Há muito tempo, quando as clareiras eram encantadas e as cavernas, temidas, um rei teve um belo filho, que nomeou de Romeo. Como era tradição no reino, os maiores profetas foram chamados para definir o futuro da criança. A maioria dos videntes lhe proferiu uma bela e memorável história, que agradava muito aos pais. Quase ao fim da cerimônia, um humilde senhor adentrou o salão principal do castelo. “Ele vestia uma capa rota e encardida, e seus olhos eram fundos como a morte”, relatavam os escribas da época. Ele se aproximou do berço do recém-nascido, fez uma reverência para os pais e anunciou que havia vindo de muito longe para profetizar o futuro do primogênito. O rei ficou apreensivo, mas mesmo assim deixou que o homem verbalizasse sua visão. E ela não foi nada agradável:
- Ao completar a coroação do jovem príncipe, um infortúnio lhe ocorrerá. Um infortúnio que iniciará a queda do Império e durará duzentos anos...
Horrorizado, o rei ordenou aos guardas que tirassem o velho do aposento. Mas, enquanto era arrastado salão afora, sua profecia continuava saindo de seus lábios, como se ele estivesse em transe:
- Quando este mundo estiver em trevas, uma antiga força ressurgirá das cinzas, e tirará o tirano do trono, trazendo a prosperidade novamente.
Então, finalizou com a frase que causou sua execução na guilhotina dois dias depois:
- SEU REINADO ESTÁ CHEGANDO AO FIM, REI LUDRIC! SUA FAMÍLIA NÃO MAIS SERÁ DONA DA LINHAGEM QUE GOVERNA ESSAS TERRAS!
Esse episódio foi imediatamente apagado da história do reino de Ludric, e o povo aos poucos foi esquecendo. Eu mesmo não estaria narrando o conto, se a profecia não tivesse se cumprido...
Porém, dezenove anos depois, o rei Ludric ficou muito doente. Isso abalou o reino, pois ele era um bom líder, afinal de contas. Como seu último pedido, ele chamou o filho até seu leito, acompanhado de dois escribas, da mãe, Alice, e do tio, Averon.
- Meu filho... Meu reinado está chegando ao fim. Você, como futuro herdeiro, irá ascender ao meu trono e governar como lhe ensinei, de maneira justa e sábia. Eu tenho orgulho de você, jovem Romeo, e sei que será bom e seguirá meus passos, como o filho que criei.
O jovem, com lágrimas nos olhos, assentiu para o pai, incapaz de lhe dirigir palavra. A rainha segurava a mão de seu querido marido, os olhos já embaçados de água. Até os escribas pareciam emocionados com a bênção do velho rei. O único que permanecia impassível era Averon, que batia o pé levemente no chão, com impaciência. Quase sem forças, Ludric olhou para o irmão e murmurou:
- Averon, você será o responsável pela cerimônia de coroação. Quero que este jovem se torne rei com todas as honrarias possíveis, e que seja o líder mais querido dessas terras. Este é meu último pedido, como homem, pai e rei.
Averon assentiu, mudo, embora parecesse mais aborrecido que emocionado. O resto, você já deve saber, o rei morre com um sorriso no rosto e esposa e filho choram em seu leito. Nenhuma novidade.
Semana seguinte, ocorreu a coroação. Foi uma cerimônia triste: muitas mulheres, nobres e camponesas, usavam roupas pretas em homenagem ao falecido rei. O tio do príncipe, apesar de não parecer se agradar com o evento, fez um trabalho impecável com a coroação: contratou até magos para um show de fogos no término. Quando colocou a coroa simbólica na cabeça do mais novo líder, Averon sorriu sombriamente e pediu:
- Eu gostaria de dizer algumas palavras em honra ao seu futuro reinado, jovem Romeo.
- Fique à vontade, Averon – Romeo virou-se para o povo que assistia a comemoração, fez uma reverência e deu espaço ao tio, esperando por suas palavras, desejando que o pai pudesse proferi-las em seu lugar.
- Hoje, uma nova era se inicia! O jovem rei, Romeo, terá finalmente a chance de provar seu valor como líder e mostrar-se justo, digno do sangue nobre que corre em suas veias! Seu passado será deixado para trás, e ele governará e prosperará, assim como fizeram seus antepassados.
Ele acenou para um dos magos, que lhe trouxe um cálice de vinho para si e entregou outro para Romeo.
- Sugiro um brinde! Um brinde para os que prosperaram, um brinde para os que prosperam, um brinde para os que virão! Que sejam todos, jovens e velhos, condenados à eternidade de seu reino!
Após o discurso, Averon levantou a taça e então entornou-a em sua garganta, bebendo o vinho de um gole só. Romeu seguiu seu exemplo, tentando mais esquecer os acontecimentos da semana que selar o brinde.
A partir deste ponto, a história se torna obscura. Eu, um pobre tradutor, batalhei para traduzir este trecho transcrito pelos escribas presentes. Pelo que pude entender, Romeo começou a sentir-se mal, perdeu o fôlego e caiu aos pés de Averon, sem vida. Depois disso, relatos envolvem uma nuvem negra cobrindo o céu, relâmpagos torrando as pessoas presentes e uma criatura monstruosa, negra, com asas de morcego erguendo-se e rugindo para a escuridão. E a última frase dita pelo macabro Averon, antes de escribas serem queimados numa fogueira por ordem do monstro:
- SIM, QUE SEJAM CONDENADOS À ETERNIDADE DE UM REINO... DO MEU REINO!
Hoje em dia essa lenda é conhecida como “A lenda do dragão das sombras”. Ninguém pode mencioná-la sem ser condenado a anos de tortura num calabouço escuro, e a cada geração as pessoas esquecem um pouco mais de sua origem.
Mas um velho ainda se lembra dela muito bem. Já se passaram duzentos anos desde que Durion tomou o poder na dimensão de Orle, e esse velho espera, pacientemente, que o Conselho escolha o próximo guardião. Ele tem a esperança de que a profecia se cumpra por completo.
A quem estiver lendo isso. Se for o guardião, ouça meu apelo. Durion precisa ser detido. Ele deixou de ser um tirano, um mau líder, e se tornou um monstro, literal e figurativamente. Provavelmente eu estarei morto quando tudo acabar. Não sei nem se estarei vivo enquanto este relato é lido.
Este é o Livro das Passagens. Use-o bem, quem quer que o adquira.




Desmond.