Eu estou num lugar que não consigo reconhecer bem. Ouço vozes assustadas, algumas chamam ambulância. Finalmente me acostumo com a claridade e consigo focar os olhos no lugar. Uma rua. Estou caído no meio da rua mas parece que não sou o alvo das atenções. Há um grupo de pessoas em volta de algo na calçada. Me levanto com dificuldade, minha cabeça parece pesar 10 quilos a mais. Meus passos saem trocados, desequilibrados, nervosos por algum motivo que ainda não sei. Chego perto das pessoas, esbarro em algumas. Sangue. Muito sangue no chão. Um homem de casaco ao chão, o sangue parece ser dele. Alguém vira o homem – talvez a fim de identificá-lo pelo rosto. Meus joelhos fraquejam. O rosto familiar. O cachecol azul. Meu melhor amigo ao chão. Minha cabeça gira mais uma vez, a lembrança me invade brutalmente.

‘Adeus, John.’

Sua voz rouca, meu grito, a queda.

Empurro duas pessoas que entraram na minha frente.

‘Ele é meu amigo’

‘Ele é meu amigo, me deixem passar’

Eu quero gritar, eu quero expulsar todos dali mas não encontro força. Minhas pernas parecem não obedecer, meu corpo inteiro parece dormente. Há uma sensação dominante. A dor. Dor física, eu posso senti-la em todos os músculos do meu corpo. Dói e eu mal consigo articular minhas palavras. Elas saem quebradas assim como eu. Vejo uma brecha entre as pessoas, minha mão procura por Sherlock. Seu pulso fino. Minha mão o agarra na tentativa desesperada de sentir qualquer indício de vida naquele corpo. Nada. Uma mão agarra a minha, minha mão se perde de Sherlock. Eu estou engasgado, alguém parece me abraçar, estou com a cabeça no peito de alguém que me consola.

‘Sherlock’

‘Sherlock’

‘SHERLOCK’

- SHERLOCK! – Abri meus olhos. O quarto. O silêncio da madrugada. O vazio de quem perdeu a única pessoa que importava.

Um milagre, por mim Sherlock

Pare com isso, pare com isso

Meu rosto quente, o coração martelando contra o peito e novamente eu John Watson me rendendo ás lágrimas -  pela segunda vez naquele mesmo dia.

Não esteja morto

Não esteja morto

Você conseguiria fazer isso por mim?

Três meses depois e eu ainda sonho todos os dias. A mesma angústia, a mesma dor, o mesmo grito engasgado no meio da noite. Ninguém está aqui para me acalmar, ninguém pode pegar um copo de água pra mim ou simplesmente me insultar e ignorar meus pesadelos. É toda essa ausência que pesa, faz com que eu me sinta 30 anos mais velho, cansado e com raiva. Por que fingir pra mim? Por que continuar me enganando querendo que eu acredite naquela morte?

Ninguém poderia ser tão esperto

Você poderia

Minha fé em ti briga com o que meus olhos presenciaram.

Eu acredito em Sherlock Holmes

E toda a briga se acalma.

Eu sei que um dia eu vou estar no meu sofá, minha campainha vai tocar e você vai estar do outro lado da porta. Talvez com um sorriso escondido nos lábios, talvez com os olhos de saudade. É mais provável que apareça agitado como sempre foi, entrando sem ser convidado, perguntando pelos experimentos que deixou, lendo em mim toda a vida infeliz que tenho levado. Talvez você leia todas as lágrimas que derramei, todos os gritos que me rasgaram a garganta.

Talvez você leia os meus sentimentos mesmo sem saber lidar com eles.

O fato é que você vai voltar e me contar como enganou a todos. Vai resmungar algumas coisas, vai colocar os experimentos na geladeira, insultar minhas namoradas, estragar os meus encontros, insultar a minha inteligência. Eu estarei esperando dia após dia, com a certeza de que logo acontecerá.

He was my best friend and I'll always believe in him.

Fim