Ainda escrita por Camilla Y


Capítulo 5
Segunda-feira, 6 de junho




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Havia sido um fim de semana estranho.

Nádia percebera, nos últimos dois dias, a estranheza no marido. Nos gestos, na fala ou nos olhos... Ele estava diferente. Jorge tinha agora uns olhos que ela nunca antes havia visto nele.

Daquela noite de sexta-feira, quando tiveram a tal conversa que possuía ares de decisiva, Nádia não se recordava muito. Lembrava-se, era certo, de como tudo transcorrera até certo ponto. Depois, entretanto, restavam apenas imagens borradas e incertas, até tudo se tornar um breu em suas memórias.

Jorge não pôde ser de muita ajuda para clarear as lembranças de Nádia. O marido, sempre tão prestativo quando requisitado em momentos de grande necessidade, agiu durante todo o fim de semana de um modo completamente impróprio da pessoa dele. Parecia fazer questão de manter-se afastado da esposa.

Nádia se lembrava de acordar no sábado, em sua cama, sendo despertada pelos raios de sol que invadiram seu quarto através da janela de vidro. A persiana estava completamente levantada e, por isso, a luminosidade daquela manhã adentrou o ambiente de forma agressiva. Os olhos negros se abriram com alguma dificuldade e Nádia sentia o corpo cansado, parecendo resistir ao desejo consciente que ela tinha de se ver logo em pé.

Por conta disso, não se levantou tão rápido quanto gostaria. Precisou dar tempo a si mesma, como se corpo e mente precisassem se reencontrar, como se necessitassem redescobrir um equilíbrio entre eles.

Devagar, foi sentindo que ganhava novamente domínio sobre seu corpo. Era algo parecido como voltar à vida. Por um instante, enquanto ia regressando a si mesma, Nádia pensou se estaria de ressaca. Mas rápido se lembrou de que há muito não bebia como na época de sua adolescência. Desde que se casara, desde que se tornara mãe, tinha tomado uma outra via e transformara-se em uma pessoa mais respeitável, que não seria jamais vista embriagada por conhecidos.

De qualquer modo, o estado em que se via agora era bastante distinto da forma em que se encontrou algumas vezes, quando mais nova, após uma noite de farra com as amigas.

Não, isso não era ressaca. Além de ela não ter ingerido álcool na véspera, podia fazer o tempo que fosse, Nádia se recordava de como ficava naquela época e o que lhe acontecia agora era bem diferente.

A primeira sensação que experimentou após perceber que seu corpo voltava a lhe obedecer foi uma espécie de formigamento, daqueles que surgem quando os membros superiores ou inferiores ficam dormentes. Ainda demoraria um pouco para que se sentisse com pleno controle sobre o seu corpo, mas Nádia não quis se demorar mais naquele estado. Sua mente já estava a mil por hora a essa altura, pois embora seu corpo parecesse voltar à vida somente agora, a mulher já se via consciente e bem desperta há alguns minutos.

Levantou-se de uma vez e sentiu-se um tanto zonza. Pensou que poderia ser por ter deixado a cama rápido demais. Apoiou-se na parede, respirou fundo algumas vezes e julgou que estava bem o suficiente. Dirigiu-se então para a porta do quarto, mas, antes de sair, voltou-se para trás e olhou ao redor, como se quisesse conferir aquilo que primeiro lhe chamou atenção assim que abriu os olhos.

Jorge não estava lá.

O marido tinha esse hábito de estar sempre presente quando a esposa despertava. Mesmo acordando antes dela – o que era comum, já que Jorge era uma pessoa diurna – o homem de cabelos castanhos encontrava algo para fazer até a mulher acordar também. Normalmente, ele sempre tinha um livro de cabeceira e se ocupava deste até Nádia abrir os vivazes olhos negros.

Havia se tornado um hábito. Enquanto Nádia se espreguiçava, Jorge lhe sorria calidamente, em um silencioso cumprimento de “bom dia”. Não eram necessárias palavras nesse momento. Os olhos de Jorge, sempre esverdeados a essa hora da manhã devido à maior luminosidade, conseguiam dizer essa pequenina frase com uma maior expressividade que palavra nenhuma seria capaz de transmitir.

Mais que um simples hábito, aquilo se tinha tornado um ritual que sempre oferecia à Nádia uma boa sensação, da qual ela não conhecia a importância até o presente momento.

Jorge não estava lá.

Aquilo parecia ter causado uma comoção maior em Nádia, muito maior que todo o estranhamento sentido naquele confuso despertar.

Sentindo que aos poucos as pernas iam ficando mais firmes, a mulher de negros cabelos passou a caminhar com mais segurança, ganhando então o corredor dos quartos, de forma que pôde checar o aposento das filhas.

Margarida, Rosa e Violeta ainda dividiam o mesmo quarto. Embora tivessem comprado essa casa, há pouco tempo, por ser maior e dispor de mais quartos, as meninas quiseram permanecer juntas.

Jorge tinha achado graça disso. O motivo de terem procurado uma nova residência havia sido a necessidade de quartos a mais, uma vez que as garotas estavam crescendo. Imaginavam, tanto o pai quanto a mãe, que a mais velha desejava já ter o seu espaço. Ademais, as outras também cresciam rápido e logo começariam a brigar por privacidade.

Entretanto, pelo visto, não era isso que as três meninas queriam ainda. Jorge e Nádia permitiram, obviamente, que elas continuassem dormindo juntas então. Quanto mais eles pudessem prolongar essa infância e adiar a inevitável chegada da adolescência, melhor.

No quarto das três garotas, as camas se viam vazias. Nádia deslizou os dedos pelos fios negros e lisos, preocupada. Voltou então a percorrer o corredor que dava para a sala.

Ao chegar à sala, um pouco afoita, encontrou finalmente Jorge. O marido estava sentado à mesa, lendo um jornal, parecendo distraído. Nádia, escorando-se à parede, parou onde estava, sem ânimo de seguir em frente. Por algum motivo, pareceu a ela que não deveria interromper o esposo naquele momento.

Contudo, a interrupção já tinha acontecido. O homem de olhos esverdeados havia percebido a presença dela no instante em que ela despontara na sala:

- Bom dia. – ele disse, sem tirar os olhos do jornal, enquanto levava um copo com suco de laranja à boca.

- Bom dia... – a mulher respondeu, começando enfim a dirigir-se aonde estava o marido.

- Dormiu bem? – ele perguntou, em um tom casual, embora suas feições demonstrassem claramente que algo não estava certo. E os olhos, aqueles olhos que Nádia desejava tanto que se voltassem para ela, ainda faziam questão de ignorá-la solenemente.

- Acho que sim. – ela respondeu, puxando uma cadeira para sentar-se de frente para o marido – Eu... – Nádia olhou para os lados, como se estivesse buscando algo – Onde estão as meninas?

- No quintal. – a resposta foi tão curta quanto ríspida. Aquilo tinha sido o bastante para fazer a mulher mudar a postura que estava mantendo até o momento. Ela parecia agir de maneira cautelosa por alguma razão que ela não adivinhava, mas que a dominava. Porém, era hora de deixar que essas sensações morressem. A razão precisava prevalecer.

Nádia lançou um olhar para a porta de vidro, que separava a sala do quintal. De lá, pôde ver as meninas brincando em uma barraquinha montada que simulava ser um castelinho de princesas. – Eu tinha prometido a elas que montaríamos esse castelinho juntas, hoje de manhã... Por que não me acordou? – a mulher devolveu, em um tom igualmente rude, e esperando que conseguisse atrair assim o olhar do marido.

O objetivo foi prontamente alcançado. Jorge finalmente abandonou o jornal sobre a mesa e lançou um olhar tão frio à esposa, que Nádia se arrependeu, por um momento, de ter buscado aqueles olhos:

- Porque você parecia cansada. – ele disse, com a voz neutra e os olhos, embora frios, parecendo arder por dentro, como se ocultassem algum importante segredo.

- Deveria ter me acordado, de qualquer jeito. Não é sempre que posso ter esses momentos com as minhas filhas. Meu trabalho no jornal tem tomado meu tempo cada vez mais e, quando posso, gosto de aproveitar o tempo que me resta com elas. Sábados de manhã se tornaram um ritual, meu e das garotas; gostamos de passar esse tempo juntas...

Nádia tinha começado a falar, sentindo-se cada vez mais ela mesma. Aquelas palavras, tão cotidianas, pareciam ter causado esse efeito. E, como se Jorge pudesse também sentir esse impacto, o clima que estava instaurado entre ambos naquela sala mudou abruptamente.

- É verdade, seu trabalho toma muito o seu tempo. – ele disse, em um tom que Nádia não soube decifrar, enquanto se levantava da cadeira em que estava sentado – E, de fato, quando não está trabalhando, você busca ocupar todo o seu tempo com as meninas.

- Você está querendo me acusar de algo, Jorge? – a fala de Nádia é que parecia acusatória. O marido não tinha sido agressivo com suas palavras – Nós temos três filhas e elas precisam da mãe. Então, se acha ruim que eu destine meu tempo livre a elas, eu acho que...

- É claro que eu não acho isso ruim, Nádia! – Jorge elevou um pouco o tom de voz e, no mesmo instante, olhou para fora, a fim de ver se tinha sido ouvido pelas filhas. Percebendo que as garotas continuavam brincando como se nada estivesse acontecendo, ele prosseguiu – Eu acho fantástico o modo como você cuida das nossas meninas; adoro o fato de você ser uma mãe tão presente quanto lhe é possível! Esse é um dos motivos que sempre me fez amar tanto você... – nessa última frase, era facilmente perceptível uma dolorosa amargura – O que eu não entendo é porque você parece fazer questão de me manter fora desse quadro.

A mulher franziu o cenho, em um gesto que demonstrava sua confusão com o último comentário do esposo:

- Você nem ao menos percebe que faz isso, não é mesmo? – o homem de cabelos castanhos sorriu triste – Você tem feito questão de me manter de fora, Nádia. Toda vez que você chama as meninas para passear, para ver algum filme, para brincar... Você usa de alguma desculpa, dizendo que se trata de um programa apenas para mulheres, e me deixa de fora. No começo, eu acreditava em suas palavras. Ora, eu vivo numa casa cercado de mulheres. Sempre compreendi que haveria momentos assim, nos quais eu não me encaixaria. E estava preparado para eles. Até imaginei que isso estivesse começando a ocorrer agora porque a Guida está crescendo e a adolescência naturalmente a aproximaria mais de você... Mas então... – Jorge tinha caminhado até a porta de vidro e observava as filhas no quintal, com um olhar distante – Eu notei que não era bem isso. Você não estava se aproximando mais das meninas por alguma necessidade delas. Você estava fazendo isso por uma necessidade sua. Necessidade de fugir de mim.

Nádia quis responder, mas não encontrou as palavras para isso. Juntou as mãos sobre a mesa, entrelaçou os dedos e ficou calada, esperando pelo que viria a seguir:

- A nossa conversa de ontem foi bem definitiva, não é? – Jorge continuou falando, mantendo o olhar perdido na direção das filhas – E eu achei que não tínhamos mais nada a dizer. Afinal, você deixou tudo muito claro quando falou que as coisas eram assim e pronto. Aquilo foi o fim. Não foi? – o fotógrafo voltou-se para a esposa e a fitou longamente – Mas... Se era o fim... Então por que...

Antes que o homem de cabelos castanhos pudesse finalizar o que dizia, a porta de vidro correu subitamente, abrindo-se de supetão para deixar entrar correndo duas pequenas meninas, sendo seguidas de uma voz zangada:

- Voltem aqui! Eu já disse que vocês não podem mexer nas minhas coisas! – Margarida vinha atrás das irmãs, não correndo como elas, mas pisando forte e visivelmente nervosa – Papai, mamãe... A Rosinha e a Leta não me obedecem! – zangava-se a primogênita, sem perceber que tinha interrompido uma importante conversa entre os pais – Elas querem mexer nas minhas revistas e eu disse que não, que são minhas; aí a Rosa disse que é de quem pegar primeiro! Ela puxou a Leta e as duas foram se trancar no quarto, para mexer nas minhas coisas!

Nádia, provavelmente porque sentia um medo inconsciente do que Jorge diria, ignorou o marido e direcionou toda a sua atenção para a filha, como se aquilo fosse a coisa mais importante do mundo agora:

- Minha querida, você precisa ter paciência com as suas irmãs. Elas são mais novas que você.

- Não importa! Elas não têm o direito de mexer com o que não é delas, mamãe!

- Isso é verdade. – Nádia levantou-se de sua cadeira, enquanto Jorge observava a tudo aquilo com os braços cruzados e um semblante entristecido – Venha, Guida. Vamos até o seu quarto que vou conversar com as suas irmãs.

- E o papai...? – Margarida começou a dizer, olhando para trás, enquanto a mãe a puxava pelo corredor. A menina provavelmente queria tanto a mãe quanto o pai presentes nessa conversa, para que a bronca nas duas irmãs fosse mais pesada.

- O papai está ocupado com as coisas dele. E essa conversa é para garotas, então é melhor que seja só entre nós quatro. – Nádia disse aquelas palavras em um tom perfeitamente audível para Jorge. Não que estivesse querendo provocá-lo; afinal, o marido tinha acabado de reclamar dessa sua atitude. Porém, ela estava fugindo dele, fugindo não sabia por quê, mas assim que lhe surgiu a oportunidade de escapar daquele momento, não hesitou em fazê-lo. E, como Jorge já tinha demonstrado plena consciência desse seu hábito de fuga, que era cada vez mais corriqueiro, ela não se preocupou em fingir. Ele sabia que ela fugia; ela também. Não havia o que esconder.

Jorge, entretanto, parecia cansado desse jogo. Depois de ver a esposa desaparecer com a filha no corredor, suspirou profundamente, balançou a cabeça negativamente, para si mesmo, em um gesto de frustração, pegou então a chave do jipe e deixou a casa.

Quando ele regressou, o sábado já tinha passado. Era noite, e já passava das onze horas.

Nádia, da mesma forma ocorrida na véspera, aguardava o marido sentada à mesa da cozinha. As luzes estavam quase todas apagadas e, na cozinha, apenas a iluminação proveniente da área do quintal derramava um pouco de luz no ambiente.

Jorge entrou, fazendo o mínimo de barulho possível. Ao encontrar a figura da esposa esperando por ele, caminhou silenciosamente até ela.

A semelhança daquela imagem com a da noite passada fez o homem olhar para o céu, através do vidro da porta que o separava do quintal, a fim de ver se havia nuvens escuras se aglomerando, indicando uma nova tempestade. No entanto, dessa vez, a noite era clara e límpida. Podiam-se ver as estrelas cintilando lá no céu.

Um sorriso de leve passou rápido pelos lábios de Jorge. Depois, o homem soltou um breve riso desgostoso, enquanto os olhos castanho-esverdeados perdiam-se na bonita noite estrelada.

- Do que está rindo? – quis saber Nádia, em um tom de voz conciliatório. A mulher parecia mais disposta a conversar agora. Provavelmente, após perceber que Jorge tinha saído de casa, ela entendera enfim que precisava encarar o inevitável. Havia meditado bastante ao longo do dia e sentia-se preparada para tudo o que acreditava que teria de ouvir.

- Por um instante, tive uma sensação de déjà-vu. Parecia que eu estava revivendo a noite de ontem... Mas foi apenas uma impressão. Infelizmente. – explicou o homem, enquanto passava a mão pelos cabelos castanhos, em um típico gesto de quando ficava nervoso.

 - Infelizmente? – estranhou Nádia – Pensei que a noite de ontem tivesse sido horrível, por tudo o que ela acabou representando. – retomou a mulher, sentindo-se corajosa o bastante para trazer o desagradável, porém inevitável, assunto à tona, de uma vez.

- Foi horrível, com certeza. Mas... – e um estranho sorriso, desconhecido de Nádia, pintou o rosto de Jorge, de uma forma que ela não esperava em um momento como aquele – Houve um momento que foi interessante.

- Que momento?

- Debaixo da chuva...

- Da chuva... – repetiu Nádia aquelas palavras, buscando se lembrar. Ela se recordava da chuva. E sabia que, justamente naquele ponto, tudo se tinha tornado obscuro – O que ocorreu debaixo da chuva, Jorge?

O homem observou a esposa de volta, pensativo. Os olhos verdes estavam cravados na pessoa dela, perscrutando a mulher, tentando descobrir algo que nem ele imaginava o que poderia ser. Ao cabo de alguns instantes nesse profundo silêncio, ele respondeu com frieza:

- Nada.

- Como “nada”? Alguma coisa aconteceu, você mesmo acabou de dizer que...

- Se você não se lembra, então nada aconteceu.

- Jorge, eu...

- Não temos mais nada para conversar, Nádia. Como eu disse hoje de manhã, tivemos nossa conversa definitiva ontem. Está acabado, certo? – a pergunta era retórica – Eu pensei bastante hoje. Concluí que é melhor nos separarmos logo. Para que ficar adiando? Para trazer mais dor? Eu acho que não. Eu havia pensado em lutar, mas... – Jorge não pôde terminar a frase. Nem ele sabia como terminá-la. – Enfim, acho que é melhor assim. Estou confuso. Estou precisando de um tempo.

Nádia mal conseguia acreditar no que ouvira. Todas aquelas palavras pareciam tão mentirosas! Jorge não era de fugir, de se esconder. Ele lutava, ele persistia. Não que ela achasse que ele devesse lutar para ficarem juntos, mas entregar-se assim tão rápido e tão fácil não era da natureza dele. Definitivamente, algo havia ocorrido para que o marido se visse tão estranho desse jeito. Porém, Nádia não conseguia sequer imaginar o que poderia ser. Teria a ver com essa noite de sexta-feira?

O que tinha acontecido debaixo daquela chuva, afinal...?

- Vim apenas pegar minhas coisas. Eu me hospedei em um apart-hotel e vou ficar lá enquanto estivermos cuidando da nossa separação.

- Separação? – Nádia falou surpresa.

- Por que o susto? Aonde você pensava que iríamos chegar com aquela conversa de ontem?

- Eu... Eu só não... Eu não sabia que seria tão... tão rápido...

Jorge, por um instante, pareceu sensibilizar-se com a atitude da esposa. Entretanto, logo voltou à postura seca a rígida – Não sei para que adiar algo que é tão definitivo, da forma como você colocou ontem. – o homem disse e ficou olhando para a mulher, que baixou o rosto, apoiando a cabeça nas mãos, com os cotovelos sobre a mesa. Os cabelos negros escorreram-lhe por sobre o rosto, ocultando sua face. Por isso, o marido, que tentava enxergar algo nas feições de Nádia após aquelas últimas palavras, não pôde ver nada ali.

Levando adiante o que dissera, Jorge deu as costas à mulher e rumou para seu quarto. Dentro de uma pequena mala, começou a colocar algumas roupas básicas, junto de utensílios de necessidade diária. Nádia, após a saída do marido da cozinha, tinha ficado ali ainda algum tempo, para logo depois ir atrás do outro. Encontrou-o no quarto e ficou parada, encostada no batente da porta, com os braços cruzados e o olhar triste acompanhando o marido que ia e vinha do guarda-roupa, retirando dali tudo de que precisava:

- Pronto. Não peguei muita coisa, porque vou deixar para depois. Não quero fazer muito barulho agora, senão vou acabar acordando as meninas. – nesse instante, olhou para a esposa, que apenas o fitava em silêncio – Elas estranharam muito...

- ...o fato de você ter sumido o dia inteiro sem dar notícias? – complementou Nádia – Um pouco, mas só em um primeiro momento. Eu expliquei a elas que você tinha sido chamado para fazer um trabalho importante e, embora elas saibam que é raro você aceitar algum trabalho no fim de semana, eu disse que isso acontece às vezes, mas que depois você voltaria para compensá-las por ter se afastado um dia inteiro delas. Bem, essa última parte eu disse a elas antes de irem dormir.

- Fez bem. Amanhã bem cedo eu venho aqui. Vou levá-las para passear.

- E... vai contar a elas?

- Não. Ainda não. As meninas estão quase entrando em férias. Não quero atrapalhar os últimos dias de aula. Vamos manter isso em segredo até lá, está bem? Elas não vão notar; eu sairei daqui apenas quando elas já tiverem ido dormir e aparecerei sempre bem cedo, antes de saírem para a escola. Desse modo, as meninas terão a impressão de que está tudo normal.

- Está bem. – Nádia respondeu mecanicamente. Ainda não conseguia processar tudo aquilo.

- Então... Eu vou indo. – com a mala em uma das mãos, Jorge olhou ao redor, como se estivesse verificando se não se esquecia de nada. No entanto, ele parecia esperar por algo. Parecia aguardar que alguma coisa acontecesse.

Entretanto, nada se deu. Nádia permaneceu calada, cabisbaixa, sem conseguir encarar o marido. Assim, Jorge compreendeu que não tinha mais nada para fazer ali. Em silêncio, deixou o quarto e saiu, sem dizer mais qualquer palavra.

Naquela noite, Nádia chorou. Não como costumava chorar, silenciosamente, em segredo. Chorou abertamente. Não escandalosamente, pois não queria acordar as filhas. Mas não ocultou as lágrimas. Afinal, estava sozinha em seu quarto. Não havia de quem esconder aquela dor. Ao menos, não naquela noite.

Na manhã seguinte, conseguiu se recompor razoavelmente. As meninas despertaram cedo e logo estavam perguntando pelo pai. Nádia, que ainda amargurava as lágrimas da noite passada, estava prestes a servir cereal para as meninas, uma vez que não se via com ânimo de preparar um café mais incrementado, como costumava acontecer aos domingos, quando Jorge chegou. Ele vinha com uma expressão muito melhor que da esposa, mas Nádia conseguiu perceber que era apenas porque ele sabia disfarçar melhor que ela. Sempre tinha sido assim. Nádia era muito fácil de se ler. Suas expressões a entregavam facilmente. Jorge, por sua vez, era muito mais enigmático e, mesmo depois de tanto tempo de casados, havia momentos em que Nádia não conseguia ver o que estava por trás da face usualmente neutra do marido.

Jorge sabia disfarçar o que sentia. Possivelmente, por conta disso, é que Nádia não tinha notado que o esposo já soubesse do que ela sentia há tempos. E, por isso, ela não tinha sido capaz de notar que o marido vinha sofrendo por causa disso já há algum tempo.

As meninas, ao verem o pai, correram para ele, perguntando onde ele estava. Jorge, que provavelmente havia inventado a desculpa antes de chegar ali, foi muito convincente ao contar que tinha saído mais cedo para ir à padaria, mas que, no meio do caminho, tinha mudado de ideia e decidido levar as filhas para tomar o café da manhã em um lugar muito bom e que ficava ali perto. Então, tinha voltado para casa a fim de pegá-las. As garotas vibraram com a ideia de tomar o café fora de casa, mas, quando estavam saindo, Margarida notou que a mãe não estava indo junto com eles. Ao indagar o motivo, Nádia se adiantou para responder:

- É que a mamãe precisa fazer um trabalho para o jornal. Então vou aproveitar que hoje o papai vai levá-las para passear e escrever enquanto isso.

As filhas pareceram estranhar aquilo, mas Jorge e Nádia sorriram tanto para as meninas, que elas acabaram deixando-se levar. Quando os quatro deixaram a casa, Nádia sentou-se no sofá e ficou pensativa. Não sabia o que fazer; sentia-se perdida.

Pensou que poderia mesmo adiantar algum trabalho. Era raro ter um tempo apenas para si em casa. Contudo, não estava com cabeça para isso. Sua mente ainda não tinha terminado de assimilar a grande mudança que ocorria em sua vida.

Havia um desespero que começava a crescer em seu coração. Nádia sentia raiva de si mesma. Por que sentia medo? Não era isso o que mais desejava? Já há algum tempo, não queria se ver livre para poder viver o grande amor com que vinha sonhando?

Súbito, ela já não tinha mais certeza disso.  E o homem que povoava seus sonhos começava a parecer apenas isso: um sonho distante, idealizado, irreal.

Abraçou-se a uma almofada e deitou-se no sofá. Estava então abandonando toda uma vida para entregar-se a um sonho fugidio? Estava cometendo o maior erro de sua vida?

Nádia já não sabia de mais nada. Sua mente também estava cansada demais para raciocinar direito. Havia dormido mal na noite anterior. Melhor dizendo, quase não havia dormido. Tinha chorado muito e as lágrimas são as maiores inimigas de uma boa noite de sono.

Portanto, sentindo o corpo cansado pesar-lhe cada vez mais, Nádia não pôde mais resistir e acabou adormecendo profundamente.

oOoOoOo

Nádia acordou sobressaltada. Em um primeiro momento, sentiu-se tão perdida que precisou olhar ao redor muitas vezes, para se assegurar de que estava mesmo em casa. Porém, como já estava escuro, precisou acender a luz de um abajur que ficava próximo ao sofá para ver que estava em sua sala. Ela respirou aliviada, embora ainda sentisse o coração acelerado.

O que tinha acontecido? Tinha sido apenas um sonho?

Já havia sonhado com aquele homem antes, mas nunca assim. Nunca de uma forma tão concreta, tão... real.

Sim, havia sido real. Real demais.

Dessa vez, não tinham sido apenas imagens fragmentadas de um rosto, de um sorriso, de uma voz. O homem de seus sonhos havia lhe aparecido por inteiro e parecia absurdo crer que aquilo tinha sido apenas um sonho.

Arrancando-a desses pensamentos, a porta da casa abriu-se, de modo que gritinhos e barulhos animados logo encheram toda a sala. As meninas vinham com balões e sorrisos enormes, querendo contar à mãe tudo o que tinham feito ao longo do dia. As três falavam ao mesmo tempo e era impossível compreender o que diziam, especialmente porque Nádia ainda estava atordoada com aquele sonho e não conseguia entender que estava vivendo sua realidade agora – portanto, deveria prestar atenção a ela.

Jorge pareceu compreender rápido que algo não estava certo com a esposa. Disse para as filhas irem ao quarto guardar as coisas que haviam ganhado no passeio e, aproveitando-se do breve momento a sós, sentou-se ao lado de Nádia, preocupado:

- Você está bem?

A mulher tinha um olhar perdido, mas quando sentiu a mão cálida do marido repousar sobre a sua, despertou desse estado e olhou para ele:

- Sim. Estou. – respondeu incerta.

O homem não pareceu acreditar naquelas palavras tão inseguras e, depois de ponderar um pouco, disse:

- Eu cuido delas. Vou fazer o jantar e arrumar tudo por aqui. Digo que você está se sentindo meio indisposta, que trabalhou demais hoje. Vá para o quarto. Pode deixar que eu as coloco para dormir hoje.

- Eu estou bem. – Nádia tentou ser mais enfática – Posso perfeitamente ficar com as minhas filhas agora.

- Não parece. E eu não quero preocupá-las antes da hora. É melhor ir para o quarto, Nádia. Elas estão felizes agora. Vamos tentar prolongar essa alegria nelas o máximo que pudermos, ok?

Nádia soltou um suspiro, e admitiu que Jorge estava certo. Abandonou o sofá e foi para o seu quarto. Fechou a porta e jogou-se na cama. Sentia-se cansada, mas não entendia por quê. Não havia dormido o dia inteiro?

Ficou deitada assim, por um longo tempo, somente olhando para o teto, enquanto imagens velozes corriam por sua mente cansada. Havia tanta coisa que não fazia sentido. Aquele sonho não fazia qualquer sentido.

Entretanto, fazia-lhe tão bem...

De repente, o marido apareceu no quarto e assustou Nádia, que sonhava acordada com as lembranças do estranho sonho. A mulher sentiu-se pega em flagrante, tornando-se ainda mais pálida ante a súbita aparição do marido:

- Eu vim saber se está com fome. Preparei o jantar das meninas e queria saber se você queria comer um pouco. – perguntou o homem, notando a palidez da esposa e preocupando-se ainda mais com seu estado.

- Não, obrigada. Estou sem fome. Comi agora há pouco. – ela mentiu – Vá ficar com as meninas. Eu estou bem. – ela falou demonstrando grande constrangimento nessas palavras. Sentia que tinha sido pega fazendo algo que não devia e mal conseguia olhar para Jorge enquanto falava.

O marido, por sua vez, notou o quanto sua presença parecia incomodar Nádia. Entristecido com aquilo, não disse mais nada. Apenas retirou-se do quarto, calado.

Nádia sentiu-se péssima. Não queria que Jorge pensasse que ela não gostava de sua companhia. Porém, não pôde evitar. Seus pensamentos estavam repletos da presença de outro homem. Deparar-se com o marido logo nesse momento foi embaraçoso demais para ela.

Algum tempo depois, o quarto foi novamente invadido, mas agora pelas suas três filhas. As meninas vinham dizer boa noite à mãe, que se esforçou o bastante para parecer tranquila a elas. Jorge, que tinha acompanhado as garotas até o quarto, permaneceu junto à porta, apenas observando. Depois que as filhas deram beijos, abraços e palavras carinhosas para a mãe, deixaram o quarto e Jorge, com um olhar, despediu-se da esposa.

De fato, alguns minutos depois, a casa era só silêncio, o que significava que Jorge tinha colocado as meninas para dormir. E, mais algum tempo depois, Nádia ouviu o barulho da porta da casa se fechando e, em seguida, o característico som do motor do jipe do marido, significando que ele havia partido.

A mulher, cujos cabelos negros encobriam todo o seu travesseiro, repousava a cabeça cansada, sentindo que a mente corria a mil por hora, enquanto seu corpo jazia inerte sobre a cama. Em seu íntimo, quisera ir ter com o marido após aqueles instantes de constrangimento, mas não pôde. Seu corpo parecia não obedecer-lhe. Ou seria sua mente que a impedira de ir? Não sabia e, agora mesmo, embora se sentisse mal pelo modo como tratara o marido, não conseguia parar de pensar naquele sonho.

Por que ele lhe parecia tão real? Isso não estava certo.

Não era só o homem de seus sonhos que lhe parecia mais real. Tudo naquele sonho, todo ele, foi verdadeiro demais.

Inclusive, apesar de não ter se alimentado naquele domingo, não sentia fome. Era quase como se realmente tivesse estado naquele brunch e tivesse realmente comido todas aquelas guloseimas.

E, principalmente, era como se houvesse realmente estado com ele.

Ele; o homem dos seus sonhos. Aquele que agora deixava de ser apenas uma imagem distante e passava a ser real; tão real que agora possuía até mesmo um nome.

- Marcos... – Nádia suspirou aquele nome, acalentando em sua voz a doçura daquela palavra.

oOoOoOo

Eram quase dez da manhã daquela segunda-feira, quando Jorge ouviu as batidas nervosas na porta de seu quarto.

- Jorge! Sou eu! – disse uma voz feminina, que Jorge rapidamente reconheceu. Ou melhor: reconheceu parcialmente. Conhecia aquela voz, mas não o tom que a revestia.

Abriu a porta e viu a figura da esposa ali, parada, e com uma expressão no rosto que o desestabilizou.

- Ainda bem que encontrei você! – a mulher rapidamente o envolveu com os braços, unindo-se a ele em um abraço apaixonado e cheio de saudades – Estava com medo de não encontrá-lo aqui... Sei que é um temor infundado, já que você deixou um bilhete com o endereço do apart-hotel e o número do seu quarto na mesinha da sala, sob aquela pirâmide de cristal, que usamos como peso de papel. Você fez isso para que justamente eu pudesse encontrá-lo, se necessário... Mas, mesmo assim... eu estava com medo de não achar você... – ela tagarelava sem afrouxar os braços, parecendo mesmo temer que Jorge pudesse desaparecer de sua frente, se assim procedesse.

O homem, entretanto, desfez esse contato. Tão logo ela terminou de falar, ele se afastou dela, tomando o cuidado de não parecer ríspido com esse gesto. Fechou a porta do quarto, que ainda estava aberta, e caminhou para mais dentro do aposento, mantendo uma distância razoável da mulher.

- Então... – Jorge começou a falar, depois de alguns instantes calado e pensativo. Meteu as mãos nos bolsos da calça jeans e encarou a outra. Via-se agora no centro do quarto, enquanto a mulher permanecia parada próxima da porta – Você voltou.

A mulher de cabelos negros abriu um enorme sorriso. Tinha sido reconhecida.

- Sim, voltei. E estava morrendo de saudades.

- Por que voltou só agora? Por que não apareceu no sábado? Ou no domingo?

- Eu não podia. É difícil explicar, mas eu só tenho como aparecer em alguns dias da semana... – ela riu nervosamente. Ansiava tanto por aquele momento, que mal conseguia conter suas emoções.

- Quem é você? – Jorge foi incisivo. Seus olhos, que agora tinham a cor do chocolate, eram penetrantes e envolventes.

A mulher sorriu de leve, parecendo pesar o que dizer.

- Você quer um nome?

- Um nome pode ser bom, para começar. – Jorge, que também estava nervoso com aquela situação inusitada, tinha retirado as mãos dos bolsos e, como se não soubesse o que fazer com elas, cruzou os braços sobre o peito.

- Eu não sei se posso dizer o meu nome. Tenho medo de que, se fizer isso, eu acabe desaparecendo...

 - Desaparecendo para onde?? – Jorge falou em um tom mais alto que o necessário – Meu Deus, eu acho que estou ficando louco... – o homem deu as costas à mulher e caminhou em direção à varanda do quarto.

- Não está louco. Acredite, isso é real. Sei que parece loucura, sei que parece impossível... – a mulher começou a dizer, começando a caminhar na direção do outro e diminuindo a distância existente entre eles.

- Aí é que está! – Jorge virou-se abruptamente para encarar a mulher – Eu sequer sei o que posso considerar loucura! Eu não entendo... Eu... – ele deslizou os dedos pelos fios castanhos, enquanto buscava respirar fundo para se acalmar – Você... Você não é a Nádia. Certo...?

- Certo. Eu não sou a Nádia.

- Certo. Você não é a Nádia. – Jorge repetiu, notando como aquelas palavras pareciam absurdas – Você não é a minha esposa. Entretanto, olhando para você, qualquer um poderia dizer que é ela.

- Qualquer um poderia dizer isso, mas você sabe que eu não sou sua esposa. Não sou a Nádia. – a mulher fez questão de repetir – E fico feliz que tenha notado isso antes que eu precisasse lhe dizer.

- Você... é a mesma da noite de sexta? – a pergunta de Jorge vinha recoberta de receios.

- Sim. A mesma daquela noite chuvosa... – a mulher já tinha se aproximado o bastante e a proximidade entre os dois era grande, tão grande a ponto de poderem quase sentir o calor do corpo do outro.

- Você... Você foi embora de repente... – a voz de Jorge veio quase num sussurro.

- Eu sei. Me desculpe por isso. – a mulher aproveitou a distância mínima para enredar os dedos naqueles fios castanhos e, puxando-o pela nuca, trouxe Jorge para um beijo ansiado, cheio de paixão.

Jorge não pôde ir contra; na verdade, ele parecia desejar isso. Era como se estivesse esperando que ela agisse assim desde o momento em que entrara no quarto. Correspondeu ao beijo, demonstrando que também ele ansiava por isso.

Porém, a sobriedade da luz do dia, que entrava pela varanda, impediu que ele desse continuidade àquilo. Interrompeu o beijo e deu dois passos para trás, sentindo-se um pouco zonzo:

- Isso não faz sentido. É claro que você é a Nádia. Não tem como não ser.

- Claro que tem! – respondeu a mulher, revoltada pela interrupção – E é o que está acontecendo! Não se prenda ao que vê! Enxergue além da aparência, Jorge! Você sabe, você sente que eu sou outra...

- Múltiplas personalidades. Claro, deve ser isso, ou algo assim. Tentei me enganar ao longo do fim de semana, não quis acreditar que a Nádia pudesse sofrer disso, porque essa explicação não me parecia muito lógica, mas ela é definitivamente mais lógica do que essa loucura que você diz...

- Esqueça as explicações lógicas! Jorge, olhe para mim! – a mulher segurou uma das mãos do homem com as suas – Olhe para mim! Você sabe que a verdade vai muito além de um simples transtorno de personalidade!

Jorge sentiu as mãos trêmulas sobre a sua e não pôde ignorar aquele pedido. Fez o que a mulher dizia e olhou para ela. Olhou com muito mais que os olhos. Olhou com o coração e viu o que já sabia. Por mais absurdo que fosse, por mais impossível que parecesse, por mais que não houvesse qualquer explicação lógica para tudo aquilo... Jorge sentia que era real. O que aquela mulher lhe dizia era real. Ela não era Nádia, nem o reflexo de uma personalidade transtornada. Não; a mulher que tinha diante de si era outra, uma outra que nunca tinha visto em sua vida antes daquela sexta-feira chuvosa. Não sabia como podia ser, mas ele simplesmente compreendia aquilo como sendo uma realidade concreta e aceitável, muito embora a razão que insistia em fazer-se valer dizia-lhe a todo tempo que aquilo não tinha o menor sentido. De qualquer forma, a voz da razão ia perdendo terreno e seus sentidos é que o guiavam nessa situação surreal.

Na sexta-feira, quando se viu diante dessa mulher pela primeira vez, todo o seu corpo vibrou diante dessa descoberta. Foi um misto de sensações, pois havia a novidade que o inebriava naquele momento, ao passo que a culpa de estar com outra mulher também se fez presente. O mistério daquele olhar, que tão apaixonadamente se iluminava diante dele, fazia com que se sentisse magneticamente preso àqueles olhos, enquanto a razão lhe martelava a cabeça, dizendo que perguntasse quem era aquela mulher que o estava desnorteando daquele jeito.

Obedeceu à voz da razão e fez a tal pergunta, mas como resposta obteve apenas um sorriso enigmático, que precedeu um súbito desmaio. A mulher desfaleceu em seus braços, apavorando Jorge, que não sabia o que poderia ter causado aquilo. Levou a mulher para dentro da casa, onde percebeu que ela estava apenas adormecida, mas parecia perfeitamente bem. Secou o seu corpo e trocou suas roupas, enquanto cogitava a possibilidade de chamar um médico, mas foi quando ouviu a mulher começar a resmungar algumas palavras em meio ao sono em que se encontrava. Ela dizia coisas como “Eu não queria acordar” e “Droga, Carlos! Por que você veio aqui?”. Concluiu que o médico era desnecessário, pois ela não tinha febre nem nada e, depois de dizer mais algumas frases raivosas destinadas ao tal Carlos, adormeceu profunda e serenamente. Jorge ainda permaneceu com ela, deitado ao seu lado na cama, velando o sono daquela que não sabia mais se era sua esposa e, quando a manhã de sábado finalmente se anunciou, sentiu-se ansioso ao notar que a mulher começava a se movimentar daquele modo característico, que indicava que ela estava prestes a acordar. E então ele, que havia praticamente aguardado a noite inteira por esse momento, viu-se repentinamente temeroso do que poderia ocorrer.

Não sabia se a mulher que teria diante de si, tão logo ela despertasse, seria Nádia ou... aquela outra. E o pior é que não sabia exatamente o que esperava que acontecesse. Não sabia dizer se preferia ver Nádia e que tudo aquilo houvesse sido uma estranha e errada impressão que tivera na noite passada... ou se desejava que tivesse sido real e que aquela mulher regressasse, para vê-la novamente.

Porque uma parte dele acreditava que aquela mulher existia. E essa parte ansiava por revê-la.

Não sabendo, portanto, o que sentia ao certo, Jorge não conseguiu permanecer ao lado da mulher quando notou que em breve ela acordaria. Então deixou o quarto e, ao encontrar as filhas despertas tão cedo, querendo chamar a mãe para que juntas montassem a prometida barraquinha no quintal, Jorge achou por bem que seria melhor deixar a mulher despertar dentro de seu próprio tempo e ele mesmo montaria a barraca com as garotas. Seria até uma boa forma de se manter ocupado e pensando em qualquer outra coisa que não o ocorrido da noite anterior.

Quando Nádia finalmente despertou e apareceu na sala, Jorge tinha sentido o coração disparar. Mas teve medo de demonstrar essa comoção e que assim tudo se desfizesse, como na noite passada. Por isso, esperou para ver a reação da mulher. Inicialmente, ela parecia estranha, diferente do usual. Jorge não soube dizer se era Nádia ou a outra, mas preferiu agir de modo neutro, para que a mulher se desvendasse para ele. O resultado foi que logo percebeu que quem estava à sua frente era Nádia; não a outra.

Não que isso o chateasse verdadeiramente, mas algo dentro dele pareceu partir-se com isso. Queria tanto assim rever aquela mulher? Mas por quê? Não amava Nádia, com todas as forças? Não era ele quem mais queria lutar por aquele casamento, salvar aquele amor?

Então, o que estava sentindo? Ele não sabia e pensava que precisava encontrar um jeito de rever aquela outra mulher, como se todas as respostas pudessem ser encontradas assim. Porém, não tinha ideia de como fazer isso e evitava ao máximo pensar em quão absurda era aquela situação. Não agia baseado na lógica. Tentava guiar-se pelo que sentia e seus sentimentos o impeliam a essa direção.

No entanto, o tempo foi seguindo e a outra mulher que vira em Nádia ia se distanciando cada vez mais. Ao término do fim de semana, quase já não acreditava mais no ocorrido. Continuava evitando de pensar racionalmente a respeito e terminava por quase ignorar a existência daquele momento em sua vida. Começava a se concentrar nas decisões que precisavam ser tomadas. E, estranhamente, as decisões que normalmente demoraria a tomar, e que seriam bem mais pesadas e sofridas ao serem tomadas, saíram com mais naturalidade e rapidez do que o esperado. Todavia, uma vez mais, evitou pensar a respeito. Nesse fim de semana, o que mais fizera fora evitar pensamentos que não o levassem a lugar algum. E assim tinha conseguido chegar àquela segunda-feira pela manhã.

Entretanto, agora, aquela mulher reaparecia. E tudo vinha de forma tão escancarada que, embora houvesse fugido de tantas questões durante o fim de semana, agora ele simplesmente não podia evitá-las e as dúvidas que antes foram ignoradas, agigantaram-se diante de Jorge. Apesar de ainda sentir como verdade a existência de outra mulher que, de uma forma completamente inexplicável, parecia ocupar o lugar de Nádia em seu próprio corpo de maneira surreal, Jorge não pôde simplesmente aceitar esse absurdo e precisou indagar, questionar, buscar respostas.

Contudo, essas respostas viriam apenas para satisfazer seu lado racional, que era cada vez mais fraco. Todo o seu ser restante já queria acreditar no irreal que aquela situação lhe oferecia. Todo ele, praticamente, queria crer na absurda existência daquela outra mulher como mais do que simplesmente uma outra personalidade de Nádia. Talvez fosse uma necessidade. Talvez, acreditar no impossível fosse tudo de que ele precisava naquele momento.

- Você sabe que isso é real. – a mulher continuou dizendo, sem soltar a mão de Jorge – Você sabe que eu existo. E, mais do que tudo isso... Você precisa saber que eu amo você, Jorge. Eu amo você...

- Muito bem. Agora chega.

A voz grave veio de um homem que estava à porta do quarto. Jorge e a mulher voltaram-se, no mesmo instante, para o visitante inesperado, que estava ali, parado, olhando fixamente para os dois. Ao contrário do que aquela voz firme indicava, o homem possuía uma aparência frágil, e não parecia ser mais velho que Jorge. Seu rosto poderia ser considerado angelical, se o semblante não fosse tão sério e fechado. Seus olhos eram de um belíssimo azul celestial, tinha cabelos longos, ondulados e loiros, e vestia um sobretudo preto, onde mantinha uma das mãos dentro do bolso. A outra segurava um pequeno artefato: uma pirâmide de cristal.

- Acho que já permiti que a situação se desviasse demais do caminho original. É hora de voltar ao planejado. – o loiro continuou a falar, caminhando lentamente em direção aos dois, que olhavam para o estranho completamente confusos – Você não soube lidar com o presente que eu lhe dei. Agora, vamos ver o que posso fazer para corrigir tudo isso. – o homem de sobretudo disse essas últimas frases diretamente para a mulher, que pareceu ainda mais perdida com isso – Não se preocupe, caríssima. Acredito que ainda seja possível consertar essa desordem toda. – o tom de voz do estranho parecia vir revestida de alguma ironia.

- Quem é você? – indagou Jorge, colocando-se à frente da mulher, ao perceber que o estranho caminhava com os olhos fixos nela.

- Não se preocupe, meu caro. Não pretendo fazer qualquer mal a ela. Na verdade, eu a estava ajudando. Ela, entretanto, descobriu uma forma de complicar tudo o que eu havia feito e terminou transformando minhas boas intenções em uma enorme confusão. Agora é hora de arrumar isso. Porém, sinta-se tranquilizado. Eu levarei a mulher que está aqui, mas lhe deixarei sua esposa.

- Você não pode fazer isso! – gritou Jorge, mantendo-se na frente da mulher.

- Não posso fazer o quê? Levá-la comigo ou deixar sua esposa? – os olhos azuis brilharam com alguma maldade. Era uma pergunta capciosa.

- Eu... – Jorge não soube responder. O homem de longos cabelos loiros riu, parecendo divertir-se com a situação.

- Em verdade, não me interessa a sua resposta. – retirando a mão do bolso do sobretudo, o loiro estalou os dedos e a mulher foi trazida para o seu lado, como em um passe de mágica.

- Quem... O que é você? – perguntou Jorge, estupefato diante daquilo.

- Ah, agora estamos nos entendendo. – sorriu o homem – Devemos fazer as perguntas corretas se desejamos obter respostas. E você, meu caro, finalmente fez a pergunta certa... "O que" sou eu?... – e o loiro voltou seu olhar enigmático para a mulher, que agora se via a seu lado.

A mulher engoliu em seco. Pressentia que algo nada bom estava por vir.

- Bem... há tantas formas de responder a essa pergunta... Eu poderia contar-lhes as várias histórias que as inúmeras denominações que recebo encerram, mas... acho que vocês não iriam gostar muito disso. Parecem-me ansiosos e eu também estou com pressa. Não há tempo a perder, portanto... Muito prazer, caríssimos. – em um gesto afetado, o homem curvou-se para Jorge, sendo observado pela mulher, que se sentia atordoada – Podem me chamar de Destino. E... – olhando para o lado, arqueou uma sobrancelha e sorriu de canto – Ah, sim. É verdade. Que deselegante de sua parte, minha querida. Você também precisa se apresentar para Jorge, não é mesmo? – a mulher abriu muito os olhos na direção de seu interlocutor, para depois voltá-los, negros e nebulosos, para Jorge – Vamos, minha jovem. Apresente-se; o rapaz está curioso.

A mulher abriu a boca, mas sentiu alguma dificuldade em fazer com que aquela palavra deixasse seus lábios. Por fim, pronunciou delicadamente o seu nome, que saiu em voz rouca:

- Daniela...

- Ótimo! – bradou o homem de cabelos dourados, parecendo extremamente satisfeito com o desenrolar da situação. - Agora... Precisamos partir. É preciso estabelecer as regras do jogo. – enlaçando o braço da mulher no seu, estalou uma vez mais os dedos, desaparecendo do quarto daquele apart-hotel em um piscar de olhos e deixando, para trás, um perplexo Jorge.

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