Samantha Roberts - Guerra Fria escrita por Duda Chase


Capítulo 31
Em nome da família




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Alguma coisa aconteceu durante minha estadia em casa.

Eu não sabia bem o que. Mas o fato era que, quando parei no topo da Colina Meio-Sangue ao lado de Jenny, contemplando a visão do acampamento em plena atividade, eu me sentia muito melhor do que da última que havia pisado ali.

Meus pés pisavam tanto na grama verde e úmida quanto na grama coberta por neve, estas separadas pela barreira de proteção do acampamento. Era um tremendo choque térmico ficar ali — o ar morno vindo de dentro se chocava contra meu rosto enquanto o vento carregava a neve até minhas costas e cabelo.

Jenny inspirou, fechando os olhos e inflando o peito.

— Lar, doce lar. — ela disse. — Certo. Por que estamos aqui?

— Porque eu tenho que encarar a verdade. — recitei a sentença que ela me obrigara a memorizar, esforçando-me para não rolar os olhos. — Sou Samantha, tenho dezessete anos e uma vida pela frente, e não vou me deixar abater.

Jenny deu tapinhas no topo de minha cabeça.

— Boa garota. Podemos?

Engoli seco e assenti devagar, abaixando-me para pegar a alça de minha mala de viagem. Ela adiantou-se e puxou-me consigo. E, juntas, trotamos colina abaixo.

O número de semideuses pode ter diminuído, mas todas as divindades residentes do acampamento continuavam lá. Duas dríades passaram por nós de braços dados e dando risadinhas. Dante, um filho de Deméter, coordenava mais adiante uma fila de sátiros que carregavam cestas de morangos. Eu jurava que podia ouvir os sussurros náiades em algum lugar não muito longe.

Andamos até a área comum dos chalés, vira e mexe parando para cumprimentar algumas pessoas.

Uma dessas pessoas foi Michel.

Exceto pelo sonho em que o vi conversando com Nick, não havíamos nos visto desde o último verão, quando acabei parando na França depois do acidente aéreo e ele denunciou nossa posição para Sócrates.

Jenny bateu discretamente com seu ombro no meu, uma piada interna como lembrança do impacto que ele causou nas três garotas da missão. E em Queen, principalmente, embora ela ainda negasse o fato.

— Olá, meninas bonitas. Eu queria mesmo falar com vocês. É que... — ele olhou para o chão com reprovação — Sei lá. Nick andou falando comigo nos últimos meses e... Ele mudou minha cabeça, sabe? Eu só queria dizer que fui um babaca com vocês. Bem, fui um babaca com minha família, amigos e todo mundo. Eu estava com tanta raiva que me deixei enganar.

Jenny abriu um sorriso largo, obviamente se divertindo com a situação.

— Sem problemas. — ela disse rapidamente, surpreendendo Michel. — Sério. Todo mundo se perde uma vez na vida. Não é, Sam? — ela me empurrou com a lateral do corpo enquanto sustentava o sorriso.

— Hum, sim?

Michel alternou seu olhar entre nós, confuso com a situação.

— Só queria deixar tudo de boa entre nós. — a desconfiança ficou perceptível em sua voz. Ele apontou com o polegar por cima do ombro. — Eu realmente tenho que ir agora. Estão me esperando lá no dez.

Troquei um rápido olhar com Jenny. Se Michel iria passar a dividir o chalé com Victor, ela iria tirar muito proveito disso. Ou pelo menos ia se divertir mais ainda.

— Está tudo bem. — forcei-me a dizer, perguntando a mim mesma se o que eu estava dizendo era realmente verdade.

Ele ficou sem o que dizer e apenas meneou a cabeça cordialmente antes de virar sobre os calcanhares e rumar ao chalé dez.

— Você assustou o menino. — disparei para ela, ainda observando Michel.

Jenny soltou mais uma risada e voltou a andar.

— Ele não faz nem ideia! Agora, o que me impressiona é Nick ter ficado tão amiguinho dele, mesmo depois dele ter dado em cima de você. E de Queen. Não que ela não tenha gostado muito disso, mas...

Querendo ou não, lembrar da época em que eu estava com Nick ainda me impactava. Parecia que tudo não havia passado de um sonho bonito, um daqueles que não se espera acordar até quando você realmente o faz.

Paramos no lugar de sempre, no centro da linha reta entre nossos dois chalés. Ela foi para o lado ímpar, como de costume, e eu fui para o par.

Entrei no chalé.

Era esquisito como o chalé parecia estar diferente embora tudo estivesse exatamente como sempre foi. Todas as camas estavam arrumadas, mesmo que algumas tenham ficado com uma finalização preguiçosa. O quadro de atividades estava pregado ao lado da porta. O terceiro taco de madeira do chão fez um barulho oco sob a sola de meus pés quando entrei. Ainda assim, havia uma sensação de aperto em minha garganta, como se eu estivesse invadindo um lugar estranho.

Uma linha vertical se abriu no vão entre a coruja entalhada e os beliches, revelando a porta do covil que estava sendo aberta.

Mary transpassou a porta carregando uma pilha de livros. Apoiado na capa do livro de cima, havia um bloquinho de post-it, bem como duas canetas marca-textos de cores diferentes. Ela andou até seu beliche, despejou os livros lá em cima e arrumou o cabelo para trás da orelha. Só então percebeu minha chegada.

— Sam! — ela disse ao sorrir. — Eu já estava ficando com saudades!

— Ah, mas eu não poderia deixar isso acontecer.

Joguei minha bolsa sobre meu colchão e abri os braços para receber o seu abraço de boas-vindas. Ela segurou meu rosto entre suas mãos e me olhou com seus olhos alegres.

— É muito bom ter você de volta. — ela admitiu. — Como você está?

Eu sabia que aquela não era uma pergunta desinteressada.

— Melhor. Não cem por cento, mas... Melhor. E você? — eu não era a única abalada pela morte de Mia.

Seu olhar foi de alegre para triste.

— Sei que é egoísmo querer ela aqui comigo agora. — ela se virou para sua cama e puxou um dos livros da pilha. — Ela está melhor onde está. Está segura. Você sabe, isso tudo nunca passou de um conto de fadas na cabeça dela. Mia nunca teve noção da realidade. Talvez tenha sido melhor morrer assim.

O rosto de Mia segundos antes de ela ser assassinada me dizia o contrário, no entanto eu não comentei nada com Mary. Era melhor continuar deixando-a pensar daquela maneira.

Mary arregalou os olhos.

— Deuses, Sam, você deveria ir.

Pisquei, confusa.

— Como assim? Acabei de chegar.

Ela soltou uma risada pele nariz, me virou pelos ombros e começou a me empurrar pela porta.

— Não. Digo, para a Casa Grande. O conselho deve estar começando agora.

Travei meus pés no chão.

— E daí? Quem está lá no meu lugar? Clarck? Deixe ele lá.

— Não! Eles vão decidir o destino de Susana agora.

Virei-me para ela e cruzei os braços, relutante.

Eu havia acabado de chegar de uma recuperação mental e Mary estava querendo me mandar para um conselho de guerra lidar com um assunto mais delicado impossível.

— Não é porque ela é irmã do Nick que eu tenho que resolver isso. — esclareci. — Confio mais em Clarck do que confio em mim. Ele cuida disso.

Seus olhos pareceram ficar alarmados por baixo das sobrancelhas franzidas.

— Não devia. Ele culpa Susana mais que o próprio Sócrates pela morte de Mia. Você sabe que está sendo difícil para ele.

— E?

— E ele não se encontra no estado ideal para tomar uma decisão adequada.

Tentei engolir a vontade de gritar que estava subindo por minha garganta. Eu me encontrava tão instável desde que pisara no Alasca que mal podia ter controle dos meus sentimentos. Não queria descontar isso em Mary.

— Decisão adequada? — ecoei.

Ela soltou um suspiro cansado.

— Somos filhos de Atena. Tomamos decisões racionais e imparciais. Não importa a situação, sempre procuramos a luz da razão.

— Se são as considerações dele...

— O que mamãe acharia disso? — retrucou ela.

— Ela também perdeu uma filha.

— Acha que ela liga!?

Ao ter noção do que disse, Mary levou a mão à boca, espantada. Arqueei as sobrancelhas, verdadeiramente surpresa. Não era todo dia que eu via a filha certinha se rebelar contra a mãe.

Eu sabia que Mary nunca diria aquilo se pudesse evitar, por isso resolvi não bater naquela tecla.

— Por que acha que meu voto vai ser diferente do dele? — perguntei, mais amargurada que pretendi ser.

Mary ainda estava atordoada com o que acabara de dizer, como se a dura e crua verdade de que nossa mãe não era um referencial de afeto fosse novidade para a gente.

— E-eu... — ela me olhou firmemente. — Você sempre sabe o que é certo.

Abaixei meu olhar para o chão. Sócrates dissera que eu me superestimava, mas o que realmente acontecia é que os outros me superestimavam. Eu apenas queria acreditar no que achavam de mim.

— Não, não sei. Se soubesse, as coisas não seriam como são hoje.

— Fazer o que é necessário nem sempre é fazer o que é certo.

Meu coração parou de bater por alguns segundos. Olhei para ela, emocionada, perguntando-me se ela tinha alguma noção de acabara de me falar as mesmas palavras que Briana falara antes de eu partir para minha primeira missão.

— Você sempre escolheu o certo, Sam. É uma droga não ter sido o necessário para te poupar de tudo isso. Mas foi o certo.

Balancei a cabeça, já reprovando o que eu faria a seguir.

— Eu te odeio. — disparei.

— Tenho certeza que sim.

Deixei minhas coisas no chão e saí pela porta com passos rápidos. Torci para que a reunião não tivesse começado ainda, desse modo eu não precisaria fazer uma cena e interrompê-la no meio. Era tudo o que eu não precisava.

Minha tensão só aumentou quando encontrei Jenny no meio do caminho. Ela seguia para o mesmo local que eu, no entanto eu sabia que ninguém a obrigara. Tinha certeza que Jenny tinha feito questão de comparecer ao conselho e dar um voto positivo para Susana.

Claro, ela tinha que vir ao socorro de sua tão amada amiga de longa data.

Jenny começou a tagarelar sobre como Theo havia mudado as posições antigas dos beliches do chalé dela, mas mal ela sabia que eu estava totalmente fora de área. Eu assentia e comentava coisas vagas como “Nossa!” ou “Legal” enquanto deixava minha mente trabalhar contra mim.

Susana voltou e Nick preferiu ela a mim. Por quanto tempo Jenny vai andar em território neutro?

Eu nem sabia dizer se aquilo era puro ciúmes ou obra de um resquício da nuvem negra em minha cabeça. Independentemente do que fosse, parecia certo. Como se aquilo me alertasse sobre um perigo iminente.

Encontramos todos na sala de jogos da Casa Grande conversando em pé, o que indicava que o conselho ainda não havia começado.

Por um segundo, todos pararam suas conversas e me encararam. Ela voltou, ouvi alguns cochicharem. Andei em direção a Clarck, que estava no canto da sala, tentando me convencer de que eu não estava incomodada por ser o centro das atenções.

Um par de olhos pesava mais que todos os outros: os de Nick. Lá estava ele, em pé perto de seus velhos amigos e sua amada irmã, as mãos enfiadas no bolso, o olhar consternado em cima de mim.

Era um tremendo esforço não retribuir sua atenção. Contudo, ignorei essa insuportável comichão e conclui minha caminhada até Clarck, que me esperava com um olhar amolecido.

Ele não esperou um cumprimento — abraçou forte, sem dizer nada. Fechei os olhos e retribuí o gesto com mais força. Eu sentia o quanto ele precisava disso, de alguém que o entendesse. Clarck estava machucado e precisava de cuidados. Desejei que eu pudesse afastar sua dor só com meu abraço.

— É tão bom ver você de novo. — ele disse, ainda me apertando.

Afastei-me dele, mas ainda segurava seus braços.

— Estou aqui. Voltei.

Ele sorriu, mas logo seu sorriso murchou ao perceber que eu também estava ali para tomar seu lugar na votação. Ele olhou para Jenny, parada ao meu lado, e então me puxou mais para o canto, para termos privacidade.

— Vai votar? — ele indagou.

— Se você não se importar... Eu gostaria de voltar à ativa.

Ele franziu rapidamente as sobrancelhas, identificando minha mentira. Suas mãos apertaram meus braços com mais força.

— Mary te mandou aqui, não foi?

Desviei o olhar por um rápido segundo, tentando pensar no que falar.

— Mia está morta por causa dela. — Clarck continuou. — Você sabe disso. O conselho está bem dividido, Sam. A gente pode conseguir tirar essa garota da nossa vida de uma vez por todas.

Olhei em seus olhos, torcendo para eu aparentasse estar decidida.

— Eu sei. Eu vi tudo acontecer. Agora vá pro chalé e me deixe votar. Depois a gente conversa.

Ele não engoliu muito bem, mas deixou passar. Puxou-me novamente para um abraço apertado e depois saiu da sala de jogos, dando uma encarada em Jenny ao passar por ela.

Jenny arqueou uma das sobrancelhas para mim, como quem diz “O que aconteceu aqui?”. Ignorei o fato e segui para meu designado lugar no imponente e soberbo local de discussões relevantes do Acampamento Meio-Sangue: a mesa de ping-pong.

— Samantha! — Quíron exclamou ao me ver. — Que alegria tê-la conosco de novo!

Sorri ao ajeitar minha cadeira.

— É sempre bom voltar, Quíron.

Ele me deu um sorriso caloroso, então tomou seu lugar na cabeceira da mesa. Os outros seguiram seu exemplo e se posicionaram. Apenas Nick ficou em pé — ele deu sua cadeira para Susana enquanto ficava atrás dela, as mãos pousadas sobre os ombros da irmã.

— Jennifer e Samantha, Queen faz falta no conselho. — Quíron pontuou. — Alguma notícia dela?

— Queen está em uma viagem de negócios. — Jenny explicou. — Hm, no Mundo Inferior. Não falamos com ela desde quando a deixamos no Central Park. Ela mandou que não esperássemos por ela.

— É uma pena. Mas vamos começar. — ele pigarreou. — Como sabem, estamos aqui para discutir acerca da permanência ou não-permanência de Susana neste acampamento. Ela está sendo acusada por infligir as regras de Hades, soberano do Submundo, por traição, rebelião e assassinato. Mas ela tem uma explicação, a qual vamos ouvir sem brigas. Depois de tirarem suas conclusões, iniciaremos a votação.

Susana estava tensa. Ela tentava disfarçar o fato com a postura ereta e o queixo ligeiramente apontado para cima. Eu conseguia perceber, no entanto, sua respiração fazer o peito se mover de forma irregular, bem como a preocupação em seus olhos.

— Pode começar. — Quíron autorizou.

Ela comprimiu os lábios e respirou fundo.

— Conheci Sócrates pouco depois de chegar aos Elíseos. — ela disse depois de uma rápida expiração. — Ele me apareceu com sua proposta: sabia como enganar Tânatos, mas precisa de alguém jovem para realizar esse trabalho. Juntos, poderíamos voltar para cá. Não consigo explicar, mas essa ideia me pareceu certa. Quanto mais tempo eu desperdiçava lá, menos eu sentia que pertencia a esse mundo. Eu não queria isso, não queria perder a ligação com meu irmão e minha mãe. Então eu topei.

— Quase morri ao passar por Tânatos. Isso se desse para eu morrer de novo. O importante é que concluímos essa parte do plano sem sermos reconhecidos. Era o que precisávamos. Antes mesmo que eu me desse conta, eu já estava em solo firme na Grécia. Viva.

O olhar de Susana se perdeu em algum ponto fixo. Sua cabeça, no entanto, estava cheia de memórias. Eu sentia isso mesmo do outro lado da mesa.

Ela deu uma pausa antes de voltar a falar.

— Eu estava longe de casa, sem documentos, sem dinheiro, sem roupas e dada como morta. Eu não sabia quanto tempo havia se passado desde minha morte. Tentei ligar escondida para minha mãe, mas ela tinha mudado o número de casa. Eu precisava de Sócrates. E ele precisava de mim. A quantidade de tempo que ele passou no Mundo Inferior o deixou fraco. Seu corpo não estava suportando muito bem a transfiguração morte-vida.

— Mas ele sabia para onde ir e o que fazer. Começamos, daí, uma série de pequenas viagens e missões. Arrecadamos dinheiro, compramos comida e outras coisas essenciais. — ela fechou os olhos com força. — Fiz coisas das quais não me orgulho nesse meio tempo. Foi horrível. — ela abriu os olhos. — Mas não são por essas coisas que vocês estão me acusando. As coisas pelas quais estou sendo acusada são coisas de que mal me lembro ter feito.

Uma bomba de apreensão foi jogada na mesa do conselho. Nos entreolhamos, como querendo confirmar se ouvimos certo. Será que ela estava cínica ao ponto de falar que foi sem querer?

— Sócrates estava recuperando suas habilidades. Até então eu não ligava. Estávamos de novo nos Estados Unidos e eu pensava que iria de volta para Utah, como ele tinha me prometido. Aí eu descobri a verdade. No dia do Tamalpais.

Jenny soltou um pequeno arquejo.

— Você estava lá? — ela indagou. — Quando a gente descobriu que...

— Que não era só sobre o livro? Sim, eu estava naquele dia. Imagine meu susto ao topar com Polifemo. Mas, acredite, eu descobri tanto naquele dia como vocês. Quando vi você e Nick... Era como se eu pudesse ter minha vida de novo. Mas Sócrates não podia me perder ainda. Me amarrou e me deixou inconsciente. — ela abaixou a cabeça. — E eu não consegui avisar a vocês que estava viva.

— Ele me acordou e me passou a real: eu não iria voltar para Utah nunca mais. Depois de perder a luta para Samantha, viu o quanto precisava de mim. Tanta humilhação acabou o deixando irado. Os maus tratos e abusos começaram aí.

Meus olhos encontraram os de Nick, então os de Susana. Aquilo queria dizer que meu envolvimento com ela ia muito além dos sonhos que tive no verão passado. Eu desencadeei uma série de acontecimentos em sua vida.

— Reunimos alguns aliados e nos mudamos para o Alasca. Durante a viagem Sócrates se excluiu do mundo. Fez tipo um retiro. Ficou duas semanas sem falar com ninguém, só se dedicando aos seus poderes. A ficar forte de novo. É claro que eu tinha aproveitado disso para tentar fugir. Eu não queria fazer parte da revolução. Mas Pedro e Dabria fizeram um bom trabalho em me deixar em cárcere.

— Sócrates tinha duas vantagens ao me ter do seu lado: depois de tanto tempo, ele conhecia minha mente. Isso tornava as coisas mais fáceis para ele. Digo, para poder entrar nela. E também tinha Nick. Quando ele soube da gente, se tocou que poderia usar isso ao seu favor. Me usar como uma moeda de troca. Foi assim que ele conseguiu passar Nick para nosso lado. Pela chantagem. Mas ele também me usava para outras coisas.

Susana começou a perder a compostura que se forçava a manter. Notei as lágrimas começando a inundar seus olhos, o maxilar tremendo.

— Ele começou a invadir minha mente. E depois me desligava. Usava meu corpo para fazer o trabalho sujo para ele. — ela começou a chorar, mas não deixou sua voz vacilar por conta disso. — Sim, eu matei. Eu torturei. Eu forcei pessoas a fazerem o que elas não queriam fazer. E o pior de tudo é que eu soube disso pelos outros, porque nem eu mesma lembrava do que tinha feito quando acordava na manhã seguinte. Ele me usava e depois apagava minha memória. Era fácil para ele me manipular.

— Conforme o tempo foi passando ele criou essa... Obsessão por mim. Gostava de me controlar, de fazer o que quisesse comigo. Me torturava ao me dar liberdade. Dizia que eu tinha que fazer tal coisa, e eu poderia escolher entre fazer conscientemente ou inconscientemente. Era horrível, as duas opções eram sempre horríveis!

Nick apertou suas mãos sobre o ombro de Susana. Ela respirou fundo e inclinou a cabeça para trás, encostando-a no abdômen de dele.

— E-eu não ficaria lá por opção. Não com Sócrates. A cada dia que passava, mais louco ele ficava. Eles aos poucos foi se entregando a insanidade. A rebelião foi crescendo e isso só aumentou esse lado dele. Ele ficou apaixonado pelo poder que poderia vir a ter e pelo poder que já tinha. Ele gostava de usá-lo.

— Me batia, porque sabia que poderia fazer com que eu não revidasse. E-ele simplesmente descontava tudo em mim. Eu era o brinquedinho dele. Tudo o que ele desejasse... — ela apoiou os cotovelos sobre a mesa e cobriu o rosto com as mãos, chorando com mais vontade. — Às vezes eu acordava na cama dele e ...

Nick foi para o lado dela e puxou-a para um abraço. Ele a apertou com força, em um gesto protetivo, e ela tentou se acalmar um pouco.

— Meus deuses! — Victor exclamou baixinho ao meu lado, os olhos arregalados.

Meu olhar procurou o de Jenny, em busca de socorro. Eu realmente não sabia como reagir àquilo tudo. Ela, no entanto, estava preocupada demais com a amiga para prestar atenção em todo o resto.

Susana limpou o rosto e corrigiu a postura. Ou pelo menos tentou.

— Depois que Sócrates morreu, todas as noites quando sonho eu lembro de alguns flashes. Coisas que eu fiz enquanto ele... — Susana pareceu que iria voltar a chorar, mas conteve-se. — Enquanto ele estava no comando. Eu sei as coisas que fiz e não tenho nada para provar ao contrário. Eu fiz. Eu fiz isso tudo. Mas não foi porque eu quis, eu juro.

Então ela olhou para mim.

— Eu só queria voltar para casa.

Suas palavras pareciam pairar pelo ar, e pesavam. Houve um período tenso de silêncio na sala de jogos da Casa Grande. Quíron observava a tudo com o queixo apoiado no punho fechado, em uma expressão de profunda reflexão. Os outros conselheiros-chefes tentavam olhar para qualquer lugar, menos para Susana. Inclusive eu.

— Quanto tempo demorou para você ensaiar isso? — Matt alfinetou depois de um período de tempo. — Porque eu não consigo acreditar nesse showzinho. Eu voto para que ela seja banida do Acampamento Meio-Sangue.

Alguns dirigiram um olhar severo a Matt; outros ficaram espantados por sua coragem.

Hailey se ajeitou na cadeira.

— Eu posso até acreditar... — ela falou, os dedos inquietos tamborilando a superfície da mesa. — Mas isso não muda o fato que você escolheu por conta própria ir contra as leis do Submundo e se aliar a Sócrates.

Susana ficou estupefata pelo comentário da prima.

— Mas eu precisava dele!

— Susana, você já teve a hora de falar. — Quíron interveio. — Agora é a vez dos conselheiros.

Ela cruzou os braços e encostou-se na cadeira, desacreditada.

— Meu voto é não. — Hailey finalizou e ficou quieta.

— Também não. — comentou Austin, sem acrescentar mais nada.

Nicholas adquiriu uma expressão preocupada. A votação havia começado extremamente mal para os gêmeos Johnson.

— Vocês só podem estar loucos. — Jenny se manifestou. — Vocês não podem culpa-la só por isso! Quantas pessoas em toda a história grega já não fizeram a mesma coisa? Ah, me errem! Susana deve ficar. Meu voto é sim.

— O meu também é sim. — Victor aproveitou a brecha da namorada. — Parecem que vocês nem ouviram o que ela falou aqui agora. Deuses, vocês sentem?

— Só acho que ela mereça sofrer as consequências por ter infligido a ordem natural das coisas. — Ally argumentou. — Elas estariam bem quietinhas se você tivesse ficado lá, Sue. Te desejo toda sorte do mundo, mas fora daqui. Eu voto não.

— Voto sim. — Nicholas disse concisamente.

— Eu também voto sim. — posicionou-se Alex. — Vocês tão bravos e cansados. Saquei. Mas vocês só querem colocar a culpa disso tudo em alguém. Não precisa ser assim.

Catherine, a tenente das Caçadoras e antiga amiga de Jack, balançou a cabeça.

— Nunca se deve depender de um homem. Susana, você começou as coisas de forma errada. O que começa errado, acaba errado. Você tem que saber disso. Meu voto é não.

— Acredito em segundas chances. — disse Gabriel, do chalé quatro. — Eu voto sim.

Analisei todos os argumentos e encontrei certa coerência em cada um deles. Como Mary queria que eu seguisse a razão, se a razão também me apontava para o voto negativo?

Deparei-me com todo mundo olhando para mim, com expectativa. Percebi tarde demais que meu voto acabou sendo o último. Relaxei na cadeira, tentando pensar direito. Fiz uma contagem. Cinco votos de um lado, cinco votos do outro. Minha decisão iria acarretar no desempate.

Quão apropriado.

Eu não poderia mentir falando que a história que Susana contara não me abalou. Sabia que os poderes dos filhos de Atena poderiam se estender a esse ponto perturbador. Não sabia, no entanto, que alguém seria insano o bastante para executar tal feitos. Ou que alguém poderia suportar os efeitos deles na própria pele por tanto tempo, como Susana tinha conseguido. Eu não sabia se queria compreender aquela atrocidade. Era repugnante demais.

Por outro lado, as consequências dos atos de Susana não só atingiram a mim diretamente como a muitos do acampamento. Ela não podia achar que era certo ou nobre voltar à vida em nome do amor pela família.

Família. Susana havia tirado minha família.

— Ela tinha só sete anos. — eu disse para ninguém específico, com a voz em um tom baixo.

— Eu sei, Samantha. E eu sinto tanto! Mesmo. — Susana falou.

Segurei o ar e endureci meu olhar.

— Você estava lá quando Mia morreu. Você viu comigo como ela foi assassinada a sangue frio. Você estava lá verão passado também, quando viu Sócrates matar Briana. O que te faz pensar que eu iria a seu favor? Como pode levantar a bandeira da família se você causou a destruição da minha?

Susana ficou sem saber o que responder direito e assumiu um ar defensivo.

Você também me destruiu, ela pensou, mas não queria que eu ouvisse isso. Afinal, seu destino estava em minhas mãos.

Nicholas me lançou um olhar suplicante. Decidi ignorar. Ele não estava na posição de me pedir ajuda.

— Você não me respondeu. — eu disse, ríspida.

Susana respirou fundo, identificando o teste.

— Você sonhava comigo. — ela respondeu. — Nem sei como ou por que, mas eu sentia isso. Do mesmo jeito que eu estava lá, você também estava lá. Eu vi coisas que aconteceram com você, e você viu coisas que aconteceram comigo. Isso não é verdade?

Senti o olhar curioso de Jenny sobre mim.

Encarei o rosto de Susana, levemente vermelho por conta do choro, e tentei tomar minha decisão final. Eu tinha ido até lá com um propósito, mas me perdi em meio a tantas novas informações.

O que eu sabia é que eu queria decidir. Não por Mary, por Atena, por Clarck, por Mia ou Briana. Queria decidir por mim.

— Meu voto é... Eu voto a favor da permanência de Susana.

Susana soltou um suspiro aliviado e deixou a cabeça tombar um pouco para frente. Nick passou a mão pelos cabelos, surpreso, e abriu um sorriso vitorioso. Jenny deu risada, verdadeiramente contente por mim.

Os conselheiros começaram a falar ao mesmo tempo, um por cima do outro, nem todos satisfeitos por meu voto. Olhei para Nick como se dissesse “nunca me peça mais nada”.

— Obrigada. — Susana disse a mim, emocionada. — De verdade.

— Não fale mais comigo. — mandei.

Ela assentiu.

Quíron bateu com a mão espalmada sobre a mesa.

— Esta reunião está oficialmente terminada.


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