôlego para responder, quando Jean regressou, trazendo uma bandeja com um copo de suco de laranja. Ela olhou para o loiro. Não seria por estar em um momento não muito tranquilo que iria deixar de tentar irritá-lo.
-Laranja? Suco de laranja?
-E qual o problema? Não disse que servia qualquer um?
-Qualquer um, menos laranja. Acaso não sabes que tenho acidez no estômago?
-Tem? – Perguntou seu pai, um tanto surpreso.
Ela o fitou, ainda irritada:
-É, se o senhor me conhecesse um pouquinho melhor, talvez soubesse disso. – Em seguida tornou a olhar para Jean – E você, traga-me um suco de morangos, sim?!
E o rapaz saiu novamente da sala, bufando. Nathalie voltou a encarar o pai.
-Pelo visto o senhor não está nem um pouco interessado que eu vá, não é?
-Não é isso, Nathalie. Só que... Talvez você não fique tão feliz lá. Aqui é a sua casa. E você tem a sua escola, seus amigos...
-Amigos? Mas que amigos, papai? Acha que eu não ficaria “tão” feliz por lá? Acaso achas que sou feliz aqui?
-Nathalie... Você não tem do que se queixar. Estuda num ótimo colégio, é uma das meninas mais ricas do país, tem absolutamente tudo o que quer.
-E o que isso me importa, pai? Que me importa viver numa mansão, ter muitos empregados, estudar no melhor colégio... Se não tenho ninguém que realmente se preocupe comigo?
Ele olhou para a filha por um instante, sem saber ao certo o que responder. Nunca havia imaginado que sua garotinha pudesse ser tão infeliz como acabara de afirmar. Quando finalmente tomou fôlego para dizer alguma coisa, seu celular tocou. Nathalie soltou um longo suspiro.
- Atenda. Deve ser importante. Afinal, seus negócios são muito mais importantes do que eu, não é?
Dizendo isso, ela subiu as escadas correndo.
-Espere aí, Nathalie! Nossa conversa ainda não terminou. – Dizia seu pai olhando para as escadas enquanto se levantava do sofá. Em seguida atendeu o celular – Pronto. Escuta, no momento eu estou resolvendo um assunto sério de família e... Como é?! ...Mas como isso foi acontecer? ...Diga-me o nome dos incompetentes que foram responsáveis por isso! ...Acalmar-me? Tem idéia de quantos milhões nós deixamos de ganhar com a quebra desse contrato? ...Não, nada de esperar até amanhã. Mande-me o relatório por e-mail, agora! Estou indo verificar.
Ao desligar o celular e seguir para seu escritório, Louis parecia já ter esquecido totalmente o problema com Nathalie. Mal sabia, porém, que escondido atrás da porta que ia para o hall, um certo funcionário ouvia toda aquela conversa.
*****
- Entre. – Disse Nathalie, sentando-se na cama e enxugando rapidamente o rosto.
A porta do quarto se abriu e, não para a sua surpresa, era Jean. Ela prontamente virou o rosto, olhando para o chão. Não queria que ele a visse chorar.
- Trouxe meu suco de laranja?
Jean sorriu de leve.
- Não era de morango que queria?
- É... Isso.
- Não, eu não trouxe.
- Então o que esperas? Vá buscar.
O rapaz suspirou. Em seguida caminhou até a cama, sentando na outra ponta, um pouco distante de Nathalie. A adolescente estranhou aquela atitude do empregado. Após alguns segundos de silêncio, ele a surpreendeu com a pergunta:
- Não tem acidez no estômago, não é?
- Acaso está me chamando de mentirosa?
- ‘Acaso’ eu estou. Quando fui buscar seu suco, minha velha tava na cozinha e foi ela mesma quem me disse que você se amarra em suco de laranja. E tu também mentiu quando disse que tinha quebrado a unha... Eu vi que você tem as unhas curtas. Sem contar que, hoje lá na loja, você não parecia nem um pouco empolgada com aquelas compras.
Nathalie permaneceu em silêncio. Após uma pausa, Jean perguntou:
- Por que fez de tudo pra me azucrinar o dia inteiro?
- Para me livrar de você. – Ela respondeu, com a voz chorosa e ainda sem olhar para Jean.
-Ah... Sou tão chato assim, é? Ou você é que fazia isso com todas as babás que passavam por aqui?
-Eu sempre achei que... Que se não tivesse ninguém para me fazer companhia, talvez meu pai arranjasse mais tempo para mim, mas... Mas... – E ela não conseguiu concluir a frase, pois o choro a impediu.
Jean ficou em silêncio por longos minutos. Apenas deixou que a menina chorasse. Só após algum tempo, quando ela parecia começar a se acalmar, é que ele perguntou:
-Por que não vai para Tóquio com seu velho? Pelo menos assim passaria mais tempo com ele.
-Porque eu sei que nada vai mudar. Ele ainda estará sempre ocupado.
-Pensa por outro ângulo: o que você teria a perder? Se não gosta da sua escola, se não se sente feliz nessa casa, se não tem amigos por aqui... Talvez lá as coisas mudem.
-Nada vai mudar. Eu vou estudar em outro colégio feminino cheio de meninas frescas e vou continuar sozinha.
-Tenta levar um papo com seu velho sobre isso. Às vezes, numa conversa, você consegue convencê-lo a te colocar num colégio não tão tradicional assim. E você é uma menina bonita... E parece ser legal também. Logo estará cheia de amigos e namorados, vai ver. ^-^
-Acho difícil. Nunca tive nenhum dos dois.
Jean sorriu. Em seguida aproximou-se de Nathalie, abaixando no chão diante dela, que, com isso, viu-se obrigada a encará-lo.
-Pelo menos um amigo você já tem. Claro, isso se tu num se importar de ser amiga de um empregado.
A loira ficou surpresa com aquelas palavras. Surpreendeu-se ainda mais quando o rapaz estendeu a mão para ela.
- E então? Amigos?
Ela ainda hesitou por um momento. Mas, por fim, apertou a mão dele. Ele sorriu, dando dois tapinhas de leve na cabeça da garota, que também sorriu com isso. Em seguida, se levantou.
-Precisa de mais alguma coisa, senhorita?
-Me chame apenas de Nathalie. Digo... Já que somos amigos agora...
-E que tal “Nat”? ^-^
-“Nat”? – Ela piscou. Nunca havia sido chamada daquela maneira.
-É, teu nome é muito grande, saca? - Ela riu.
-Tudo bem, pode ser apenas “Nat”.
-Então, Nat... Precisa de mais alguma coisa?
-Não, pode ir dormir. E... Desculpe-me pelo dia de hoje.
-Esquenta, não. Foi divertido. Até que eu curti a ópera.
-Você dormiu o tempo inteiro. ¬¬’
-Er... É vero! Mas, tá ligada que a parada é chata pra burro, né?! Ninguém merece!
Ela riu novamente. Não pelas palavras em si, porque realmente aquele vocabulário cheio de gírias era completamente desconhecido para ela, mas pelo jeito com que ele falou.
Ele desejou-lhe boa noite e caminhou em direção à porta. Antes que saísse, no entanto, Nathalie o advertiu:
-Eu não sei direito como funciona isso de amizade.
Ele olhou para ela e sorriu novamente.
-Não se grila. É bem mais simples do que tu imagina. Boa noite, princesinha.
-Boa noite. - E ele saiu do quarto.
Nathalie deitou-se na cama, pensando no que o rapaz havia lhe dito. De fato, o que teria a perder indo para Tóquio?
*****
Tóquio
Luna despertou com o som da porta batendo. Esparramada no sofá, constatou que a tevê permanecia ligada, passando um filme antigo qualquer. Ia virar-se para olhar aquela que chegava, mas não foi necessário, pois Harumi passou diante dela, como um furacão, indo diretamente para a cozinha. Intrigada, Luna levantou-se e a seguiu. Surpreendeu-se ao flagrar a amiga sentada diante da pequena mesa, devorando um pote de sorvete.
- Er... Está tudo bem, Haru?
- Quer um conselho, Luna? – A mais velha indagou, com os olhos fixos no nada e ainda comendo o sorvete.
- Er... Diga.
- Continue como você está. Não perca tempo arrumando um namorado.
A loira piscou, sem compreender aquele conselho. Logo Harumi, a ultra-romântica que sempre lhe chamava a atenção dizendo que ela precisava arrumar um namorado, agora mudava de idéia tão drasticamente? Antes que ela perguntasse qualquer coisa, Harumi se adiantou na explicação:
- Os homens não prestam. Nenhum deles. Nenhum!
-Haru... – Luna puxou uma cadeira e sentou-se diante da amiga – Aconteceu alguma coisa? Brigou com o Akihiro?
Jogando a colher sobre a mesa, Harumi ficou em silêncio por quase um minuto, tempo em que seus olhos começaram a transbordar em lágrimas. Respirando fundo, finalmente conseguiu responder, com a voz baixa:
-Ele estava com outra.
-O quê? – Luna praticamente gritou, levantando-se e apoiando as mãos sobre a mesa.
-Ele estava com outra. – Harumi repetiu, com o mesmo tom de voz.
-Haru... Você... Você tem certeza? Vai ver você se enganou.
-A cena estava explícita demais para enganos, Luna. Mas, quer saber? Não vou ficar chorando por ele. Homens não merecem isso! Temos coisas mais importantes para resolver, como a nossa mudança. Vamos sair mais cedo amanhã, para procurar outro apartamento. – Ela levantou-se – Mas agora estou exausta. Quero tomar um bom banho e cair na cama.
Terminando de dizer isso, Harumi deu os primeiros passos para sair da cozinha, mas foi detida por Luna que, sem dizer uma única palavra, a abraçou.
-Eu sinto muito, Haru-chan. – A loira falou.
Envolvida nos braços da amiga, Harumi forçou um sorriso.
-Ei, Lu-chan, eu estou bem. Não precisa disso.
Mas, em poucos segundos, ela não conseguiu mais manter aquela força e retribuiu ao abraço de Luna, deixando o choro, enfim, vir à tona.
*****
Ela já começava a ficar preocupada. Hideki havia saído de casa ainda pela manhã, e agora, dez da noite, ainda não regressara. Não devia tê-lo deixado sair sozinho... Recém chegado à cidade, ele ainda não conhecia absolutamente nada dela. E se estivesse perdido? Se tivesse sofrido um acidente, fosse atropelado ou coisa do tipo? E se houvesse entrado numa rua perigosa e esbarrado com as pessoas erradas?
Sentando-se no sofá, ela passou as mãos sobre o rosto, suspirando:
-Você está ficando paranóica, Maaya! Hideki tem vinte e um anos. É um homem e sabe muito bem se cuidar sozinho.
Suspirando mais uma vez, ela fez uma nota mental de como mães conseguiam ser perigosamente paranóicas.
Subitamente, a porta se abriu. Ela se levantou de imediato, fitando o rapaz que entrava. Com a respiração ofegante, ele começou a falar:
-Maaya, eu...
-MÃE!!! – Interrompeu ela, um tanto irritada. – Você me dá um susto desses e quando volta ainda chega me chamando pelo nome?
Ele riu. Vê-la irritada não o deixava feliz, mas era impossível não achar graça de tamanha preocupação. Ela preparou-se para prosseguir com o sermão, mas ele a interrompeu:
-Eu a encontrei, mãe.
Os olhos dela se alargaram nesse momento. Sentiu seu coração disparar e Hideki teve que correr para apoiá-la antes que caísse, recolocando-a no sofá e sentando-se preocupado ao seu lado.
-Mãe? Tudo bem?
Ela segurou com força a mão dele, olhando no fundo de seus olhos e sussurrando:
-Você o quê?
-Encontrei a nossa garotinha.
-Esteve com ela? Falou com ela? Onde a encontrou? Como ela está?
-Foi tudo totalmente inesperado, May.
-Mãe!
-É... ‘Mãe’! Eu tava andando na rua, quando uma garota esbarrou em mim... – E ele relatou com detalhes o que havia acontecido. Maaya ouvia tudo atentamente. – ...Então, eu ainda fiquei algumas horas na frente do depósito, pra ver se ela ia sair de lá. Acho que ela não vai sair tão cedo. Parece que está realmente se escondendo de alguém.
Maaya levou as mãos ao rosto, abaixando a cabeça e recapitulando tudo o que Hideki havia acabado de lhe contar. Por fim, tornou a olhar para o rapaz, perguntando:
-Disse que ela estava ferida?
-É, no rosto. Deve ter levado um soco em alguma de suas brigas. Tem que ver como ela luta bem. Ela conseguiu derrotar sozinha quatro caras de uma só vez.
-Tá... Tá me dizendo que Karin tornou-se uma delinquente juvenil?
-Também não vamos exagerar, né?!
-Ela é briguenta... E tem um bando de inimigos; é ladra e totalmente anti-social... Conhece alguma outra palavra pra isso?
-Ela está fugindo de casa, mãe. A vida dela não deve ser das mais fáceis.
- Eu vou até lá. – Disse ela, já tentando se levantar.
Hideki a segurou.
- Vai lá fazer o quê? Não vai conseguir nada. Vai acabar é deixando a emoção falar mais alto e estragando os nossos planos.
Maaya suspirou, parecendo refletir melhor sobre aquilo.
- Tem razão... Mas eu não posso deixar que ela continue naquelas condições.
- Amanhã eu volto lá; tudo bem? Talvez ela esteja mais calma e concorde em conversar comigo.
Ela assentiu em silêncio. Hideki viu as lágrimas no rosto da mãe e a abraçou com força. Sabia o quanto aquela situação era difícil e o tanto que ela estava sendo forte para suportar.
Maaya retribuiu o abraço, chorando baixinho no ombro do filho. Com a força de sua presença, tudo lhe parecia suportável.
Recapitulava novamente tudo o que Hideki havia relatado... Karin era uma menina de apenas dezessete anos. Só Deus poderia saber os motivos que a fizeram sair de casa daquela maneira. Estava sozinha, ferida, em um local inapropriado e perigoso... Podia estar sentindo frio, dor, fome... Solidão.
Sua mente reforçou mais uma vez a nota que havia feito há minutos atrás... Mães, realmente, sabem ser paranóicas...

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Notas finais do capítulo

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