Samantha Roberts - Guerra Fria escrita por Duda Chase


Capítulo 18
Origens


Notas iniciais do capítulo

É claro que minha conquista por conseguir postar num período regulado tinha que flopar. Eu tinha que estragar com essa brincadeira, naturalmente. Mas pelo menos foi um adiantamento, não atraso! Aqui está. Boa leitura pra vcs.



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A quarta noite foi a pior de todas.

Não esperávamos uma tempestade de neve daquela proporção quando as nuvens começaram a escurecer. Até ali, não havia nevado por um tempo maior que duas horas. Mas assim que o céu ficou preto fomos surpreendidos com uma nevasca aterradora.

Apressados, corremos para uma das enfermarias. Estas eram as maiores barracas, de três metros por dois e meio. Tivemos o cuidado de cobrir o tronco dos cavalos com cobertores e colocar a cabeça deles para dentro da lona de nossa barraca. Especiais ou não, ninguém merecia ficar exposto àquilo. Além do mais, o elemento deles era fogo. Não sabíamos o quanto eles ficariam abalados com aquela neve contra eles.

Liguei os lampiões elétricos e fechei a porta de velcro da barraca assim que Matt, o último a entrar, passou tremendo por ela.

— Eu vou morrer. — ele disse ao se sentar encolhido em cima de um saco de dormir. — É frio demais!

Dei-lhe um olhar empático.

O vento era poderoso e barulhento. A barraca inteira agitava-se com sua força, ameaçando a cair a qualquer momento. Temi por minhas amadas estacas e perguntei-me até onde elas iriam aguentar.

— De onde tudo veio isso? — perguntou Alex para ninguém específico. — Que horror.

Dei ombros, incapacitada de falar pelo meu trêmulo maxilar. Arrastei para o canto as macas portáteis que havíamos trazido e me sentei com os outros no centro da barraca.

Meu estado era lastimável. A neve molhara toda a roupa que não estava sendo coberta pelo casaco impermeável. Eu sentia uma poça d’água dentro de meus tênis e isso me irritava tanto que estava prestes a me levar a loucura. A água era geladíssima e eu sentia como se a própria Quione estivesse baforando em mim. Os pelos de meus braços e pernas enrijeceram-se em resposta ao frio e eu tremia feito uma britadeira. Meu cabelo não estava em melhores condições.

Ned distribuiu cobertores entre a gente. Cobri meus ombros com o tecido e me agarrei a ele como uma criança assustada agarraria seu ursinho de pelúcia favorito.

— Acho que vamos tirar a noite de folga. — disse Jenny ao pousar a cabeça sobre minhas pernas cruzadas.

Comecei a passar meus dedos por seus cabelos úmidos e embaraçados num ato quase que instintivo. Jenny fechou os olhos e respirou fundo.

— Esse inverno me faz sentir falta de casa. — ela confessou ainda de olhos fechados.

Casa.

Imaginei o que meu pai estaria fazendo agora. Talvez voltando da universidade, ao julgar pela hora. Então lembrei que um grande fuso-horário nos separava. Mesmo assim, eu conseguia vê-lo abrir a porta atrapalhado com as chaves e com sua pasta abarrotada de papéis e documentos. Então ele jogaria tudo no aparador da sala e se sentaria no sofá suspirando de alívio.

— Não há nada que eu ame e odeie mais do que o magistério. — ele diria.

Ele sempre falava isso depois de um dia exaustivo. Quis poder ligar para ele e perguntar como foi o dia dele, falar sobre como eu estou e o que eu esperava do que estaria pela frente.

Saber que você vai para uma batalha e que provavelmente não vai voltar pode fazer você se apegar a coisas pequenas.

— De onde você é? — perguntou Thais, a única que não convivia muito com Jenny.

Jenny abriu os olhos e puxou o cobertor até o queixo.

— O interior do interior de San Bernardino. — ela respondeu. — Califórnia. — depois acrescentou.

Senti uma pontada de ciúmes. Eu esperava que ela se referisse a Nova York como sua casa. Aquela era nossa cidade, onde vivíamos juntas. Era difícil aceitar o fato que Jenny às vezes se sentia como pertencesse a outro lugar completamente longe de mim.

— Meu vô tinha um vinhedo lá. — ela continuou. — Minha mãe e eu moramos com ele até meus dez anos, por aí. Não tínhamos esse inverno em San Bernardino. Só sol, vento e o frescor das uvas.

Os outros pareceram absorver a nostalgia na voz dela. Ficamos em silêncio um tempo, o pensamento longe, em casa, nos apertando cada vez mais naquele círculo em sinal de desespero por calor corporal.

— Vim de Salt Lake City. — Thais rompeu o silêncio. — Ar seco, montanhas e paisagens lindas. O outono mais incrível em todo o país. — os olhos dela brilharam. — O inverno não é muito melhor do que o daqui.

Nicholas morava na cidade ao lado, Provo. Ele sempre dizia que iria me trazer lá para passar um dia inteiro fazendo trilha pelas montanhas. Que a visão do topo era de deixar qualquer um de boca aberta, até mesmo a mim que não era fácil de se impressionar. Eu adorava como ele falava de seu lugar de origem com tamanha adoração. Sobre a simpatia de seus vizinhos, da beleza dos templos mórmons pela região, de como em cada esquina você pode encontrar estudantes das universidades locais fazendo projetos de vídeo e brincando com os cidadãos. Uma grande família.

Alex abraçou suas pernas timidamente.

— Sou de uma cidadezinha de Connecticut. Naugatuck. É bem calminha, não tem nada de especial. Nem paisagens maravilhosas nem muito sol e as uvas mágicas. Não é muito grande, mas não é um fim de mundo. É bem... Média. Mas eu adoro lá. Minhas melhores lembranças pertencem àquele lugar.

A ideia de Alex numa cidade calma parecia totalmente controversa a mim. Eu não conseguia ver aquela garota elétrica num lugar cheio de campos e áreas florestais, onde as pessoas seguiam a vida num ritmo sossegado.

Queen grunhiu ao meu lado.

— Já morei em tantas cidades que eu não conseguiria me apegar a uma nem se quisesse. Nasci em Seattle, se isso for relevante.

— Nascido e crescido em Santa Cruz. — contou Ned. — Moro lá até hoje. As praias são bem legais. Os turistas amam.

Jenny soltou um suspiro em meu colo, os olhos piscando preguiçosamente. Parecia um bebê sendo aninhado. Sorri e continuei a afagar seu cabelo, vendo que o assunto a deixara mais leve. Ela precisava disso.

— Sou cria da Grande Maçã. — disse ao sentir que minha vez tinha chegado. — A Cidade que Nunca Dorme. A Selva de Concreto. Podem escolher qualquer coisa. Não é ruim, fora o trânsito caótico, os empresários rabugentos na rua e os tarados do metrô. Mas acredito que a mágica deve ser maior se você for de fora. As luzes, o movimento, as apresentações de rua. Você acaba se acostumando.

— Ou fazendo parte do espetáculo. — Ned rebateu.

Meneei a cabeça como quem diz pode ser. A visão da plateia nunca será a mesma de alguém dos bastidores. Eu era a contrarregra da vida corrida e insana de Nova York.

— Gosto das surpresas de lá. — eu disse. — A cada esquina você pode encontrar algo que não esperava. Um ótimo restaurante mexicano no final de um beco, uma livraria gigante por trás de uma portela na rua 42 ou até um set que usa os próprios cidadãos como figurantes do filme, logo ali atrás da sua rua.

Talvez eu fosse uma Alex da vida. Também era controverso eu, que sempre fui tão metódica e programada, morasse numa cidade totalmente imprevisível. Nova York improvisava em seu próprio espetáculo. E ela era boa nisso.

Os olhares se voltaram a Matt, que permanecera mudo desde sua reclamação sobre o clima. Ele virou o rosto, encabulado com os olhares, o braço apoiado sobre o joelho dobrado.

— Não gosto de falar sobre essas coisas. — ele disse entre os dentes.

Nós não o pressionamos, em sinal de respeito e compreensão. Muitos semideuses tinham uma vida tranquila até a adolescência, quando descobriam sua verdadeira linhagem — assim como foi comigo. Outros nem tanto. Ouvi histórias de semideuses que tiveram que fugir de casa ou que foram expulsos pelos próprios pais por estarem “possuídos pelo Diabo”. Muitos viveram nas ruas fugindo de monstros. Eu não conhecia a história de Matt, mas acreditava que havia muito mais do que ele deixava transparecer.

— Eu queria tanto fazer uma fogueira agora. — disse Jenny. — Mas deixei meu violão lá no acampamento.

— E nem seria inteligente sair cantando para eles nossa posição. — adicionei.

Xanto emitiu um barulho parecido com um espirro. Virei-me para trás e me deparei com seus olhos arregalados. Fiquei com pena por não conseguir colocar os cavalos inteiramente para dentro de uma barraca, mas esse era o melhor que conseguíamos fazer.

Ao voltar-me novamente para frente, fui surpreendida com uma aparição. Um rodopiante círculo de luz materializou-se no ar, brilhando num desbotado lusco-fusco. De giro em giro, ele ia adquirindo uma coloração rosada em alguns pontos. Então azul. Depois violeta. Parecia uma bolha de detergente mágica.

A luz trêmula e indistinta aos poucos começou a adquirir nitidez, revelando uma imagem meio desfocada de um cenário conhecido. E uma silhueta conhecida.

Pela Mensagem de Íris, pude ver Clarck verificando a qualidade da ligação que estava tentando fazer. Atrás dele havia uma mesa de ping-pong e cadeiras vazias e reviradas. Ele notou que eu via a ele e abriu um sorriso vitorioso.

— Sam! — ele quase gritou de alegria.

Jenny pulou assustada com Clarck. Ela se sentou e arrastou seu corpo para perto do meu, a fim de aparecer também.

— E Jenny! — Clarck soou exatamente como quando os apresentadores do Hi-5 anunciam seus nomes em cada começo de um programa.

— Jenny, eu e toda a trupe. — eu disse. — Estamos todos aqui. Pode falar.

Quíron apareceu atrás de Clarck com certo alívio em seus velhos olhos.

— Samantha. — ele disse meu nome com satisfação. — Finalmente conseguimos contata-la. As ligações vêm sempre falhando. Gostaríamos de saber da situação de vocês.

Queen, Alex e Ned se aglomeraram atrás de mim, também querendo ver um pouquinho das coisas do outro lado.

— Estamos progredindo. — comecei a relatar. — Conseguimos algumas informações sobre os outros que nos colocam numa posição muito vantajosa. A gente já consegue entrar na batalha sabendo o que devemos fazer agora.

— Tipo o que? — perguntou Clarck.

Encolhi os ombros.

— Localização exata, movimentação, posição das torres de vigia. Nosso anonimato. Tudo isso coloca a gente um passo à frente.

— Isso nós discutiremos mais tarde. — Quíron interveio. — O que queremos saber é onde vocês exatamente estão. Partiremos amanhã cedo.

O rosto de Clarck murchou. Ele parecia estar ansioso para obter as respostas de suas próprias perguntas.

— Estamos acampados na margem... — parei um segundo para visualizar o mapa da Península Kenai em minha cabeça. — sudoeste do lago Tustumena. Tem uma trilha de camping no final da Sterling Highway. Andamos por ela até pegar um desvio direto para o lago. Não vai ser difícil nos achar.

Clarck abaixou os olhos e murmurou algo baixinho. Eu sabia que ele estava repetindo minhas palavras para tentar decorá-las mais facilmente.

—Certo. — disse Quíron. — Chegamos aí em dois ou três dias. Conseguem aguentar as pontas até lá?

No mesmo segundo em que ele disse, a barraca balançou com mais força, quase saindo do lugar. Ouvi o som de algo caindo com força no chão lá fora. Um dos cavalos relinchou. Jenny teve um arrepio ao meu lado.

Em horas como essa eu me fazia a mesma pergunta.

— Estaremos aqui esperando vocês. — tentei parecer mais confiante do que realmente estava. — O acampamento está praticamente pronto para receber a todos.

— Isso é muito bom, Samantha. Irei resolver os últimos adultos pendentes com o Sr. D. e anunciar o que será resolvido a partir disso na próxima fogueira. — ele deu uma pausa. — É bom ver vocês todos. Vou deixar Clarck falar um pouco.

Então o velho centauro saiu de vista.

— Como está sendo? — Clarck perguntou antes mesmo que eu tomasse fôlego.

— Não é uma SPA, mas estamos bem. — Queen respondeu, aparentemente mais confortável em falar sobre nossa rotina com meu irmão do que prestar relatórios a Quíron.

— Estamos presos numa nevasca agora. — Jenny contou, aproveitando o embalo. — Esse frio chega a ser cruel.

Clarck fez uma careta. Eu assenti.

— Hoje está sendo uma exceção. — expliquei. — Temos conseguindo lidar com essa loucura aqui. Geralmente nos revezamos entre guardar e montar o acampamento e sair para espionar. Tivemos alguns contratempos, mas conseguimos resolver tudo.

— Fiquei morrendo de preocupação esses dias. — admitiu Clarck. — Eu não conseguia achar vocês.

— Não há motivos para isso. Temos trabalhado bem juntos. Somos um ótimo time. Tudo vai estar bem quando nos vermos de novo.

Clarck parecia mais aliviado, mas ainda tinha algo melancólico em seus olhos. Perguntei-me o que ele sabia que eu não sabia. Porém não era a hora certa para isso. Não com todos os outros podendo ouvir nossa conversa. Eu teria de descobrir isso depois.

— Eu sei que sim. — ele disse quase num sussurro. — Me pediram para coordenar uma atividade daqui a cinco minutos... Talvez eu devesse ir.

— Pode ir.

Ele dividia o olhar entre todos nós.

— Está bem. — Clarck respirou fundo. — Isso vai acabar. Daqui a pouco tudo estará de volta ao normal.

Tentei lhe dar um sorriso agradecido, mas não tive muita certeza se eu consegui sustenta-lo por tempo suficiente para que meu irmão o visse.

— Ou tão normal quanto uma vida de semideus pode ser.

— É, por aí. Fiquem bem. Já estamos a caminho. Tchau para vocês.

— Tchau. — os sete disseram em uníssono.

Clarck encerrou a ligação.

No primeiro momento, nós todos ficamos nos encarando em silêncio, sem saber direito o que dizer. A iluminação precária parecia, de alguma forma, contribuir para o peso desse silêncio. Tudo naquele momento se resumia às nossas respirações ritmadas, que condensavam-se ao se chocar com o ar gélido na barraca.

Aos poucos voltamos a nossa circular posição original. Foi minha vez de recostar em Jenny. Apoiei minha cabeça em seu ombro e aproveitei aquele momento para minhas ponderações pessoais, o rosto preocupado de Clarck voltando-me a mente sem que eu pudesse evitar.

Ned balançava os pés e capturava todos os cantinhos da tenda com seus olhos. Ele realmente não suportava ficar quieto.

— Cara. — Alex se manifestou depois de algum tempo. — Eu daria meu rim por uns s’mores agora.

Meu estômago roncou como se estivesse respondendo a ela.

— Nossa comida ficou lá fora. — eu disse. — Boa sorte se quiser se aventurar.

Alex olhou para a porta da barraca, como se realmente estivesse pensando em sair debaixo daquela nevasca torrencial só para pegar alguma comida para nós.

— Nós não vamos morrer se perdermos uma refeição. — Matt disse.

Queen assentiu lentamente.

Senti o cansaço do dia tomar conta de meu corpo. Fui até o lago para pegar água um bocado de vezes naquela manhã. Depois passei a tarde equipando as barracas e tendas, carregando malas e bolsas de um lado da clareira ao outro. Em compensação, um pouco antes das quatro da tarde todos os lugares de uso comum já estavam prontos para a chegada do resto. Só faltava terminar de montar as barracas em que eles iriam dormir.

Pensei de novo em Nova York e em meu pai. Em todo aquele papo de infância que tivemos. Era levemente divertido pensar que sete adolescentes de vários cantos do país estivessem encolhidos numa barraca no meio de uma floresta inabitada no Alasca. Trazer nossa situação para um plano normal, um plano mortal, era de enlouquecer qualquer mãe ou simplesmente qualquer pessoa com um pingo de decência.

Tivemos mais alguns minutos de conversa aos cochichos. Por fim, fiquei cansada demais para acompanhar o assunto sobre filmes de alpinismo no inverno ou coisa do tipo.

Deitei-me sobre a lona fria e usei meu antebraço como travesseiro. Lembro-me de Ned ter ajustado o cobertor em meu corpo uma hora, mas eu já estava entre o sono e a vigília.

Tive um último pensamento antes de me entregar totalmente à inconsciência.

Nick.


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