Samantha Roberts - Guerra Fria escrita por Duda Chase


Capítulo 29
Quente e frio


Notas iniciais do capítulo

Sei que demorei, mas tem acontecido um monte de coisas ultimamente. O capítulo é extenso e um pouquinho chato, mas importante.



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Em meu sonho, eu estava em Tessália. Eu havia estado pessoalmente na região seis meses antes, procurando as Caçadoras. Lamentava ter estado na Grécia e não aproveitado muita coisa. No entanto, não me culpava. Tínhamos uma missão contra o tempo na época.

Encontrei-me em meio a uma grande planície. Era final de tarde e o ar estava abafado, porém eu duvidava que continuasse daquele jeito, pois o céu estava coberto por nuvens escuras. Não iria demorar até o mundo desabar em chuva.

Olhei para o lado a fim de fazer um segundo reconhecimento do local. Talvez uns vinte e cinco quilômetros distante de mim, na direção sudeste em referência a minha posição inicial, uma série de montanhas rochosas se estendia. E logo eu já soube: era Meteora, a floresta de pedras. Bem mais além, pude ver um contorno acinzentado no horizonte. Os Montes Pindo.

Começou a ventar forte e meus cabelos e roupas acompanharam o movimento do vento. Um raio tocou o chão a milhares de metros de distância. Segundos depois, um trovão fez a terra tremer.

Conclui que não era seguro estar num local descoberto quando uma chuva de raios estava prestes a iniciar. Procurei ao meu redor por um abrigo próximo. Algo bizarro, no entanto, aconteceu. O chão pareceu ampliar seu tamanho, alargando a planície, distanciando de mim qualquer coisa que pudesse me proteger.

Voltei-me para Meteora, confusa. Será que minha mente, minha melhor aliada, estava me pregando peças? A floresta parecia estar a mesma distância de sempre, como se não tivesse sido afetada pelo estranho acontecimento anterior.

Fui obrigada a optar pelo antigo esconderijo de Ártemis. Olhei para o céu e tremi quando um trovão agitou o chão novamente. Respirei fundo e comecei minha caminhada.

Aqui foi o local da primeira guerra, eu lembrei. Meus pés andavam sobre a terra que outrora se chamava Aeolus, a grande planície que separava o Monte Oeta e o Monte Olimpo. A batalha entre os titãs e os deuses. Tudo começou aqui.

Na qualidade de filha de um grande professor de história, eu não poderia deixar os outros detalhes escaparem. Tomada pelo Império Bizantino. Terra de um dos maiores complexos de mosteiros cristãos no Oriente. Era irônico ver que o local era de grande importância para ambas as religiões. Depois virou posse dos eslavos. Depois, turco-otomanos. E eu fui recitando em minha cabeça tudo o que eu sabia do local. Fazia com que eu me sentisse mais segura, como se meu pai estivesse perto de mim.

Aproximadamente dez quilômetros depois, a chuva começou a cair. E ela nem me deu uma colher de chá, começando com um chuvisco. As nuvens jogaram o que tinham, tudo de uma vez. Pareciam terem segurado o peso daquela água por anos e não aguentar mais. Minha roupa se encharcou em segundos e colou em meu corpo. Meus movimentos passaram a se tornar incômodos por causa disso, mas a possibilidade de ser acertada por um raio me incomodava mais. A chuva piorava a cada passo e os raios caiam com mais frequência.

Aquela chuva torrencial fez-me lembrar de um episódio que acontecera há alguns meses. Numa noite de tempestade, eu estava na casa de Jenny. Enquanto esperávamos que Laranja Mecânica baixasse no computador para a gente assistir, ela sentou no parapeito da janela de seu quarto e observou a chuva cair do lado de fora. Seus lábios se abriam a tornavam a se tocar silenciosamente.

— Estou na dúvida se você está parecendo uma atormentada mental ou só algum tipo de emo. — zombei enquanto ajeitava as cobertas em sua cama.

— É um hino. — Jenny explicou. — Um hino a Zeus que Orfeu compôs. Ouvi Quíron cantar isso no acampamento quando eu era menor. — então ela voltou a cantar; alto, dessa vez. — Zeus é o alento de todas as coisas, Zeus é o ímpeto da chama incessante...

Ainda faltava muito para eu alcançar a floresta. O barulho da tempestade e dos trovões crescia a cada instante. Eu estava começando a ficar apavorada com a queda anormal de raios e com a violência do vento. Então comecei a cantar o hino, que fiz Jenny me ensinar.

— Zeus é o primeiro, Zeus é o último, o deus com o raio ofuscante. Zeus é a cabeça, Zeus é o meio...

Eu tinha esperança de que a tempestade aliviasse ao mostrar um pouco de devoção. Era isso o que os deuses queriam, não era? Era disso que eles precisavam. Mas não parecia estar surtindo efeito. Será que Zeus conseguia me ouvir em meio a tanta trovoada?

Senti-me abandonada, como jamais tinha me sentido antes. Decidi que não precisava me submeter a isso e foquei em meu destino: o paredão de rochas a minha frente. Tomei fôlego e comecei a correr.

Quando cheguei, já não sabia como estava sentindo minhas pernas. Eu estava tremendo, coberta de lama e o cabelo estava todo grudado em minha testa. Encostei minha cabeça no paredão e tentei devolver algum ar aos meus pulmões. Olhei para cima um instante e me deparei com um contraste entre a cor de areia das rochas de arenito e o verde escuro da mata densa que preenchia o espaço entre as montanhas de pedra.

Eu havia chegado ao meu destino, mas ainda estava exposta. Recusava-me a ser acertada logo no final de minha jornada, então contornei o paredão até encontrar uma trilha para entrar na mata.

Andei quase cem metros para dentro antes de desabar no chão. O mundo parecia estar literalmente acabando. Cogitei fechar os olhos e ficar deitada ali mesmo, deixando aquela chuva dissolver tudo ao meu redor e me levar junto.

Um som quase inaudível, no entanto, me afastava da inconsciência. Era delicado e constante. Gradativamente, ele foi aumentando até eu poder distingui-lo como uma voz. Sentei-me ereta e prestei atenção no que ela dizia.

Socorro!

Meu corpo entrou em estado de alerta ao ouvir essa palavra. A voz gritava por socorro incessantemente, mas somente na quarta vez eu pude reconhecer a sua dona: Mia.

No segundo seguinte eu já estava de pé, arrancando no meio da floresta e seguindo sua voz. Comecei a subir a montanha. Tropecei em raízes, escorreguei em depressões, escalei paredes e subi aclives íngremes. Não importava, eu não iria parar até chegar a minha irmãzinha. Ela precisava de mim.

Cheguei ao último paredão. A voz dela estava vindo lá de cima, eu tinha certeza. Sem hesitar, comecei a escalar aquela coisa o mais rápido que meu estado físico me permitia. Ao chegar ao topo, rolei meu corpo para longe da borda.

Levantei-me e me permiti ficar rapidamente orgulhosa — eu estava no topo da montanha. A planície inteira se estendia aos meus pés. Não me preocupei, contudo, em admirar a paisagem. Comecei logo a procurar pela Mia.

Encontrei-a do outro lado do outro lado do rochedo. Seus cabelos esvoaçavam enquanto ele apontava sua adaga para algo. Alguém. Havia uma segunda figura naquele lugar. Apoiado descontraidamente em sua espada fincada no chão, estava Sócrates.

A ira subiu minha cabeça.

— Sócrates! — eu gritei por cima da tempestade. Um trovão enfatizou minha chegada. — Não ouse por um dedo nela!

Ele se virou para mim, abriu um sorriso e os braços.

— Quer tentar a sorte?

Aquilo para mim foi a gota d’água. Gritando de raiva, parti ao seu encontro pronta para despedaça-lo com minhas próprias mãos. E eu tinha certeza de que realmente iria conseguir, mas então o mundo ficou branco. Um barulho ensurdecedor chegou aos meus ouvidos e eu pensei que eles iriam explodir.

Bati com as costas em algo. Quando minha visão se estabilizou novamente, entendi que aconteceu: um raio caíra ali e me lançou a metros de distância. Apesar da dor da pancada, eu me encontrava bem. Levantei-me a procurei por Sócrates, contudo ele havia sumido de minha visão.

Foi pelo grito de socorro de Mia que pude encontra-lo novamente. Segui sua voz e cheguei até a outra extremidade do rochedo. Os dois também haviam sido jogados para longe pela força do raio. Ambos estavam pendurados na beira do rochedo por uma mão. A queda ali era o sinônimo de morte.

— Sam — Mia chamou, sua voz tomada pelo medo. —, me ajuda!

Eu ia pegar sua mão no momento em que Sócrates começou a voltar para a borda. Hesitei. Era a chance perfeita de aniquilar aquele monstro de uma vez por todas. Vi-me obrigada a fazer uma escolha rápida.

A mágoa e o sentimento de vingança falaram mais alto que minha razão. Dei um passo para trás e chutei o rosto de Sócrates com força.

Quando ele caiu, levou Mia consigo.


Fui acordada pelo barulho de passos vindo do lado de fora. Sentei-me em minha cama, confusa e com a respiração acelerada. Poucas vezes em minha vida eu tivera um sonho tão real como aquele. Esfreguei meu rosto e tentei esquecer a cena de Mia ruflando os braços enquanto caía.

Fumaça saía de minha boca a cada expiração. Esperei até eu me acalmar, joguei as pernas para o lado da maca e desci.

Sustentar o peso de meu próprio corpo foi mais difícil que imaginei ser. Dar um passo nunca me custou tanto gasto de energia. De repente, a distância de um metro entre o pé da maca e a saída parecia mais uma maratona que outra coisa. Psicológico, Sam. É tudo psicológico.

Puxei um dos cobertores da maca e o joguei por cima de meus ombros. Devagar e indo, caminhei até a saída.

A neblina da manhã engolia todo o acampamento. O céu estava apenas começando a clarear. Parecia até coisa de filme.

Manhã de começo de inverno em 1986, pensei. A garota acorda antes da hora de levantar sabe lá Deus por que. Ela vai tomar um copo de leite na cozinha, mas ouve um barulho alto lá fora. Sai de casa e se depara com a neblina mais densa que já viu na vida. O barulho se repete e ela percebe que vem da reserva florestal próxima a sua casa. Ela segue o barulho. Seu corpo é achado quatro dias depois.

A movimentação matinal era exígua. Um pequeno grupo que misturava filhos de Quione e Apolo tinha acordado e estava desmontando uma das tendas. Era vindo daí o barulho que me acordou. Os quentes e os frios. Bela equipe.

Aconcheguei-me na minha coberta e comecei a andar. Eu esperava que algum esforço fizesse minha pressão subir, assim eu não me sentiria tão exausta. A realidade, no entanto, não correspondia às minhas esperanças.

Deparei-me com Quíron, em toda sua enorme forma de cavalo alazão, remexendo com um graveto longo as achas que alimentavam uma fogueira prestes a ter seu fogo extinguido.

Meus dentes se batiam involuntariamente. Encolhi-me mais ainda dentro da coberta. Eu me sentia como se não houvesse calor algum em meu corpo. Tudo era frio. Frio, frio, frio.

Quíron percebeu minha chegada e, por alguns segundos, ficou estático. Então ele jogou o graveto na neve e perguntou:

— O que, em nome dos deuses, a senhorita está fazendo em pé?

Nem eu sei.

Antes mesmo que eu pudesse responder algo digno, o velho centauro, com todo seu jeito paternal, veio até mim e segurou meu cotovelo para me guiar de volta à barraca.

— Sei que gosta de demonstrar serviço, Samantha, mas você também tem que saber quais são seus limites. — ele disse com toda a calma do mundo.

Não ousei dizer nada a ele — estava concentrada demais em meus próprios passos, repetindo a mim mesma que não deveria cair na frente de Quíron. Apenas olhei para ele e depois abaixei a cabeça, tremendo.

— Talvez você não entenda a gravidade de sua situação. — ele retesou o maxilar. — Procedimentos medicinais convencionais não foram o suficiente para tirar você do estado de choque.

— Com isso você quer dizer—

— A medicina conhecida pelos humanos. — ele completou. — Sim. É por muito pouco que está viva. Deveria agradecer a senhorita McGuire por isso.

Estaquei no lugar.

— Jenny?

Quíron assentiu.

— Soube que Jennifer era um talento natural desde o primeiro momento em que a vi. Mas o que ela realizou para te salvar foi realmente inacreditável. Ela despendeu tamanha energia que temi que não suportasse também. Não me leve a mal, Samantha. Estou dizendo isso pois seus amigos concordaram em não lhe dar mais preocupações. No entanto, acho que merece saber dessas coisas. O que quero dizer é que você encarou a morte e escapou, e que senhorita McGuire merece os louros por isso.

Eu desconfiava pela reação de Nick que, sim, meus amigos combinaram de me esconderem certas coisas sobre certos assuntos. Não imaginava, no entanto, que Jenny quase morrera para me salvar. Isso me fez perguntar o que mais aconteceu após a batalha e que eu não estava sabendo.

— Seu quadro é muito delicado. — Quíron prosseguiu. — Terá que ficar em repouso absoluto por algum tempo e entrar em uma dieta especial também. Você perdeu muito sangue e precisa repor essa quantidade toda.

Queria discordar, mas entendia a situação. Bem, minha tremedeira e fraqueza entendiam por mim.

O grupo de semideuses desmontando a barraca chamou minha atenção novamente. Enquanto eu observava os filhos de Apolo trabalhando, ocorreu-me que Ned não me visitara desde o momento em que acordei.

Abri a boca para comentar o faro com Quíron, porém alguém se dirigiu a mim primeiro:

— O que raios você está fazendo aqui fora?

Nick, que aparentemente saiu da tenda a nossa esquerda, prostrava-se em pé a minha frente.

— Já estava levando-a de volta a enfermaria. — Quíron tentou aliviar para meu lado.

— Faço isso se quiser.

— Não! — protestei. Cerrei os olhos e tentei fazer com que meu queixo parasse de tremer tanto. — Consigo ir sozinha.

Desvencilhei-me de Quíron o mais gentilmente possível. Mandei-lhe um olhar agradecido e dei alguns passos sozinha. Nick percebeu que eu não estava me dirigindo à tenda, então caminhou rapidamente até mim.

— Sam, você precisava fica debaixo das cobertas. Estou falando sério. Vai pegar uma hipotermia.

Tentei não me irritar. Ele não podia achar que ainda tinha o direito de cuidar da minha vida. Mas não importava — eu tinha algo mais importante para fazer no momento. Continuei andando com dificuldade monstruosa, rumando ao grupo adiante.

— Sam. Não me obrigue a te carregar até lá. — ele esperou que eu dissesse algo em resposta. — Você sabe que eu vou.

Lambi meus lábios secos.

— Preciso falar com eles. — expliquei. Minha voz estava tão trêmula quanto meu corpo. — Deito depois.

— Então se apoia em mim.

— Não.

— Sam, é a sua saúde.

— Não ligo.

— Você tem que largar de ser cabeça dura.

— E você tem que largar de achar que preciso ou quero sua ajuda.

Nick ficou prestes a falar algo, mas vi que ele se esforçou para não fazê-lo. Ele não queria discutir comigo. Visivelmente chateado e aborrecido, ele só acompanhou minhas cada vez mais lentas passadas.

Mike, filho de Apolo, parou o que estava fazendo quando notou minha aproximação. Ele dobrou uma última haste e enfiou no saco.

— Oi.

— Oi. — puxei minha manga para cima da luva, tentando arranjar coragem para falar. — Você sabe me dizer onde está Ned?

O garoto ficou parado, a boca entreaberta. Ele olhou para trás, em evidente busca de socorro.

O mundo pareceu congelar por alguns segundos. Uma tensão invisível acumulou-se ao meu redor, pressionando meu corpo de todos os lados. Prendi a respiração, aflita demais para fazer qualquer pequeno movimento.

Não. Não fala. Não, não, não, não.

— Deuses, Sam. Eu pensei que já tivessem te contado. — Mike falou comigo como alguém fala a uma criança. — Ned... Ele... Ned se feriu gravemente na batalha. — sua voz começou a ficar embargada. — Nós fizemos de tudo, mas... Ele acabou... Ned está morto, Sam. Eu sinto muito mesmo. Soubemos que vocês estavam... — ele olhou para Nick e não terminou a frase. — Foi um baque para a gente também.

Eu entendi o que ele disse, mas não consegui absorver as suas palavras. Ao invés disso, elas giravam em volta de mim e o mundo acompanhou seus movimentos. O cobertor nos meus ombros começou a pesar como chumbo. Tudo pareceu ficar distante.

Então eu desmaiei de novo.

_____


— Acorda. — alguém dava tapinhas em minha bochecha. — Vamos, Sam, você precisa ficar acordada.

A primeira coisa que meus olhos conseguiram focar foi o rosto de Jenny. E lá estava ela me fazendo acordar de novo. Senti uma inexplicável vontade de agradecê-la — agradecê-la por tudo. Cada centímetro do meu corpo, contudo, estava entorpecido. Eu não conseguia fazer muita coisa além de piscar e respirar.

Jenny suspirou, aliviada.

— Já pode parar de me assustar. Acabou a graça.

A ponta de meus dedos formigava. Eu estava com um gosto ruim na boca, amargo. Parecia que eu tinha sido atropelada por um caminhão e, com raiva por eu não ter morrido, o motorista tinha dado ré e feito o trabalho de novo.

Não precisei fazer de muito esforço para saber que estava em meu pequeno local de exílio, a tenda leito de descanso. Jenny ajudou-me a sentar. Não estávamos sozinhas: Nick e Clarck estavam no canto, me olhando.

A presença de Nick resgatou minhas últimas lembranças.

Oh, deuses. Ned.

Talvez eu me sentiria mais destruída se houvesse mais alguma coisa para abalar em mim. Mas então veio uma nova sensação: me senti vazia, oca. Era menos intensa, mas não menos desesperadora. O vazio criou uma sensação agoniante de vácuo, de sufoco.

— Você sabia? — foi tudo o que perguntei à Jenny.

Ela assentiu, os olhos começando a marejar. Não pude fazer muito mais que abaixar a cabeça e deixar as lágrimas saírem. Não demorou até que a emoção me tomasse por completo e eu estivesse aos soluços.

Jenny tentou achar uma posição para me abraçar.

— Ele lutou muito para sobreviver. Foi um guerreiro até o último segundo.

O último segundo. O que tinha me privado de seu último segundo, seu último toque delicado? Eu estava no choque, estava dormindo? Eu me sentia frustrada por ter acordado em condições tão limitadas e por terem me concedido tão poucas respostas.

As lágrimas que vinham não ajudavam em nada além de deixar em meus lábios um leve gosto salgado. Era absurdo o nada que eu sentia, que eu me sentia.

Clarck pegou minha mão e apertou forte.

— Pense que não foi em vão. Ele foi, com certeza, um dos maiores heróis dessa batalha.

Quis pedir para eles pararem de me consolar, mas não tive coragem. Entrelacei meus dedos com os de meu irmão e fiquei quieta.

Jenny estava segurando seu próprio choro.

Ela está tentando ser forte para mim, pensei.

Mesmo também estando emocionalmente abalada, ela se segurava para me ajudar. Saber disso deveria fazer com que eu me sentisse melhor, mas o efeito era contrário. Quis poder secar meus olhos e dizer a ela que estava tudo bem. Não era tão fácil quanto eu desejava que fosse.

Nick deu passos receosos até à maca. Apertei com mais força a mão de Clarck, em reflexo. Ele não podia estar ali. Nick ali era como uma profanação ao momento de luto que estávamos tendo. Um momento sobre Ned.

— Sai daqui. — mandei. Minha voz carregou tanto ódio que até eu me surpreendi. Nick pareceu não entender. — Vai embora. Agora!

— S-Sam, eu... — Nick balbuciou.

Eu estava à beira do descontrole.

— Você não ouviu?! Vai embora! Sai daqui! SAI!

Tinha algo nos olhos de Nick que não consegui identificar — não poderia nem se quisesse de verdade, porque minha visão que já estava começando a ficar embaçada.

Nick me obedeceu e foi embora depois de trocar um breve olhar com Jenny. Não me senti melhor com sua partida, no entanto. Encostei minha cabeça no ombro de Jenny e apenas fiquei esperando aquilo acabar.


Fogo. Tudo era fogo.

Em poucos minutos a fumaça negra chegaria até o topo da muralha, onde nós nos encontrávamos. O cheiro era pútrido, quase insuportável. Meus olhos ardiam intensamente.

O grande funeral ocorreu do jeito previsto: sem muita cerimônia.

Um grupo grande foi até o acampamento verificar se havia mais alguém lá dentro. Pegaram armas, comida, tudo que nos seria útil e que tivéssemos condições de levar. Os outros carregaram os cadáveres, um a um, e levaram até a parte mais central do acampamento. Eles tentaram inutilmente separar os rebeldes dos nossos. Eu não via o porquê disso tudo: o vento e a neve iriam misturar as cinzas de qualquer forma.

Quíron deixou algumas poucas palavras sobre coragem, sacrifício e heroísmo. Susana sentiu-se na obrigação de pedir perdão publicamente. Lágrimas de raiva invadiram meus olhos enquanto ela homenageava todos os falecidos e tentava se explicar. A repulsa que sentia deixa-me enjoada, e eu não sabia se eu seria capaz de olhar na cara dela depois do que se passara.

Ateou-se fogo ao amontado de corpos e, em pouco tempo, ele já consumia a todos os que ali jaziam. Programaram as bombas — as primeiras explodiriam todas as construções dentro do terreno, as demais, causariam as avalanches. Evacuamos o local.

Para mim não foi o suficiente. Num esforço final, subi as escadarias que dariam em uma das torres de vigia. Andei pela muralha até ficar de frente com a fonte do fogo. Ouvi passos atrás de mim, porém não me assustei. Sabia que Clarck estava me seguindo. Ele não iria deixar eu me aventurar sozinha.

O barulho do meu arfar se misturou ao crepitar do fogo. Logo atrás ouvia o som de pés se arrastando pelo desfiladeiro.

Clarck prostrou-se ao meu lado, seus olhos vermelhos e inchados vidrados em um ponto fixo. Eu não precisava seguir seu olhar para saber que encarava o corpo de Mia. Também tive o cuidado de memorizar sua posição.

Mesmo sabendo que eu estava fora de alcance para qualquer um dos deuses, fiz uma silenciosa oração. Por todos os que queimavam.

Vi que Clarck fazia esforço para não voltar a chorar. Encostei levemente em sua mão. Ele virou para mim, abalado, e tentou falar alguma coisa. Ao invés disso, me abraçou forte e começou a chorar em meu ombro. Passei meu braço por suas costas.

— Foi o melhor para ela. — eu tentei conforta-lo. Minha voz estava embargada. Eu sempre odiei todos esses clichês fúnebres, mas agora eu entendia que não dava para ver alguém sofrer e não tentar algo. — Ela não merecia essa vida que foi obrigada a entrar.

Ele assentiu, o rosto ainda contra meu ombro. Eu sentia sua respiração quente mesmo com todas as camadas de roupa. Afaguei seus cabelos e dei algum tempo a ele. Enquanto isso, eu olhava por cima de seu lombo, na direção do fogo.

— A culpa é minha. — seu resmungo saiu abafado. — Era para ela ter ficado.

Meu coração se apertava mais a cada palavra dele.

— Não faz isso com você. — pedi. Peguei sua mão. — Vem, temos que ir embora. As bombas já estão armadas.

Ele fazia que não com a cabeça.

Ver Clarck, meu meio-irmão mais velho, que sempre fora uma referência de pessoa controlada em momentos de crise, fragilizado daquele jeito era algo com eu não sabia direito como lidar. Daquele jeito a minha frente, ele parecia um garotinho de oito anos.

— Eles vão dar falta da gente. — persuadi-o.

Clarck enxugou seus olhos com as costas das mãos e respirou fundo. Segurei seu rosto com as duas mãos e fiquei na ponta dos pés para dar-lhe um beijo na testa.

— Clarck Kent, você é meu herói.

Despedimo-nos do lugar, de Mia, e fomos embora. Ajudamos a terminar de desmontar tudo e seguimos caminho. Era de hora de voltar para casa.

Quarenta minutos depois de termos partido, ouvimos o grande e esperado estrondo. Todos pararam e olharam para trás, para as montanhas que deixamos. Não era possível ver muita coisa. Uma nova sequência de explosões de iniciou. A neve começou a deslizar com certa graça, levantando uma nuvem alva.

E foi assim que enterramos irmãos, amigos e um ano e meio de nossas vidas.


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Notas finais do capítulo

Pra quem não entendeu a referência, Clarck Kent não é o nome dele, é o nome do Super-Homem. Esse cap me deixou meio depre, mas espero que tenham gostado!



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