Kuroi Crystal escrita por Luciane


Capítulo 3
Capítulo 2 - Mudanças




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-Eu vou acabar com a raça daquela garota!
Tiemi riu novamente. Devia já ser a décima vez que Yuuhi repetia aquela frase enquanto caminhavam pelas ruas, a caminho de casa. Volta e meia, ela não resistia e via-se obrigada a provocar:
-O que foi, maninho? Irritado porque apanhou para uma garota?
-Não ferra! – Ele rosnava em resposta, apenas para fazer a irmã rir ainda mais da situação.
E seguiram nesse clima até, finalmente, chegarem em casa.
A residência era bem ao padrão japonês: pequena, mas confortável. Tinha apenas um andar, e três quartos: um de Yuuhi, um de sua madrasta Mitsuki e, o último, era dividido por Tiemi e a caçula da casa: Asami, de dez anos.
Aliás, foi a menina que os recepcionou assim que chegaram ao pequeno hall de entrada da casa. Kawamoto Asami tinha os cabelos negros à altura dos ombros e possuía no rosto os traços do falecido Kawamoto-san. Por conseqüência, era muito parecida com o meio-irmão Yuuhi.
-Okaeri! – Ela praticamente gritou, parecendo aflita e, ao mesmo tempo, empolgada – Andem, entrem logo! Mamãe quer falar com a gente!
O jovem casal trocou olhares, intrigados. Curiosos, seguiram a irmã até a cozinha e, lá, encontraram a mulher que queria falar com eles, sentada diante de uma mesa redonda de quatro lugares.
Mitsuki era uma mulher jovem e muito bonita. Trabalhava como enfermeira em um importante hospital de Tóquio e, em conseqüência de sua profissão, estava quase sempre trajada com roupas brancas. Os cabelos negros viviam constantemente presos em um coque, com alguns fios soltos, o que lhe dava um visual ao mesmo tempo moderno e clássico. Olhando-a, Yuuhi às vezes se pegava perguntando como é que uma mulher bonita como aquela conseguia manter-se sozinha por tantos anos. No entanto, ele mesmo sabia dos motivos daquilo: Mitsuki era incrivelmente dedicada ao trabalho e à família e, com isso, parecia não ter tempo para pensar em outras coisas. De qualquer maneira, ainda que se tratasse de um pensamento egoísta, ele preferia que fosse assim. Ele a tinha como uma mãe, e seria bem irritante ver um marmanjo qualquer se metendo a besta com ela.
Sorrindo, Mitsuki pediu aos três jovens para que se sentassem. Eles assim fizeram, olhando confusos para ela.

*****
Com a ponta do lápis, ela batucava a mesa da pequena cozinha, enquanto seus olhos azuis percorriam o texto impresso no livro.
Luna sabia que a vida de um estrangeiro no Japão não era tão simples como muitos pensavam. E descobriu isso quando teve a idéia de entrar em um programa de intercâmbio e cursar faculdade naquele país. Logo descobriu que a ajuda financeira que recebia do consulado não era grande coisa para um lugar com custo de vida tão alto.
Em seu país natal, o Brasil, ela fora praticamente criada por uma família de descendentes nipônicos. Por conta disso, não tinha problemas com o idioma ou com os costumes e tradições japoneses. Mas, ainda assim, era impossível camuflar-se no meio dos japoneses ou achar que poderia ser como eles.
Em seu país, ela seria apenas uma jovem de estatura mediana, com seus um metro e setenta de altura. Mas, ali, ela era alta demais. Seus cabelos eram bem cacheados e loiros e, seus olhos, além de azuis, ainda eram grandes e expressivos (aliás, ela sabia que seriam considerados grandes até mesmo em seu país natal). No Brasil, ela poderia ser considerada uma garota normal, ou até mesmo bonita. Mas, no Japão, ela sentia-se a mais esquisita das criaturas. Os cabelos corriqueiramente amarrados de qualquer jeito, juntamente com o aparelho nos dentes completavam o seu visual e ajudavam a agravar um pouco a imagem de “patinho feio’, que ela própria tinha de si.
Viver no Japão lhe era mais uma imposição do que um sonho. Na verdade, era o sonho de sua irmã... Ou da amiga criada junto a ela, como uma irmã. Com a morte da mãe adotiva, Luna não tinha mais ninguém no mundo, além de Harumi. E quando esta decidiu que queria fazer uma prova do Consulado para estudar no Japão (e, assim, morar no país de seus antepassados, o que era algo com que ela sonhara a vida inteira), Luna viu-se entre duas opções: ou acompanhava a amiga naquela aventura, ou ficava sozinha no Brasil. E a solidão era algo que a assustava. Sem contar que ela não tinha nada que a prendesse ao Brasil: não tinha namorado e, seus amigos, eram mais como simples colegas. Por ser bastante tímida, a loira sempre tivera um tanto de dificuldades em fortalecer laços com outras pessoas.
-Que raios de kanji é esse? – Ela resmungou, ao deparar-se com um ideograma desconhecido em meio ao texto que tentava ler.
Pegou um dicionário em cima da mesa e começou a folheá-lo à procura do símbolo, mas teve sua atenção desviada ao ouvir a porta do apartamento sendo aberta. Projetou seus olhos para além da bancada que dividia a cozinha da sala e avistou sua amiga Harumi.
-Tadaima. – A recém-chegada anunciou, sem muita empolgação.
Largou a bolsa sobre o sofá e caminhou até a bancada, debruçando-se sobre ela e encarando seriamente a amiga de infância.
Luna sentiu-se preocupada com aquilo.
Olhou bem para a amiga. Harumi tinha vinte anos de idade (um a mais que ela) e também era brasileira, mas possuía ascendência japonesa. As duas tinham uma amizade de, praticamente, uma vida inteira. Suas mães estudaram juntas e eram muito amigas. Por isso, quando a mãe de Luna veio a falecer, esta passou a ser criada pelos pais de Harumi.
-Aconteceu alguma coisa? – A loira indagou, preocupada.
Passando as mãos pelos longos cabelos negros e lisos, Harumi suspirou, desanimada. Levantou a mão, mostrando que trazia um papel consigo.
Antes que Luna conseguisse adivinhar o que poderia ser aquilo, Harumi contou:
-Acho que vamos precisar encontrar outro apartamento.
A loira piscou, ainda mais confusa do que antes.

*****
-Kyoto?– Perguntaram Asami e Yuuhi, em uníssono.
-Kyoto? – Repetiu Tiemi, um tanto atrasada.
Mitsuki riu.
-É, meninos: Kyoto!
Os três jovens ficaram em silêncio, tentando absorver aquela informação. Como aquilo seria possível? Era apenas mais um dia normal na vida deles e, de repente, chegam em casa ao final da tarde e são recebidos com a notícia de que, em alguns dias, iriam se mudar para outra cidade.
-Porque isso agora, mamãe? – Tiemi questionou, por fim.
-Fui transferida para um hospital de lá. – Mitsuki explicou.
Mas Tiemi não se deu por vencida:
-E a senhora é obrigada a aceitar essa transferência?
-Obrigada não, Tiemi. Mas os seus avós estão lá... E eles já estão tão velhinhos...
-É, eu entendo, mamãe... Mas...
Mitsuki a interrompeu:
-Sabe que eu nasci e fui criada em Kyoto. Vim pra cá depois que me casei e acabei ficando... Mas nunca vou conseguir me acostumar a viver em Tóquio. Minha vida está em Kyoto.
Tiemi olhou para Yuuhi, esperando que o rapaz também dissesse alguma coisa. Porém, para sua surpresa, ele apenas levantou-se da cadeira e anunciou:
-Valeu, então. Faça uma boa viagem e não esqueça de escrever.
Diante disso daquelas palavras, Tiemi e Asami puderam notar um brilho de tristeza nos olhos da mãe.
-Querido... Você está dizendo que...
-É, Mitsuki, eu não vou para Kyoto. Minha vida tá ótima por aqui e eu não pretendo mudá-la.
A mulher suspirou, tristemente. Sabia que não poderia obrigar o rapaz a ir com ela (aliás, até poderia, tendo em vista que ela era a responsável legal por ele. Contudo, não se sentia nesse direito).
-Querido, eu gostaria que pensasse melhor sobre isso.
-Não tenho o que pensar, Mitsuki. Não vou para Kyoto, sacou?! Não vou!
Dizendo isso, Yuuhi saiu. Após alguns segundos, Tiemi o seguiu, correndo.

*****
-ISSO É UM ROUBOOOOO!!
Harumi fez careta, sentindo os ouvidos doerem com aquele grito histérico.
-Calma, Luna!
-Calma? Como eu posso ficar calma?
Desesperada, a loira andava de um lado a outro pela pequena sala do apartamento, enquanto encarava o papel em sua mão.
-Isso é um absurdo! Não podem aumentar o aluguel assim, de um mês para o outro, sem aviso prévio nem nada!
Sentada no sofá, Harumi explicou calmamente:
-Na verdade, eles avisaram, sim. Já vinham avisando há muito tempo.
-Mas não esperava que fosse um aumento desses! Precisamos de um advogado.
-Se tivéssemos dinheiro para pagar um advogado, teríamos para pagar o aluguel.
Desanimada, Luna deixou-se cair sentada no sofá, ao lado da amiga.
-E agora, o que vamos fazer?
Harumi sentiu todo o peso da pergunta em suas costas. De uma forma estranha, sentia-se responsável por Luna. Mesmo a diferença de idade entre elas sendo praticamente insignificante, era como se ela fosse a adulta responsável da casa. Luna era insegura demais para tomar decisões, o que obrigava Haruna a assumir seu lugar de “irmã mais velha”.
-Fica tranqüila, Lu-chan. – A mais velha disse, com um tom de voz calmo – Nós vamos encontrar outra casa.
-Mais barato do que pagávamos aqui? Impossível. Qualquer cubículo nessa cidade parece valer ouro!
-Fica tranqüila. – Harumi repetiu, enquanto se levantava. De pé, passou a mão na cabeça da amiga, como se esta fosse uma criança e, sorrindo, garantiu – Eu vou dar um jeito, tá?!
Luna também sorriu, sentindo-se mais tranqüila.
Se Harumi lhe garantia que tudo iria acabar bem, ela acreditava.

*****
Diante da porta do quarto, Tiemi cruzou os braços encarando o irmão. Este, por sua vez, fingia ignorar a presença dela ali e apenas se jogou na cama, apoiando a nuca nas mãos e fitando o teto.
Cansada daquele fingimento, Tiemi invadiu o quarto e, irritada, iniciou o seu sermão:
-Você é mesmo muito insensível! Por que tinha que falar daquele jeito com a mamãe?
Sem sequer olhá-la, o garoto retrucou:
-Vê se entende: ela é SUA mãe! E não minha. Coloque isso nessa sua cabeça.
-E você põe uma coisa na sua: ela nunca fez diferença entre você e eu e Asami. Sempre te tratou com o maior carinho. Você poderia, pelo menos, ser um pouco menos ingrato.
No fundo, Yuuhi sabia que ela estava com toda a razão. Ele não tinha absolutamente nada contra a madrasta, muito pelo contrário. Ela era a única mãe que ele chegara a conhecer, já que a sua biológica faleceu quando ele ainda era um bebê. E Mitsuki, de fato, sempre dedicara a ele o mesmo amor que dera às suas duas filhas.
Entretanto, a situação em si o fizera perder o controle. Que história absurda era aquela de se mudar? Ele adorava a sua vida, do jeito como estava: sua escola, seu status, suas brigas, suas garotas... Ele tinha coisa demais para abrir mão.
-Não sou um ingrato. – Ele respondeu, por fim – Também gosto dela e reconheço tudo o que fez por mim... Talvez eu tenha pegado até um pouco pesado com o jeito com que falei... Mas não vou mudar de opinião. Eu NÃO vou para Kyoto. Não vou, e ponto final. – Num impulso, sentou-se na cama e, finalmente, olhou para Tiemi – Agora dá o fora, vou me arrumar.
-Arrumar? – Ela piscou, intrigada. – Ué... Vai sair? – E sorriu, animada – Demorô, vou junto!
Ele não deve qualquer dó de acabar com aquela empolgação:
-Mas nem em sonho! Aonde vou não é lugar para garotas.
-Ué... A Manami não vai com você?
-Não é lugar para garotas de família. – Ele se corrigiu, com a maior naturalidade do mundo.
-Não interessa! É festa? Eu também vou.
Respirando fundo, Yuuhi levantou-se, foi até a irmã e a segurou pelos ombros. Olhando-a com autoridade, tentou explicar de forma clara os motivos pelos quais o lugar que ele ia não era apropriado para uma garota como ela:
-Presta atenção, Tiemi-chan: o lugar pra onde eu tô indo vai estar cheio de brigas, bebidas, sexo, drogas...
-Ah... É? – E ela virou-se para o corredor, colocando as mãos em forma de concha sobre a boca e gritando - OW MANHÊ, NA FESTA QUE O YUUHI VAI, TEM... Humpf...
-Cala a boca, nanica! ¬¬’ – Sussurrou ele, enquanto lhe tapava a boca.
Em vão, pois Mitsuki já estava no corredor, parada diante da porta do quarto.
-Yuuhi, se você vai a uma festinha, o que custa levar sua irmã contigo?
Yuuhi soltou Tiemi, voltou-se para a madrasta e, revoltado, protestou:
-Ela nem é minha irmã! Ò_ó
-Mas sou como se fosse, Yuu-chan – Rebateu Tiemi, abrindo um largo sorriso de deboche.
Vencido, ele suspirou:
-Aff... Tá bom. Eu te levo, peste.
Tiemi sorriu ainda mais, sentindo-se vitoriosa. Enquanto isso, Mitsuki começava as recomendações de sempre:
-Preste atenção, Yuuhi...
-Tá, eu sei, Mitsuki – Ele a interrompeu, já conhecendo bem toda aquela ladainha de todas as noites – ...Não vou beber muito, não vou brigar... Muito... Não vou me drogar, usarei camisinha, tomarei conta da baixinha pra nenhum idiota se meter com ela e voltarei antes das cinco.
-Meia-noite. – Mitsuki retrucou, enérgica – Amanhã é dia de aula, esqueceu?
-Tá... Então voltamos às três.
-Meia-noite.
-Três, ôw! ¬¬’
-Meia-noite.
-Duas, e não falamos mais nisso!
-Meia-noite.
-¬¬’ ...Tá, tá! Mas, pra isso, você vai ter que me emprestar o carro! ^-^
-Quando você tiver idade para dirigir, conversaremos sobre isso ^-^
-¬¬’ ...Só por isso eu vou voltar meia-noite e meia!
-Meia-noite!
-Aff... ¬¬’ Tá, meia-noite! u.u
Rindo da situação, Mitsuki olhou para Tiemi e passou as recomendações dela:
-E você, filha... Não esqueça de levar a chave da porta, viu?!
-Tá, mãe! ^-^
Yuuhi piscou, mal conseguindo acreditar naquilo.
-O.o... Peraí, Mitsuki... É só esse o conselho que você dá a ela? ¬¬’ – Ele resmungou, irritado.
Mitsuki apenas riu e, sabendo que seria desnecessário dar qualquer resposta, voltou para a cozinha. Ficando sozinhos, Tiemi e Yuuhi se encararam. Ele, irritado por ter sido obrigado a carregá-la consigo em sua noitada. Ela, com a maior expressão de deboche que conseguia fazer.
Quanto o rapaz abriu a boca para dizer alguma coisa, Tiemi se adiantou em, num movimento rápido, apertar-lhe as bochechas. Em seguida, ela correu, se trancando no banheiro... Para desespero do irmão.
-Eeeeeeeei!! Embaça pro meu lado e ainda entra no chuveiro antes de mim??
Vendo que continuar reclamando seria em vão, o rapaz bufou e entrou novamente em seu quarto.

*****
Enfim, ela entendeu. Aquele, realmente, não era lugar para uma garota como ela.
Tiemi analisava o ambiente, sentindo-se apavorada. Sempre soubera que seu “irmão” freqüentava lugares estranhos, com pessoas mais estranhas ainda... Mas nunca poderia imaginar que fossem TÃO estranhas assim.
Os homens lhe davam medo. Falavam alto, bebiam muito e, ao que parecia, tudo por ali era motivo para uma briga. Já as mulheres faziam um estilo vulgar.
Para qualquer lado que olhasse, via casais se agarrando descaradamente pelos cantos, brigas e jovens enchendo a cara sem limites ou se drogando sem o menor constrangimento.
-Yuuhi, eu quero ir embora! – Ela choramingou, demonstrando verdadeiro desespero.
Yuuhi gargalhou e encarou a irmã como quem diz a célebre frase: “eu bem que te avisei”. Ele tentou alertá-la que aquele não era ambiente para uma garota de respeito, mas ela resolveu, simplesmente, não ouvi-lo. Tinha muita sorte por estar ao lado dele, porque era certo que nenhum sujeito seria tolo o suficiente para tentar qualquer aproximação de uma ‘acompanhante’ de Kawamoto Yuuhi.
Poucos minutos depois que eles chegaram, Manami os avistou e aproximou-se deles. Beijou Yuuhi, cumprimentando Tiemi logo em seguida:
-E aí, Tiê-chan! O que faz aqui, fofa?
-Nami-chan! – Tiemi lacrimejava, assustada – Como você consegue freqüentar lugares como esse?
Percebendo a expressão de desespero da amiga, Manami apenas riu. Tiemi poderia ser mais velha do que ela, mas não tinha nem um milésimo de sua “experiência de vida”.
Beijou novamente Yuuhi, sussurrando em seguida próximo ao seu ouvido:
-Tá a fim de ir pra um cantinho mais sossegado?
Yuuhi respondeu apenas olhando para Tiemi, e em seguida para Manami, fazendo-a entender que, naquela noite, sua diversão seria totalmente restrita... Estava de “babá”.
Manami sorriu e, sem alternativa, simplesmente se afastou, indo para outro ambiente da boate. Não estava nem um pouco disposta a perder sua noite ajudando Yuuhi em seu trabalho de “babá”. O rapaz a seguiu com os olhos, desanimado. Olhou ao seu redor... Brigas, mulheres... E ele ali, tendo que bancar o irmão mais velho de Tiemi.
-E ela nem é minha irmã... – Pensou, antes de lançar um olhar nada amigável para um homem que passava olhando descaradamente para a garota – Tá olhando o quê? Ò_ó Irmã de Kawamoto Yuuhi num é pro bico de imbecis feito você não, tá ligado?
-Eu quero ir emboraaaa!!
E uma enorme gota escorreu na testa de Yuuhi, quando Tiemi abraçou o seu braço com força.
-Ah, quer, é? Isso é pra tu aprender a me dar ouvidos. Eu disse que isso não era ambiente pra você.
-Tá, tá... Aprendi a lição. Agora podemos ir?
-Tá maluca? Ainda não são nem dez da noite e eu nem bebi nada.
E, sem que desse tempo para a garota sequer pensar em argumentar, Yuuhi saiu arrastando-a até o balcão. Quando foi atendido, pediu:
-Um sakê pra mim e um refri pra minha mina aqui.
-Sua mina? – Questionou Tiemi, franzindo a testa.
Tal pergunta fez Yuuhi ficar ainda mais irritado:
-É o quê? Quer que eu diga pra todo mundo que a garota que tá andando agarrada no meu braço de cima a baixo é a minha ‘irmãzinha’?
-Todos sabem que somos irmãos.
-Errado! Todos sabem que você é filha da minha madrasta. Não há mal algum em pensarem que ando te dando uns pegas. Afinal, isso não seria nenhum pecado.
Tiemi fez careta:
-Mas seria nojento.
Yuuhi não precisou refletir muito para concordar com aquelas palavras. Afinal, mesmo não tendo o mesmo sangue, os dois cresceram como irmãos e, pra eles, era impossível se olharem de outra forma.
-Certo, tem razão. – Ele concordou, por fim – Mas fica aí na sua e pára de me encher. Eu já tive um péssimo dia por conta daquela monstrenga, e você conseguiu também acabar com a minha noite.
-Monstrenga?
-É, a tal Sayaka.
-Seria “Sayuki”?
-É tudo com S.
Receberam suas bebidas e começaram a tomá-las em silêncio. Tiemi olhou mais uma vez ao redor, analisando novamente o local. Nisso, seus olhos repousaram numa jovem, também sentada no balcão do bar, um pouco distante deles. Cutucou o braço do irmão.
-Yuuhi?
-Quié, peste?
-Por falar na Sayuki... Aquela ali não é ela?
O rapaz seguiu os olhos na direção em que Tiemi apontava. Sentada diante do balcão, estava a garota, vestindo uma calça larga, tênis e um casaco preto, com um capuz que cobria parte de seu rosto. Com isso, ele ainda levou algum tempo para reconhecê-la. Aliás, quem olhasse a primeira vista jamais pensaria que pudesse se tratar de uma garota.
-Olha a monstrinha ali... – Murmurou Yuuhi.
Tiemi ficou até preocupada ao notar o brilho nos olhos do rapaz naquele momento. Ele estava com tanto ódio que certamente iria esquecer totalmente de sua presença e partir para uma briga.
E era exatamente o que ele parecia determinado a fazer. Seriamente, ele se levantou, rumando em direção à “rival” e sentando-se ao seu lado. Tiemi limitou-se a continuar tomando seu refrigerante, enquanto escondia o rosto tentando fingir que não conhecia aquele moleque baderneiro (que, aliás, corria sérios riscos de tornar a apanhar para uma garota).
Sayuki Karin nem ao menos pareceu perceber a presença de alguém ao seu lado e continuou tomando seu refrigerante. Reparando no que ela bebia, Yuuhi provocou:
-Mas vejam só isso: a menininha tá tomando refrigerante. Cena mais meiga!
Ela pareceu não ligar a mínima para o comentário. Yuuhi começou a se irritar.
-Você é sempre mal educada desse jeito?! Sua mãe não te deu educação não, é?!
Logo, o adolescente percebeu que ela não havia gostado do comentário, pois bufou e pôs a mão no bolso do casaco, de onde tirou alguns ienes, jogando-os sobre o balcão para pagar sua despesa. Imediatamente, levantou-se para deixar o local, mas, ao virar-se, deparou-se com o caminho sendo bloqueado por Yuuhi.
Não demorou nada para começar uma aglomeração ao redor dos dois. Assistir brigas era parte da diversão daquele lugar... E brigas envolvendo Kawamoto Yuuhi eram sempre as melhores. Algumas pessoas ali já conheciam a novata Sayuki Karin e sabiam que ela também não era páreo fácil. Aquela seria a “luta do século!”
De frente um para o outro, eles se encaravam. Yuuhi não pôde deixar de se surpreender com o quão sem emoção era o olhar daquela garota.
Para sua maior surpresa, ela simplesmente o empurrou, saindo apressada do local. Ele riu, observando enquanto ela saía. Em seguida olhou para a pequena multidão ao seu redor e disse, com a voz alta:
-Estão vendo? Sabem o que ela é? Uma garota sensata! Sabe que ousar enfrentar Kawamoto Yuuhi é uma sentença de morte. Alguém aí quer pagar pra ver?
Silêncio absoluto. Todos se entreolharam, esperando para ver se algum corajoso ou louco se habilitava. Como ninguém o fez, optaram por simplesmente aplaudir, empolgados. Yuuhi levantou as mãos para o alto, vitorioso, como se estivesse recebendo um troféu.
-Licença... Ai, dá licencinha aí. – Ia pedindo Tiemi, enquanto entrava no meio da multidão tentando se aproximar de Yuuhi – E não se atrevam a passar a mão em mim que eu sou irmã do Kawamoto! Ò_ó – E finalmente conseguiu chegar até o irmão. –Yuuhi, podemos ir embora agora? Cê já bebeu, já brigou, já marcou presença... Agora vamos?
-Tá bom, peste! Deixa eu só pagar a conta e... – Ele fez uma pausa, ao colocar as mãos nos bolsos e não encontrar sua carteira. Olhou pasmo para a porta por onde Karin havia saído – MAS QUE DESGRAÇADA!!!
E correu, boate a fora.
Ao ver-se sozinha naquele local nojento, Tiemi se desesperou:
-Eeeeei... Não me deixa aqui sozinha não!!! Me espera, YUUHIIIII! – E também saiu correndo, no rastro do irmão.

*****
Estava uma noite fria. As ruas por onde andava se encontravam praticamente desertas. Mas ela não parecia se importar com isso. Colocou a mão no bolso do casaco e tirou uma carteira. Abriu, olhando quanto de dinheiro havia... Não era muito, mas daria para alguma coisa.
Num determinado momento, sentiu que estava sendo seguida e parou. Virou-se para trás e viu que se tratava de um grupo de arruaceiros.
-Pode passando a carteira aí, cara. – Ordenou um deles, que já se aproximava com um risinho maquiavélico.
“Cara”? ... É, ela já estava acostumada a ser confundida com um garoto...
Pôs a carteira no bolso e colocou-se em posição de ataque. Os meliantes apenas riram, antes de partirem para cima dela.

*****
-ME ESPERA YUUHIIII!!
Após correr o máximo que conseguia, Tiemi finalmente conseguiu alcançar o irmão. Ele bufava... Estava furioso:
-Aquela maldita dos infernos roubou minha carteira!
-Ué... Além de apanhar, você também foi roubado por uma garota, foi?! – Ela riu sarcasticamente, apenas para receber um olhar ameaçador como resposta –...Tá, tá... Não me olha com essa cara, não ¬¬! Foi só brincadeira.
Yuuhi já se preparava para responder com algo não muito educado, quando avistou seis homens caídos no chão. Correu até eles. Tiemi o seguiu.
-Ah, Yuuhi, coitadinhos. Temos que ajudar eles.
O rapaz estapeou a própria testa diante do comentário preocupado da irmã.
-Acorda, tapada! – Ele abaixou-se ao lado do único dos rapazes que ainda estava consciente. – Pra que lado foi a mina que fez isso com vocês?
-Mina? Era um homem, cara! Um não: eram dez! Ou melhor, quinze! Tinham dois metros de altura cada um, e...
-Tá, poupe-me ¬¬” . Fala logo pra onde ela foi.
-Tá, era apenas um... E podia não ter dois metros, mas... Não era uma mulher!
-Tava de capuz preto?
-Er... Estava.
-Sinto informar, mas cês levaram mó sova de uma garotinha colegial ¬¬’. Não se fazem mais marginais como antigamente ¬¬’ ...Agora fala logo, pra onde ela foi?
Sentindo-se totalmente envergonhado com aquela situação, o delinqüente apontou para a direção em que Karin havia ido. Yuuhi levantou-se e voltou a correr. Tiemi, novamente deixada para trás, tornou a segui-lo, assustada.
Logo entraram em uma rua onde havia apenas casas de classe média-alta. Tiemi reconheceu de imediato o lugar.
-Não é nessa rua que o Kazuo-kun e a Nami-chan moram?
-Aqui mesmo. – Respondeu ele, com o olhar bem atento a tudo ao seu redor.
-Mas... O que a Sayuki estaria fazendo aqui?
-E o que mais? Na certa deve tá procurando uma casa de bacana pra assaltar.
-Acha que ela é tão delinqüente a esse ponto?
-Aquilo ali responde a sua pergunta? ¬¬’
A garota olhou na direção em que Yuuhi apontava e avistou Karin de pé, no alto do muro de uma casa ao final da rua, caminhando em direção a uma das janelas.
Sem pensar duas vezes, o rapaz correu até lá, também escalando aquele muro numa velocidade incrível. Karin parou de caminhar, olhando intrigada para aquilo.
-Te peguei, sua ladrazinha! Devolve minha carteira e dá o fora daqui!
Ela não respondeu. Apenas continuou olhando totalmente intrigada para aquele sujeito. Logo o reconheceu como sendo o tapado que veio desafiá-la pela manhã e de quem roubara uma carteira há menos de uma hora. O que ele estaria fazendo ali?
Num determinado momento, a porta da casa foi aberta e o barulho da fechadura distraiu Karin. Yuuhi aproveitou o momento de distração para pular em cima dela, na tentativa de recuperar sua carteira. Com isso, os dois acabaram caindo do muro, no quintal da casa. Tiemi assustou-se com aquilo.
-YUUHI!
Preocupada, ela correu até o portão. Olhando para o quintal através das grades, encontrou Sayuki caída ao chão, com Yuuhi em cima dela, segurando-a pelos braços. Segundos depois, Tiemi pôde ver o irmão ser atingido na cabeça por uma... Frigideira? Olhou para quem o agredia, encontrando uma mulher de olhos e cabelos negros, que não deveria ter mais de trinta e cinco anos de idade. Seus cabelos ondulados batiam pouco abaixo dos ombros e já usava trajes de dormir.
Yuuhi foi obrigado a largar os braços de Karin, para segurar aquela frigideira que continuava a bater repetidas vezes contra sua cabeça.
-Ei, para tudo aí, minha senhora! Eu tô te livrando de ter a casa assaltada e tu me agride?
-Assaltada? – Espantou-se a dona da casa.
Do portão, Tiemi confirmou:
-É, moça. Aquela garota ali que tava tentando te assaltar.
A mulher olhou para a pessoa que Tiemi apontava e surpreendeu-se:
-Karin? ...Mas ela é minha sobrinha.
Yuuhi se chocou com aquilo. Tornou a olhar para Sayuki, repreendendo-a:
-Assaltar a casa da própria tia? Que feio!
-Ela mora aqui.
-Ela mor... Como é?! O.o
-Baka... – Murmurou Karin, empurrando Yuuhi de cima dela e levantando-se.
Yuuhi também se levantou. A dona da casa sorriu para ele.
-Desculpe o mal entendido, meu jovem. Mas é que minha sobrinha vive esquecendo as chaves e, ao invés de bater, prefere cortar caminho entrando pela janela do quarto. – Ela olhou para a sobrinha e sorriu docemente – Não é mesmo, querida?
Karin respondeu encarando-a de modo hostil. Em seguida tirou uma carteira do bolso e a jogou para Yuuhi. Encarou-o por um instante e entrou em casa.
-Mais uma vez, desculpem o mal entendido. – Pediu a dona da casa, humildemente.
Yuuhi também se desculpou e ela abriu o portão para que ele saísse. Assim que ele e Tiemi começaram a caminhar pela rua, viram um homem alto, de olhos e cabelos castanho-claros – nitidamente bêbado –, passar por eles. Seguiram-no com os olhos e o viram entrar na mesma casa de onde haviam acabado de sair.
Os dois se entreolharam e seguiram o seu caminho. Já passava das onze e, se queriam chegar em casa antes da meia-noite, precisavam correr.

*****
Quando entrou em casa, Karin subiu imediatamente as escadas, indo para o seu quarto. Teve o cuidado de verificar se a porta estava bem trancada.
Tirou o casaco, jogando-o de qualquer maneira dentro do armário e, em seguida, jogou-se na cama fitando o teto, pensativa. Na verdade, estava preocupada. Costumava passar o dia inteiro na rua. Saía antes que todos acordassem e só regressava durante a noite. Geralmente, entrava pela janela, para não correr o risco de esbarrar em seus tios... Mas, nesse dia, aquele tapado chamado Kawamoto havia estragado tudo.
-Baka... – Murmurou, entre dentes.
Apreensiva, desviou os olhos para a porta ao ouvir passos no corredor. O som foi ficando cada vez mais próximo, até que ela viu a maçaneta sendo mexida.
Seu sangue gelou ao imaginar o que estaria por vir... Mas não ia permitir que aquilo acontecesse novamente. Levantou-se num pulo, indo até a janela. Abriu-a e colocou o primeiro pé sobre o patamar, já se preparando para pular, quando sentiu uma mão segurar sua boca com força para que não gritasse, puxando-a de volta ao quarto. Em seguida, sentiu a boca dele aproximar-se de seu ouvido, sussurrando:
-Não adianta mais tentar se esconder. Fiz uma cópia da chave.
Os olhos da garota se alargaram naquele momento. Se havia no mundo uma pessoa que pudesse apavorá-la, era aquele homem.

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