Quando A Caça Vira O Caçador escrita por Padalecki, Samuel Sobral


Capítulo 12
Onze - Jenny


Notas iniciais do capítulo

É, eu sei. "Samuel e Paula FDP's, demoraram de postar tanto que nem vou dar review mais". Perfeitamente compreensível.
Prometo não demorar tanto assim a partir de agora para postar, mesmo escrevendo três fic ao mesmo tempo. Escrevi até um capítulo gigante, para compensar!



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Depois de um longo e pensativo banho, eu finalmente estava por dentro da situação.

Monstros eram reais. Era uma missão antiga de família caçá-los. Uma missão que agora era minha. Salvar pessoas, caçar coisas, o negócio da família. Eu tinha poderes, habilidades que me ajudariam no caminho que eu tinha a seguir. Tudo aquilo era tão certo, tão real, que eu sentia como se tivesse crescido com aquela realidade. Só havia uma coisa que me incomodava: O que eu faria a partir de agora?

Suspirei, afastando esse pensamento enquanto me encarava no espelho de corpo inteiro do guarda-roupa. Eu não queria me sentir perdida novamente. Queria saber das coisas. Estar incluída. Qualquer outro mistério, a partir de agora, teria de esperar para ser resolvido. Eu não queria que aquele momento acabasse tão cedo.

E ainda havia minha mãe, também. Ela havia sido muito pressionada por mim nos últimos dias. O olhar triste dela... Eu não estava muito a fim de vê-lo novamente. Tinha a sensação de que teria minha mãe novamente, uma mãe que não me esconderia nada, e que me contaria tudo na hora certa.

Mas, porque eu ainda tinha a sensação de estar incompleta?

Redirecionei minha atenção para o que eu estava vestindo, antes de tentar me responder. Um top branco, shorts cáqui folgados, e um par de sandálias de dedo que eu não usava há séculos. Uma roupa confortável, que definitivamente era melhor que as roupas fechadas de inverno que usávamos na maior parte do tempo em Weston, devido ao estranho clima ameno daquele início de noite. Joguei um blusão azul fino por cima do top, por precaução, e suspirei pela milésima vez desde que saí do banheiro.

Eu estava ansiosa. Eu sentia que minha vida, minha convivência com minha mãe, não seriam mais as mesmas. Mesmo que eu acreditasse com veemência nessa nova realidade, meu cérebro ainda precisava se acostumar com a idéia. Eu precisava me adaptar a isso.

Mas não agora, pensei. Eu precisava descer, e encarar minha nova vida.

Algo me impediu. No momento em que eu coloquei a mão na maçaneta para girá-la, um pio agudo me congelou. Olhei para o lado esperando ver um ghoul, mas era só Beliscão. Olhando para o já consideravelmente grande falcão azul, eu percebi que havia me esquecido completamente dele.

– Pare de reclamar. – Murmurei, cansada. – Estou tendo um dia difícil.

Me aproximei da gaiola. Beliscão tentava abrir completamente suas asas, mas a gaiola já não permitia, e isso me assustou. Tão pouco tempo... E ele já estava quase do tamanho da mãe. Talvez menos robusto, ou menos assustador, mas ele já apresentava os traços de caçador: a forma como se bico estava mais cônico e brilhante, como suas garras davam uma volta completa no poleiro. Era mais fácil imaginá-lo voando agora, como um caçador nato.

Caçador.

Espere.

Beliscão também estava relacionado a aquilo tudo. Mesmo que minha mãe não tivesse dito nada, eu sabia. Podia sentir. Beliscão fazia parte de mim. Eu sentia algo – a mesma coisa que sentia dentro de mim, aquele poder – emanando do falcão. Sorri para Beliscão, abrindo a gaiola, observando a escalada habilidosa dele por meu braço. Ele estava no meu ombro em dois segundos, mais pesado que antes, mas de alguma forma mais confortável.

Beliscão mordiscou uma de minhas orelhas e piou novamente, dessa vez um tanto mais suave que antes.

– Está com fome, é?

Beliscão não sabia falar o inglês, mas seus olhinhos, que adquiriram a estranha cor de azul cobalto brilhante, diziam muito mais do que mil palavras.

– Bom, Falcão, você já está bem grandinho. – Enquanto falava, me aproximei do parapeito da janela e abri, arrancando os cadeados com força e escancarando as dobradiças. Senti as garras afiadas de Beliscão arranhando delicadamente meu ombro. Ele estava ansioso. – Já está na hora de aprender a caçar sozinho!

No instante em que as devidas palavras saíram de minha boca, Beliscão saltou de meu ombro e alçou voo, dando guinadas e giros pelo ar.

Eu ainda estava me concentrando em admirar a primeira caçada de meu falcão, quando uma sequencia de batidas nervosas emanou da porta. Como sempre, eu soube que se tratava de minha mãe. O frio na barriga se dissipou. Lembrei-me que não estava sozinha nessa história, que tinha minha mãe comigo. Ela não tinha mais segredos. Seríamos a família que não éramos desde me aniversário de quinze anos novamente.

Fechei a janela e a tranquei rapidamente.

Então, quando eu abri a porta, o frio na barriga voltou com força total.

Minha mãe estava com a aparência horrível. Seu semblante estava caído e cansado, exatamente como estava nos últimos dias – exatamente como eu não queria que estivesse. Seus cabelos estavam emaranhados, puxados sem muito da delicadeza habitual num rabo de cavalo. Mesmo que ela estivesse com as roupas de caça – um conjunto camuflado verde de camisa e calça, botas de caminhada, e um cinto de couro que embainhava adagas em toda a sua extensão, deixando cabos prateados à mostra – sua aparência apática estragava qualquer sinal da confiança que ela sempre tinha.

Não pensei que fosse possível, mas ela estava pior do que nunca.

Um momento de silêncio se passou, já que eu estava estupefata demais para falar algo, e minha mãe tinha um olhar perdido. Então ela me encarou, e ela ensaiou um sorriso – algo que piorou sua aparência.

– Filha, você poderia descer por um instante? – Sua voz estava quase tão rouca quanto a do ghoul em meus sonhos, e aquilo era perturbador. – Eu... Eu vou ter de sair

Então ela andou lenta e entorpecidamente até o final do corredor, onde desceu as escadas.

Eu fiquei parada, no batente da porta, sem saber o que fazer. Eu não sabia exatamente o que eu estava esperando, mas algo gritava dentro de mim que aquilo havia sido frustrante. Eu esperava ter minha mãe de volta. Só que ela não estava lá. Eu ainda via aquela mãe estranha, reclusa, preocupada com algo que eu não sabia o que era, mas que podia me matar.

Senti um clique em meu cérebro, como se estivesse me acordando, e eu praticamente corri até estar na sala de estar. Minha mãe estava sentada no sofá, semblante ainda caído, examinando uma lâmina vermelha – exatamente a que eu tinha visto alguns dias atrás, quando invadi o galpão com Mason.

Lembrar-me dele quase me fez esquecer de minha mãe. Ele fora o garoto que passara por toda aquela seqüência de estranhezas junto comigo, e eu havia praticamente me esquecido dele. Senti-me mal instantaneamente, imaginando tudo o que aquele cético estaria passando agora, e se estaria precisando de uma amiga. E eu não estava lá.

Minha mãe se remexeu no sofá, me libertando do impulso de ligar para o Mason naquele momento. Eu tinha um problema maior agora, mesmo que aquilo me desse uma dor no peito. Prometi a mim mesma que ligaria para ele assim que terminasse com minha mãe, e avancei para o sofá.

Quando eu cheguei perto o suficiente para meus passos serem audíveis, minha mãe olhou para mim assustada, como se eu fosse algum tipo de ameaça. Então ela pareceu me reconhecer, e seu semblante voltou a ser triste. Seu olhar parecia estar em algum lugar há mil anos.

– Eu... – Ela começou, sem erguer o olhar. – Eu só queria avisar que vou precisar sair.

Sentei ao seu lado.

– Disso eu já sei, mãe.

Seus olhos se dirigiram a mim por alguns segundos, e eu pude reconhecer alguma coisa neles, afeto talvez. Então eles voltaram para o carpete.

– Eu vou caçar.

O modo como ela disse aquilo me deixou confusa. Não era no tom casual que eu esperava a partir de agora, mas como se ela estivesse me contando uma novidade terrível.

– E...?

Ela olhou para mim, e eu podia sentir minha expressão confusa no rosto. Por um momento, ela também ficou confusa. Então pareceu se lembrar que havia me contado tudo, batendo na própria testa.

– Ah, você já sabe, é claro. – Sua expressão se suavizou, mas não totalmente, como se a razão do seu sofrimento exercesse menos poder sobre ela agora. – Eu só queria me despedir de você, sabe, antes de ir.

Mesmo que houvesse qualquer coisa mais amigável naquela conversa, havia algo estranho. Muito mais estranho que o teor da conversa.

– E o que há de diferente agora? – Perguntei, me lembrando que, durante toda a minha vida, minha mãe havia escondido aquilo de mim, saindo para lutar contra seres sobrenaturais sem que eu soubesse. – Quer dizer, a senhora sempre saiu para essas caçadas antes, sem eu saber. Por que se despedir agora?

Percebi que havia soado extremamente infantil. Era isso que eu queria, não era? Ser incluída? E perceber isso depois de falar uma idiotice dessas me fez sentir culpada. E a expressão triste da minha mãe não ajudou.

– É que... – Ela pausou, como se mudasse de idéia sobre o que ia dizer. – Essa noite me lembra a que eu perdi meu pai... Seu avô, John.

Por um momento, eu fiquei atônita demais para falar. Minha mãe nunca falara sobre meu avô John e, quando vovó Grace soltava alguma coisa, minha mãe parecia estar sempre por perto para impedi-la de contar mais. O máximo que consegui pegar foi que meu avô morrera caçando algo que “não era o que parecia”. Considerando o estado mental de minha avó, e como aquela frase era vaga, eu não levara muito a sério. Até agora.

– Ele morreu caçando, não foi?

A pergunta pareceu tirar minha mãe do transe em que ela havia estado desde meu discurso infantil. Seu olhar perdido me dizia que ela não tinha ouvido muito dele, o que era bom.

– Sim. – Sua voz estava emocionada, trêmula. – Eu tinha doze anos. Seu avô... Ele era incrível. Sempre contava como haviam sido suas caçadas, sempre me ensinava o que ele aprendia sobre monstros. Ele escreveu a maioria dos “guias de sobrevivência” da biblioteca. – Ela apontou para a cozinha, mas eu sabia que ela falava do galpão. – É um costume do nosso clã.

– Clã? – Mesmo que eu estivesse amando ouvir minha mãe falar sobre meu avô daquele jeito que eu sempre quis ouvi-la falar, aquilo despertou minha curiosidade.

– Os caçadores se dividiram em cinco clãs, com base nas formas de caçar. – Explicou ela. – Nós, os Blade, somos os especialistas em lâminas – ela sinalizou para o cinto, onde os cabos das adagas brilhavam – e lutas corpo a corpo. Mais... Físicos. Linha de frente. Soldados.

O modo como ela explicou aquilo tudo sem rodeios foi incrível. Mágico.

– Então... Daí que vieram os poderes? Dos estilos de caça?

– Não. – Seu tom agora era animado. – Ninguém sabe exatamente como nossos poderes surgiram. Só teorias, já que os caçadores da Idade Média não se preocupavam muito em anotar coisas. Mas, de certo modo, eu poderia dizer que sim, também, já que foi mais ou menos depois da separação dos clãs que os poderes apareceram; cada clã com um poder adaptado à forma de caçar, cada membro com esse poder, que passava de pai para filho.

– A Transição.

– Exato.

– Mas... Por que escrevemos sobre monstros, se somos tão... Físicos?

A pergunta só fez sentido dentro da minha cabeça, onde eu via um Blade como um guerreiro enorme numa armadura vermelho vivo, destruindo hordas de monstros com uma espada imensa. Em nenhum momento, eu imaginei esse guerreiro escrevendo e desenhando sobre os hábitos e poderes de monstros num quarto empoeirado à luz de velas.

– Ah, os Blade não são burros. – Minha mãe parecia ter se divertido com minha pergunta. – Somos o clã que se interessa pelas coisas que matamos. Passar conhecimentos adiante, sem chance para que os mitos se distorçam tanto quanto a humanidade já fez, é uma tarefa útil. E quase tão importante quanto exterminar monstros.

Paramos a conversa por um momento, e eu percebi que estávamos sentadas, mais próximas, sorrindo. Aquilo era a inclusão que eu estava querendo: poder falar sobre a outra vida da minha mãe sem esquivas.

Eu me julgava satisfeita só por isso, mas me lembrei que havia outro ponto da conversa que não havia sido concluído.

– Então, meu avô... – Eu quase parei de falar ao ver que o semblante triste de minha mãe tinha voltado, mas eu me forcei a terminar. – Ele escrevia muito?

Minha mãe sorriu, amarga.

– Sua curiosidade é louvável, Jenny. – Ela bagunçou meus cabelos. – É uma característica legítima dos Blade. – Então, ela suspirou. – Suponho que eu não tenha como contornar isso.

– Não. – Concordei.

Ela deu mais um sorriso, menos amargo.

– Na noite em que o perdemos... – Seus olhos voltaram a vagar, mas ela continuou falando. – Alguma coisa entrou na cidade. Algo muito anormal, mesmo quando os monstros ainda estavam agitados. Eles nunca têm coragem de entrar nos nossos domínios.

A pausa dela pareceu durar séculos.

– Mas não era a única coisa anormal naquela noite. – Continuou, sua voz ficando menos consistente. – A coisa que havia entrado na cidade... Definitivamente, fugia de todos os padrões. Era tão poderosa que até mesmo nós, os Blade, os menos perceptivos, sentimos à distância. Todos os caçadores foram checar, inclusive seu avô. A última coisa que ele disse para minha mãe e eu... – Ela engoliu em seco. – Era que o monstro, o dono da presença, era apenas mais uma besta comum, apenas grande demais.

– Besta? – Perguntei, sentindo pena de estragar a história.

– Monstros sem consciência, ou raciocínio. Grandes, fortes, rápidos. Surgiram durante a Inquisição, quando os bruxos descobriram que podiam invocar coisas. Por não serem criaturas deste mundo, fazem o sensor dos caçadores enlouquecer. – O modo como ela explicou aquilo me lembrava da vez em que tive que decorar trinta linhas da Wikipédia para apresentar um trabalho de história.

– Mas ele estava errado. – Disse, me lembrando a frase vaga de minha avó.

– Estava. – Mamãe disse, eu vi que ela estava chorando. – Em vinte e oito anos de caçada, ele só errara essa vez. E foi fatal. – Então ela começou a despejar tudo, antes de começar a chorar de vez: – Não era uma besta. Era Vlad Quinto, o Terrível, o atual Conde dos vampiros e seu exército. Ele nunca entrava em combate direto com caçadores, mas estava abrindo uma exceção justamente naquele dia. Foi uma batalha sangrenta, da qual Vlad só desistira depois que vira seu exército ser derrotado... E de matar um caçador em particular.

Ela não precisou dizer mais nada, e nem disse. Minha mãe desabou em lágrimas, de um modo tão frágil que eu quase chorei junto. Consegui me controlar a abraçá-la, mas não ousei dizer nada. Uma coisa era perder um pai; outra era perdê-lo daquele jeito.

Depois de alguns minutos, minha mãe finalmente saiu do meu abraço, com as lágrimas secas. Seus olhos estavam ligeiramente injetados. Mas ela sorria, agora.

– Filha... – Ela pegou minha mão. – Durante todos esses anos, eu nunca contei nada a você porque imaginei que poderia retardar o efeito da Transição se você não soubesse de nada, como eu soube. Eu me tornei a caçadora mais jovem da História dos Caçadores, e não tive ninguém além do Robert para me ajudar com meus poderes... Fui inocente, fraca. E me arrependo disso. Falhei com você...

– Pare, mãe, ou eu vou gritar. – Disse, tentando soar durona. – Você é a melhor mãe do mundo, porque tentou me proteger, o que era a sua obrigação. Eu te amo por isso, mãe.

Ela pareceu surpresa pela mesma quantidade de tempo que eu. Eu dificilmente soltava meus sentimentos por aí, principalmente com minha mãe. Mas me sentia orgulhosa por isso.

– Obrigado por isso, filha. – Minha mãe já estava controlada. – Mesmo.

Passei alguns segundos encarando minha mãe com um sorriso bobo na cara, até me dar conta de algo:

– Você tinha doze anos quando aconteceu, certo?

Minha mãe assentiu.

– Então, como... Como o poder chegou a você? – Ainda era estranho falar sobre isso, mas não me faltava coragem.

– O poder sempre chega até você, desde que seu pai seja um caçador. – Minha mãe explicou. – Mesmo que você não tenha idade corporal suficiente. Quando o poder deixou de habitar meu pai... – Ela fungou. – Bem, havia uma descente: eu, o novo receptáculo. A única forma de parar o poder seria matar um caçador sem filhos, então, ter um filho é meio que uma obrigação.

Tentei não me sentir ofendida com aquele comentário.

– O que aconteceria caso você tivesse uma irmã? – Perguntei, assim que a dúvida surgiu.

– Depende. – Minha mãe respondeu. – Se ela fosse a mais velha, o poder iria para ela. Mas, caso eu fosse a primogênita... Não mudaria nada.

– E o que os caçadores fazem quando isso acontece? Quero dizer, qual é o fim que esses irmãos mais novos levam?

Minha mãe pareceu intrigada, como só tivesse pensado nisso naquele momento.

– Alguns levam uma vida humana normal, se fazer idéia do segredo da família, como os parentes do Robert. – Minha mãe respondeu, por fim.

Assenti.

Eu já vira os tios do Mason o suficiente para saber o quão normais eles eram.

– Agora, em outros casos... – Minha mãe bateu no queixo, como se estivesse tentando se lembrar de algo. – Bem, os irmãos ajudam na caçada. Meu pai caçou com os irmãos por um tempo, mesmo sem que eles fossem... Normais. Isso durou até que todos os caçadores do Conselho dos Caçadores tinham ascendido, isso é, passado pela Transição. E, minha mãe... – Megan mordeu o lábio inferior. – Bem, ela sabia de tudo, mesmo sendo humana. Os caçadores têm uma espécie de lei interna que aconselha a simplesmente ter os filhos e voltar a ter contatos com eles quinze anos depois, para instruí-los. É mais seguro, muito mais sensato.

– Obrigada.

– Mas poucos seguiam essa regra. – Minha mãe acrescentou. – Seu avô era um dos que não seguiam. Isso me ajudou a estar mais preparada para caçar... Mas foi prejudicial para a sua avó Grace.

Ela não precisou continuar. Eu sabia que o estado mental de minha avó era precário. Quando essa loucura havia começado, presumi que era porque ela havia sido uma caçadora. Mas não. Eram seqüelas. Fora tudo demais para ela. Antes que eu continuasse nesse assunto (que não deixava de ser interessante), me lembrei do assunto principal. Decidi retomá-lo.

– Mas... Você não tinha a idade necessária. Isso não foi... – Procurei as palavras certas, para não confundir a mim mesma. – Perigoso?

– Ah, foi. Eu quase morri. – Ela disse, na maior tranqüilidade do mundo. – Mas consegui passar por isso, sem... Traumas. Os caçadores da minha geração, bem, a maioria ainda não tinha ascendido. Se não fosse pelo Robert... Eu teria me sentido mais sozinha e mais triste do que eu já sou...

Eu teria perguntado mais sobre aquilo, sobre como minha mãe soara... Sonhadora, não apenas agradecida, e como aquilo me incomodava, mas seu semblante se tornou surpreso.

– Droga. – Seu tom agora era o habitual, e ela parecia muito mais com minha antiga mãe que nunca. – Eu tinha me esquecido dele.

– O que? – Perguntei, mas não estava tão interessada nisso. – O que você quis dizer com “ele te ajudou a não se sentir solitária”?

Ela pareceu não notar a pergunta, levantando-se do sofá e indo em direção à porta. Considerando que ela estava de volta ao jeito comum da Megan, decidi não ser tão gentil como antes.

– Mãe, sério, o que você quis dizer? – Eu comecei a segui-la, mas era parou em frente a porta.

– Ah, ele ainda não saiu de casa. – Então ela virou-se para mim. – O que você disse?

Ela estava fingindo não ter me ouvido, eu sabia, o que era ruim. Se ela me dissera isso tudo, mas não queria me contar sobre seu relacionamento passado com o pai do Mason... Bem, deveria haver um motivo. Ignorando com muito vigor minha recém-descoberta curiosidade Blade, decidi mudar minha pergunta:

– Então, o que vocês vão caçar?

Os olhos da minha mãe baixaram para o piso, e eu tive medo de ter estragado tudo de novo. Mas ela apenas suspirou.

– Robert sentiu alguma coisa... Nas proximidades da cidade. Como ele está na Transição, o radar caçador dele está muito fraco, o que quer dizer que...

– Que ele não sentiria se não fosse algo muito poderoso. – Completei, sentindo orgulho de mim mesma. – Você acha que pode ser... Ele?

Eu não sabia se minha mãe estava pensando no mesmo que eu, no vampiro que havia matado meu avô, mas ela assentiu.

– Rob já era um caçador... Quando aconteceu. O primeiro da minha geração. A presença do Conde é tão poderosa que Robert me disse que nunca a esqueceria. E, mesmo depois de tanto tempo... Ele disse que pode ser ele. – Ela olhou para o teto agora. – Eu... Eu não sei se poderia derrotá-lo.

Eu entendi o que ela quis dizer, e quase chorei.

– Essa noite não me lembra do seu avô apenas por causa do Conde... – Ela continuou, seu semblante ficando mais caído a cada palavra. – Me lembra porque... Eu poderia acabar te deixando sozinha, como meu pai havia feito comigo.

Por isso ela estava com aquela aparência. Não era por eu estar participando de tudo, não era uma preocupação materna que eu temia que ela tivesse. Era pelo medo de me perder. Dessa vez, foi a minha vez de deixar algumas lágrimas caírem.

– Filha... – Ela veio me abraçar.

Passamos alguns segundos em silêncio, e eu senti algum entendimento entre nós. Eu tinha mais que certeza, naquele momento, que éramos uma família novamente. Sem segredos. E a única coisa que mudava essa nossa relação familiar da antiga era um grande e estranho mundo sobrenatural que agora fazia parte disso.

Soltei-me do abraço, mesmo que tivesse gostado muito dele. Então sorri.

– Mãe, eu... – Procurei as melhores palavras. Mas não tive a chance.

As batidas fortes na porta nos tiraram daquele lindo momento mãe e filha. Não me pergunte como, mas eu sabia quem era.

– Robert. – Minha mãe confirmou, abrindo a porta. – Sempre chegando na hora certa.

Ele estava no batente da porta, trajando um sobretudo preto que encobria seus jeans escuros e sua camiseta preta justa. Eu nunca havia percebido o quão atlético ele era até agora, sem as roupas chatas habituais ou a ridícula farda de guarda-florestal. Seus cabelos pretos estavam desgrenhados, variando a imagem que eu sempre tivera deles, e seus olhos azuis praticamente faiscavam. Com aquele arco na mão esquerda e a aljava carregada nas costas, a postura ereta... Ele me lembrava o Mason.

Não sei se era porque de repente eu sentia falta dele, ou porque havia mesmo alguma coisa dele no pai, ou vice-versa, mas era verdade. Se eu trocasse o corpo musculoso por um mais esguio, eu estaria simplesmente viajando para o futuro. Se bem que um Mason musculoso...

Freei meus pensamentos, antes que a coisa começasse a ficar estranha, e resolvi fitar minha mãe indo de encontro à Robert. O rosto dela parecia mais iluminado do que quando ela estava conversando comigo, e eu inevitavelmente fiquei de cara feia por isso. Inesperadamente, Robert percebeu.

– Ei, eu estou interrompendo algo? – Ele perguntou, coçando a cabeça. – Porque eu posso esperar um pouco, se vocês quiserem...

– Não. – Minha mãe respondeu, rápida. – Quer dizer, não precisa, não é, Jenny?

Bufei.

– É, claro.

Robert me estudou, curioso.

– Tudo bem. – Ele decidiu. – Vamos matar alguma coisa, Clein!

Minha mãe sorriu, parecendo tão sem graça quanto quando me contou sobre o “ofício da família”, e então saiu pela porta até a garagem. Eu tive que torcer minha imaginação para não encarar aquilo como um encontro.

Ao meu lado, Rob alternava o peso nos pés.

– Então, como vão... As coisas? – O tom dele era cuidadoso, como se estivesse conversando com uma bomba.

– Bem. – Respondi. Então, antes que eu parecesse rude: – Você acha mesmo que pode ser o Vlad?

Ele pareceu surpreso, depois ficou sério.

– Sim. – Ele não estava olhando para mim agora, mas sim para a sua casa. Para Mason. – Eu não tenho sentido muita coisa ultimamente, já que o Mason está tomando boa parte dos meus poderes... E eu só cruzei com uma coisa que pudesse ser assim tão poderosa, tão má.

Ele não precisou continuar.

– Mas... E se for outra coisa? – Eu perguntei, sentindo um arrepio só de pensar na possibilidade.

– Bem... – Ele se virou para mim, seu rosto sombrio. – Rezemos para que não seja.

O tom dele me deixou tensa demais para fazer mais alguma pergunta, e ele não fez mais nenhum comentário sombrio, o que era bom. O único som audível era o do Camaro velho de minha mãe, tentando pegar.

– Então, a Megan te atualizou, não foi? – Rob estava tentando inibir o clima sombrio que criara.

– Uhum. – Respondi, ainda tentando impedir minha mente de imaginar algo pior que Vlad. – E como foi com o Mason?

Ele parecia gostar de me ver perguntando por ele, mas não de estarmos falando nele.

– Ele demorou um pouquinho, você sabe. – Ele suspirou. – Mas, no final das contas, conseguiu não pirar.

Ele sorriu, ficando ainda mais parecido com o Mason, e eu sorri de volta. Senti que teríamos conversando ainda mais, se minha mãe não tivesse conseguido ligar o carro naquele momento.

Ele me dirigiu o rápido aceno de cabeça enquanto ia à direção do carro, que já estava na pista, o motor roncando ruidosamente. Além disso, a rua estava calma. O céu estava sem nuvens, revelando uma brilhante lua crescente. De repente, senti um arrepio, como se uma brisa perdida estivesse cruzando a rua.

Por um momento, fiquei olhando para a lua. Eu não sabia tanto sobre os mitos quanto Mason, mas sabia que aquele astro brilhante podia causar coisas terríveis... Como lobisomens. Como Oliver.

Então, eu quase me perdi pesando no garoto do qual eu gostei apenas o suficiente para vê-lo se transformar em algo terrível e mau. Ele se tornara um monstro por minha causa. Eu o humilhara. Olhei para a casa à minha frente, onde todas as luzes estavam acesas. Eu seria capaz de fazer algo tão terrível assim com o Mason?

Minha mãe buzinou o carro, tirando meu transe e me lembrando da minha conversa com ela mais tarde. Ela estava com o vidro aberto, olhando atentamente para mim, Robert e seus olhos brilhantes atrás dela.

– Tchau, filha. – Ela disse, boa parte do seu ânimo anterior sumindo. – Eu... Eu vou voltar. Prometo.

A essa altura, ela já estava suprimindo o choro. Eu senti um aperto no peito por isso, e me senti culpada. Eu estava fazendo aquilo com ela. Eu a estava fazendo ter medo de fazer seu trabalho. Aquilo era frustrante; eu tinha minha inclusão, mas não minha mãe. Não completamente.

Eu tinha que inverter isso.

– Eu sei que vai, mãe. – Disse, com a maior certeza de todas. – A senhora vai me colocar pra dormir, ainda hoje.

Ela sorriu, seus olhos molhados, e eu quase chorei. Então Robert pigarreou alto, e minha mãe socou o braço dele, suprimindo um riso nervoso. O pai de Mason sorriu para mim, como se tivesse gostado da minha atitude. Minha mãe acenou uma última vez, então arrancou, virando a esquina com um ruidoso queimar de pneus.

Quando voltei para a sala, sentia muito orgulho de mim mesma.

Eu tinha conseguido. Era parte disso tudo. Sem mais segredos grandiosos, ou nada do tipo, e eu ainda estava bem com minha mãe. Fora tanta emoção que eu quebrei minha própria dieta de líder de torcida para comer um pacote de batatas fritas, que comi cantarolando feito uma maluca pela casa. Eu me sentia feliz.

Até que as batatas acabaram, e eu finalmente me senti cansada, repousando no sofá. Aí eu fiquei entediada.

Liguei a TV, mesmo sabendo que, naquele exato momento, estaria passando o telejornal no único canal da cidade. Não que houvesse alguma coisa melhor por lá, mas o jornal era realmente torturante. Eu ainda não consigo entender como Mason consegue assistir aquilo.

Escutei o barulho de um esvoaçar de asas e vi Beliscão, um pouco mais sujo do que eu me lembrava, entrando pela janela da sala. Ele se empoleirou à minha frente, na mesa de centro, e ergueu o bico, mostrando-me um rato.

Tentei não sentir nojo daquilo.

– Parabéns, eu acho. – Murmurei para ele, acariciando suas penas brilhantes. Aquilo era uma distração para eu não olhar para a TV. O jornal não me ajudaria a me sentir feliz novamente, não mesmo.

Ignorei aquilo, antes que pudesse estragar minha noite. Não deu certo. Então, relutante, afaguei Beliscão menos intensamente, não mais me interessando no movimento que suas pelas azuis faziam, e resolvi prestar atenção no jornal.

Uma mulher magra, de uns vinte e cinco anos, que não parecia entusiasmada com o seu trabalho, dava as últimas notícias da cidade, antes de o noticiário acabar:

“E os desaparecimentos continuam e Weston. Desde o primeiro ocorrido há quatro dias, quando o adolescente Oliver Jackson de dezesseis anos sumiu sem explicação, uma onda de desaparecimentos vem assolando nossa pacata cidade São dezessete vítimas até agora, e isso está preocupando a população. Os desaparecimentos não têm nexo algum entre eles, além do fato de que os desaparecidos têm idade próxima – quinze a dezessete anos – e a força policial de Weston trabalha na possibilidade de um serial killer. Voltaremos no noticiário da manhã, com mais informações sobre o caso.”

A mulher bateu os papéis na mesa, e as letras começaram a subir na tela, que deram lugar a um comercial de uma marca de perfumes qualquer. Desliguei a TV, sem pensar muito se gostaria ou não do silêncio. Minha mente começou a trabalhar, quase involuntariamente.

Quatro dias.

Oliver desaparecera há quatro dias atrás.

Desaparecimentos.

E então ele voltara como um monstro sedento de vingança, aparentemente indestrutível.

Dezessete vítimas.

Não podia ser coincidência. Não mesmo. Depois de tudo o que eu descobri, eu estava atribuindo poucas coisas a uma simples coincidência. E, se eu estivesse certa, dezessete adolescentes estariam se transformando em coisas tão más quanto o Oliver se tornara – ou piores.

Sentei-me no sofá, ereta, minha cabeça zunindo com os pensamentos. Eu tinha de contar aquilo tudo à minha mãe. Se eu estivesse certa – e eu sabia que estava – alguma coisa maligna estava acontecendo. Algo que apenas caçadores podiam resolver.

Eu já estava me imaginando lutando ao lado de minha mãe contra o que quer que estivesse por trás daquilo, quando algo familiar freou meus pensamentos abruptamente. Uma brisa fria, cortante. A mesma que eu havia sentido na calçada, enquanto minha mãe estava indo embora. Mas... Brisas não correm dentro de casas fechadas, não é? Eu tinha certeza que tudo estava fechado... menos a janela por onde Beliscão havia entrado.

Então eu me lembrei da primeira vez em que senti aquela brisa. Fora no dia anterior, quando Oliver havia aparecido no outro lado da rua. Não era apenas uma brisa... Era má. Como uma presença má.

Assim que tinha percebido isso, saltei do sofá, sem saber exatamente porque até ouvir o som de tecido rasgando bem atrás de mim. Rolei pelo carpete para evitar qualquer fratura, como havia aprendido a fazer nos treinamentos dos Weston Cats, e então me virei para trás, percebendo a maior cobra que eu já tinha visto em toda a minha vida encravada nele, bem no lugar em que eu estava um segundo atrás.

Minha primeira impressão sobre a cobra? Ela era escura. Não do jeito escuro brilhante que você está acostumado a ver nas cobras comuns, mas de um jeito opaco, como se a pele – ou o que quer que fosse – da cobra não captasse a luz. Um pouco mais de tempo olhando para ela, e eu percebi que não havia variação nas escamas dela; tudo preto e opaco.

Essa já seria a cobra mais estranha de todas as que eu já tinha visto nas excursões em que minha mãe me levara para a floresta Mighan, mesmo se ela não fosse enorme. A cobra tinha a circunferência de um aro de uma tabela de basquete, e me admirou ela ter entrado tão silenciosamente em casa. Eu tive o horrível pressentimento de que aquela cobra deveria ser muito longa. Longa mesmo.

Então a cobra ficou ainda mais assustadora quando conseguiu tirar a cabeça do sofá.

A cabeça era triangular, tão escura quanto o resto do corpo, do tamanho da minha cabeça. Os olhos eram completamente dourados, sem divisão para as pupilas, e piscavam de lado. A boca era uma linha quase indistinguível na escuridão da serpente e seguia até o início do pescoço, o que decididamente me fez odiar a idéia de ver aquela boca aberta. Próximo ao seu final, a linha se curvava para cima, como se a cobra estivesse sorrindo. Eu não precisei de muito mais que o movimento do pescoço dela para perceber que ela iria me atacar. Eu tinha que sair dali.

Foi uma péssima hora para perceber que eu estava paralisada.

Meus reflexos avançados, que havia me tirado do sofá na hora certa, pareciam adormecidos. Meus olhos não conseguiam para de olhar para a serpente enorme, tentando processá-la de algum modo. Mas era surreal. Eu iria passar a noite inteira ali, e nunca conseguiria entender o que estava vendo completamente. Era quase como se cobra fosse uma ilusão de névoa escura.

Se não fosse por Beliscão, eu teria sentido o quão sólida aquela cobra era.

Ele saiu do buraco no sofá, só me dando tempo de perceber que ele havia sido atingido pela investida do monstro, e atacou a cobra. Ele deveria ter sido engolido numa tragada só. Deveria não ser rápido o suficiente para deixar a cobra sem ação. Deveria não ser capaz de abrir um talho de névoa escura na cara da cobra com as garras. Deveria. Mas foi exatamente o que ele fez. E de novo, repetidas vezes, até a cobra deixou de tentar contorná-lo para me atacar e passou a lutar com ele, algo que meus olhos também custariam a processar corretamente, se eu não estivesse ouvindo os pios aflitos do falcão.

Ele não estava sentindo dor, eu sabia; ele estava me mandando ir embora.

Por um momento, a idéia pareceu ridícula e covarde. Mas eu vi a luta novamente, a forma como a cobra recuava aos ataques rápidos de Beliscão, e percebi que ele estava fazendo melhor que eu. Com mais um piado do falcão azul dirigido a mim, corri para a porta da frente, rumo a noite fria, sem saber muito bem para onde estava indo.

Então, as luzes completamente acesas da casa da frente entraram no meu campo de visão, e eu soube que rota tomar.

O que o Mason iria achar de uma visitinha noturna?



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Notas finais do capítulo

Então, foi bom? Quer dizer, ignorando a demora crônica?