Não São Flores escrita por Tea Cup


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Tive a ideia para esse conto enquanto assistia o jornal. Espero que goste! 0/



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         Era a primeira vez que eu fumava. Não sei de onde surgiu essa vontade, mas há certo tempo venho adquirindo o hábito de segurar canetas entre os dedos e levá-las aos lábios, sugando-as, como se isto pudesse diminuir minha ânsia de tingir meus pulmões e dentes de preto.

         Comprei meu primeiro maço e, instintivamente, caminhei até o velho parque municipal. Saltei a catraca quebrada que, anos atrás, regulava a entrada e saída dos visitantes. Os números não mudariam tanto se ainda funcionasse, a catraca não teria preconceitos com os novos visitantes do ponto de drogas mais badalado da cidade. Procurei um banco que não estivesse sujo de urina ou vômito, as margens da pequena lagoa poluída. Acabei me sentando na grama seca, ao lado de garrafas e latinhas de bebidas baratas, pelo menos era mais limpo que os bancos.

         Ignorando o cheiro pútrido que parecia emanar de cada cantinho daquele lugar, acendi um cigarro e dei meu primeiro trago. Tossi tanto que nem percebi o garotinho maltrapilho que se aproximou meio rastejante do lugar onde eu estava. Ele se aproximou mais e agachou na minha frente, colhendo algumas flores miúdas que, por algum tipo de milagre, conseguiram nascer naquele monte de palha. Segurava as flores que colhia com uma firmeza absurda, como se temesse uma rebelião, seguida de um eficaz plano de fuga.

         – Colhendo flores para a namorada? – Perguntei a ele, apresentando um sorriso amigável. Gosto de puxar assunto com esses moleques na rua, às vezes são bem mais agradáveis que muitos adultos por aí.

         – Não, não! Não tenho namorada! – O pivetinho acenou negativamente com a cabeça tão forte que pensei que fosse arrancá-la do pescoço – E não são “flores”, são amigas do Lulu. Ele morreu há esses dias e mamãe o enterrou no quintal lá de casa, então estou levando algumas amigas novas para visitá-lo.

         Ah sim, ele estava levando flores para o “túmulo” do cachorro...

         – Elas vão mesmo ficar muito felizes por conhecê-lo! – Afirmei, sentindo certa pena do garoto.

         – Com certeza vão! O Lulu gostava tanto das flores, eles brincavam todas as vezes que a mamãe se irritava e o colocava no quintal, fazia a maior sujeira! Era sempre eu quem tinha que lavá-lo depois.

         – E ele dava muito trabalho? – Não consegui segurar outra tossida escandalosa.

         – Ele era meio travesso, meio capeta, mas não era tão mal como mamãe costumava dizer. Ela não tinha muita paciência com ele, então era minha responsabilidade levar para passear, alimentar, dar banho... Ela dizia que se o papai não fosse um cafajeste poderia me ajudar a cuidar do Lulu direito, mas ele nunca ia lá em casa.

         “Eu sei que é errado, mas às vezes ficava com muita raiva de mamãe. Ela ficava muito estranha quando bebia aquela água com cheiro estranho. Nessas horas, a paciência com o Lulu diminuiu ainda mais e batia nele com qualquer coisa que encontrasse pela frente, jornais, revistas, chinelos, tudo! Ai do Lulu se ele fizesse xixi no chão ou em cima da cama!”

         – Mas vocês não lhe ensinaram a fazer xixi no lugar certo? – Mais tosse.

         – Até tentei, mas ele ainda era muito novinho. Quando isso acontecia, eu sempre tentava tirá-lo de perto dela e o escondia no quintal, no meio das flores. Aí era só fazer carinho que ele ficava quietinho.

         Matei aquele cigarro e acendi outro logo em seguida, a história do garoto me distraia dos fortes acessos de tosse, e antes que eu pudesse perguntar algo, ele começou a explicar.

         – O Lulu era bem saudável, mas acabou adoecendo um dia. Eu avisei para a mamãe comprar os remédios, só que mesmo assim, tudo que tinha nas sacolas que ela levava para casa toda noite eram garrafas. E ele só piorava! Eu o colocava para dormir na minha cama e vigiava o tempo todo, para impedi-lo de fazer estripulias caso melhorasse um pouco, mas ele não fez nada.

         “E Lulu chorava, chorava e chorava, bem alto. Até o dia em que mamãe perdeu a paciência e agarrou a primeira revista que viu pela frente. Quando se cansou, Lulu finalmente parou de chorar.”

         – Ela não chamou ninguém para cuidar dele depois?

         – Não precisou, Lulu não acordou mais. Acho que mamãe se arrependeu do que fez. Logo de manhã, carregou ele até o quintal como nunca a vi fazer antes e o enterrou no meio das amigas dele. Mas elas começaram a murchar agora, então resolvi levar novas amigas para lhe fazer companhia! – Abriu um sorriso, cheio de orgulho de si mesmo.

         Consegui apenas afirmar com a cabeça diante de um relato tão brutal. Sem saber o que dizer, e sem ocupação para as mãos, retirei o maço de cigarros do bolso e puxei um deles com os lábios.

         – Ah, o Lulu era igualzinho a esse quando nasceu, era uma gracinha! – Exclamou, apontando para a caixa de cigarros.

         No verso da caixa, estava uma advertência não muito útil sobre os malefícios do tabaco. Acima, a imagem de um bebê ligado a inúmeros tubos.

         – O Lulu se parecia com este bebê?

         – É, era igualzinho! Todos têm a mesma cara de joelho – Riu – Mas só eu o chamo de Lulu, ta? O nome dele é Luis Eduardo. 

         – Luis...? – Estava sem fala, o cigarro ameaçava soltar-se dos meus dedos.

         – Sim, é o nome mais bonito do mundo, fui eu que sugeri para a mamãe, parece nome de rei! Mas como ele ainda era pequenininho, parecia mais com Lulu.

         – Oh sim, é verdade... E vai pegar mais flores para ele? – Escondi os olhos marejados de lágrimas, o que se mostrou inútil. O menino já estava longe, correndo para fazer sua entrega.  

         – Já te falei, não são flores!

         Ele tinha razão, não se tratava apenas de flores.  


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Notas finais do capítulo

Estava procurando algum site com a notícia que eu assisti no jornal para colocar aqui, mas não encontrei, já que existem milhões de casos assim...
Obrigada por ler, diga o que achou, se expresse!:D