Ainda escrita por Camilla Y


Capítulo 1
Quinta-feira, 2 de junho.




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Hoje é quinta-feira.

E, hoje, sou eu.

Respiro aliviada. Tão bom sentir que estou na minha própria pele.

Não que, nos outros dias, eu também não esteja. Quero dizer; eu estou, mas não estou. Complicado explicar...

Mas está evidente para mim que minhas outras vidas, ou outras realidades, ou sei lá como chamar tudo isso, não me são tão interessantes.

“Interessantes”? Seria esse o termo correto para representar o que penso e o que sinto?

Possivelmente, não.

Melhor dizer que essas outras realidades não me são confortáveis.

Exato. “Confortável” é a palavra que melhor se adéqua.

Conforto, alívio, sensação de estar no lugar certo, aquele a que se pertence. É isso que sinto agora.

Tomo um gole do meu café. Saboroso. Movo minha cabeça, de um lado para o outro, buscando relaxar. Agora, para frente e para trás. Isso. Muito bom.

Conforto, alívio, sensação de estar no lugar certo, aquele a que se pertence. É isso mesmo que sinto agora?

Confuso. Quando me vejo na pele delas, não me sinto mal. Obviamente, por desconhecer a existência das outras vidas. Sim; é como dizem. A ignorância pode ser uma bênção.

Acordei tarde hoje. Já passou da hora do almoço. Veja só; o relógio pendurado na parede anuncia: três e quarenta. E parece me alertar – “Ande logo, depressa! Não perca tempo!”

Os dias em que tenho consciência de tudo parecem passar muito mais rápido. Será apenas impressão?

Sendo impressão ou não, é melhor me apressar. Daqui a pouco, o dia termina e nem pude registrar tudo quanto gostaria.

Importante ressaltar: é a primeira vez que registro o que está acontecendo. Sei que deveria ter começado antes, pois, se tivesse agido assim, seria mais fácil retomar.

Relembrar.

Organizar.

Compreender.

Tenho muito a escrever. E é preciso que eu não me perca. Seria interessante fazer um rascunho primeiro? Um esboço das minhas ideias? Traçar uma meta, definir aonde eu quero chegar?

Mas aonde eu quero chegar?

Atenha-se à ideia inicial. Registrar; apenas isso. Não queira ser organizada a partir de agora. As histórias estão correndo, as vidas estão fluindo e não posso mais regressar.

Tenho que me fixar no que vai ser daqui para frente.

Comecemos então. Pelo começo do meio, mas antes tarde que nunca.

Em primeiro lugar, o porquê. Por que começar a escrever justo agora?

Essa é fácil de responder. Porque o incômodo cresceu. Ou, utilizando o termo que elegi para designar o que sinto: o desconforto diante dessas outras existências vêm aumentando significativamente. Chegaram, inclusive, a ponto de influenciar esta realidade.

Quando tudo parecia distante o suficiente, como sonhos curiosos que, eventualmente, eram capazes de entreter, não havia problema.

Contudo, as coisas mudaram. Já não é tudo tão mais distante. Logo, a parte divertida desapareceu.

Estou preocupada; tenho medo de me perder de mim mesma.

Tenho medo de me fazer desaparecer.

Começar pelo meio, eu disse. Não pelo final. As angústias, medos, temores... Esses só apareceram no final – ou seja, agora. E não faz sentido falar desses sentimentos agora.

Vamos lá.

A primeira vez, se bem me lembro, foi como Nádia.

Eu era a Nádia. Ou sou a Nádia, nem sei como me referir a isso direito.

Sei apenas que, um dia, quando acordei, não era eu. Era Nádia.

Acordei em uma casa diferente, que não me pertencia como este apartamento me pertence. Mais que simplesmente me pertencer, este apartamento é uma prolongação de mim, do meu ser, do que sou e represento.

E aquela casa não era minha.

Muito bonita, por sinal. Ampla, bem arejada, bem iluminada. Muitas flores, muito verde, dentro e fora da casa.

Aconchegante.

Entretanto, não era uma daquelas casas que estamparia a capa dessas revistas de decoração. Não; aquela casa possuía móveis que claramente não foram escolhidos por uma questão de estética. Tudo ali parecia muito funcional. Nesse ponto, identifico-me com aquele lugar. Sou muito funcional. Para mobiliar meu apartamento, fui adquirindo objetos que me tinham alguma serventia, que me eram úteis. Não sei comprar pelo simples prazer de comprar; compro quando sinto necessidade de algo.

Contudo, fora a funcionalidade, não há mais semelhanças entre meu lar e o de Nádia. A casa dela é... colorida. Não consigo descrever de outra forma. Só sei que aquele ambiente explode em uma verdadeira profusão de cores, que inundam meus olhos pouco treinados para absorver tantas informações cromáticas de uma única vez.

Porém, Nádia parece gostar disso.

Agora, eu poderia começar a descrever a casa dela, relatando quantos cômodos existem e o que se encontra em cada um deles...

Eu poderia fazê-lo, mas não vou.

Não faz o meu estilo. Gosto de escrever, adoro. Vivo disso. Todavia, assim como não consigo sentir tanto prazer em comprar por comprar, também não sou muito de descrever a parte física daquilo que me rodeia.

Vai ver, é por isso que a minha vida parece ser em preto-e-branco.

Eu não me preocupo com a aparência. Interesso-me pelo que está abaixo disso. Aquilo que não se mostra, aquilo que não se vê.  

Nas minhas colunas, eu não descrevo a aparência da sociedade, mas o que está por baixo dela, seu lado psicológico.

Quanto mais oculto, mais fascinante. Ao menos, para mim.

Por isso, não tenho tempo de me dedicar à casca que encobre o lado mais interessante do mundo que me cerca.

O resultado?  Preto-e-branco.

Tenho o cabelo liso, comprido e muito preto. A pele muito branca.

Não é proposital, mas são também as cores que prevalecem no meu guarda-roupa. Uma blusinha branca aqui, uma calça preta ali...

Não tenho o costume de me maquiar, nem gosto. Ia destoar demais.

Eu sou neutra.

Assim como meu apartamento. Todos os móveis, tão funcionais, também se equilibram e harmonizam-se nessas cores. Sofá preto. Tapete branco...

Desinteressante. Como disse, essa parte não importa.

Já a Nádia, por sua vez, parece um arco-íris ambulante.

Ela gosta de roupas coloridas. E ela é ousada. Faz combinações que poderiam ser consideradas esdrúxulas e essas, de tão inusitadas, tornam-se bonitas.

Mesmo que não fosse assim, ela não se importaria.

            E, nessa firme atitude de não se importar, ela parece feliz.

Como não ser? É bem casada, com um marido apaixonado e mãe de três filhas: Margarida, Rosa e Violeta.

Achei isso de incrível mau gosto. Nomes de flores para as meninas? Que clichê... para não dizer outra coisa.

No entanto, a Nádia gosta. E, uma vez mais, não se importa com a opinião alheia.

Ela é feliz.

Melhor dizendo:

Ela deveria ser feliz.

O marido se chama Jorge. É muito bonito, o Jorge. Ele é a parte de que eu mais gosto na vida da Nádia. É por ele que costumo ansiar quando me vejo na pele dela.

O Jorge não seria o cara que as mulheres, na rua, parariam a fim de olhar.

Mas, se estivessem paradas e ele viesse falar com elas sobre qualquer coisa, elas enxergariam o que eu vejo.

Alto, magro, cabelos e olhos castanhos... O Jorge é um cara normal. Entretanto, dentro de toda essa normalidade, há muito mais.

Eu não olho somente a aparência. Vejo o que está além.

E consigo ver tudo isso no marido da Nádia quando ele sorri.

Foi por aquele sorriso que eu me apaixonei.

Porém, ele não me ama. O Jorge ama a Nádia. A Nádia que usa saias floridas em um dia, listradas no outro. Estampadas sempre, até o dia em que enjoa e pensa que só irá gostar de saias lisas.

De repente, ela não quer mais saias; agora só se interessa por calças. Calças de todos os tipos, primeiro as jeans, então se empolga com as de linho, passa a intercalar as duas, abandona-as em seguida...

Há dias em que ela quer usar roupas decotadas, valorizando seu corpo. Em outros, ela parece a mulher mais recatada do mundo. Acho que é possível descobrir o estado de espírito da Nádia a partir da roupa que ela usa. Ou não.

Está sempre maquiada. Gosta de se colorir até no rosto. Experimenta cores diferentes todo o tempo. Não se importa, por exemplo, se essa cor de batom combina ou não com seu tom de pele. Se ela quer, simplesmente usa. E o pior é que sempre fica bem, não importando se é vermelho, rosa, ou quaisquer dos outros tantos tons que ela utiliza.

Ela não liga. E sorri seu sorriso bonito e sempre iluminado. Por isso, todas as cores lhe caem bem.

O Jorge é apaixonado por ela. E como poderia não ser? A Nádia é apaixonante...

No entanto, eu a odeio.

A primeira vez em que vivi a vida da Nádia, eu não sabia que era a Nádia.

Ou melhor, eu não sabia que era a Nádia e que, por ser a Nádia naquele momento, deixava de ser eu.

Simplesmente, vivi aquele dia como se, durante toda a minha vida, eu houvesse sido a Nádia. Como se eu tivesse sua história em mim. Como se eu fosse aquela mulher colorida e alegre.

Como se eu fosse a esposa do Jorge...

Não me dei conta de nada; vivi aquele dia, naquela casa, com aquelas filhas, como se aquela fosse a minha vida.

Mas não era.

Só fui entender que Nádia não era eu no dia seguinte, quando acordei em meu apartamento, voltando à minha pele.

Foi terrível, foi como... morrer. É uma sensação impossível de se descrever. Nunca conversei – por motivos óbvios – com alguém que tenha morrido para perguntar como é, se a pessoa sente saudades da sua vida, da vida que findou... Porém, se isso fosse possível, tenho certeza de que a sensação a ser descrita seria algo parecido com o que senti.

Eu senti falta da vida da Nádia. Mesmo não me pertencendo de fato, mesmo eu não sendo ela...

Eu senti falta do Jorge.

Chorei um dia inteiro. Não quis ir trabalhar, aleguei que estava de luto, que havia perdido alguém de quem gostava muito.

E, de fato, eu havia perdido.

O Jorge. O meu Jorge.

O Jorge da Nádia.

Poderia ele me amar? Porque, sim, eu o amava. Já o amava perdidamente.

Nunca fui de acreditar em amor à primeira vista. Continuo não acreditando.

Porém, eu não me apaixonei pelo Jorge sem conhecê-lo de fato.

Afinal, na vida da Nádia, eles já compartilham um casamento de dez anos.

E foram namorados desde antes disso. Aliás, Jorge foi o primeiro e único namorado da Nádia.

Todas as lembranças que a Nádia teve com ele tornaram-se minhas.

E, por isso, eu o amei...

Contudo, a Nádia não o ama. Não como deveria.

Ingrata. Ela não o merece.

Se Jorge me conhecesse, ele me amaria?

Eu e Nádia somos iguais fisicamente.

Tirando, é claro, o fato de que ela é uma versão colorida minha.

Mas, fora isso, nós duas somos iguais...

Que ridículo. Veja o que eu estou dizendo. É o desespero falando por mim, só pode ser isso.

Eu não acredito que a aparência diga qualquer coisa. O que há por dentro é o que conta.

E, por dentro, eu e Nádia não poderíamos ser mais diferentes.

Eu a odeio. Eu realmente a odeio.

Ela sonha com um homem que nunca encontrou. Talvez se arrependa de ter se casado com o primeiro namorado. Talvez ache que deveria ter aproveitado mais a vida. Ela se casou muito jovem, com apenas 18 anos, por ter engravidado da Margarida.

O pior é que o homem com quem a Nádia sonha existe.

O nome dele é Marcos. Mas a Nádia nunca irá encontrá-lo.

E isso nunca irá acontecer porque o Marcos existe na realidade da Diana.

Quem é a Diana? Meu outro eu.

No dia em que chorei pelo Jorge, devo ter me desgastado uma vida inteira, porque me recordo de ter me cansado tanto a ponto de adormecer quando ainda era dia.

E, na manhã seguinte, quando despertei... eu não era mais eu.

Também não era a Nádia.

Eu era a Diana.

Despertei em um apartamento, mas esse apartamento não era o meu. Era muito maior.

E bem mais luxuoso.

Ali, diferente do que ocorre comigo ou com a Nádia, era possível verificar uma preocupação esmerada com a decoração do ambiente.

Tudo de muito bom gosto.

Apesar de eu me sentir desconfortável em ambientes assim, sou capaz de apreciá-los. Especialmente porque a Diana tem um fraco pelo preto e pelo branco, como eu.

Todavia, o preto-e-branco não forma um conjunto tão harmonioso para a Diana.

A essas duas cores básicas, ela precisa acrescentar o vermelho.

A Diana gosta de vermelho. Mas não exagera. O vermelho é sempre o toque final.

Seu apartamento tem esse estilo clean, em que o branco e o preto prevalecem, e sempre há um quê de vermelho em algum lugar.

É bonito, devo reconhecer. Entretanto, não sei explicar, mas esses vermelhos que sempre despontam em meio à neutralidade com a qual me sinto confortável... Esses toques de vermelho me incomodam.

Mexem comigo.

Despertam em mim algo que desconheço. Que não sei controlar.

É algo que me apavora.

Só de me relembrar aqui, agora, sinto um frio a percorrer-me a espinha:

Aquele tapete felpudo branco, a mesinha de acrílico preto...

E dois pequenos vasos escarlates em cima.

Só de pensar neles, tenho vontade de quebrá-los. De destruí-los de algum modo. Quem sabe, jogando-os contra a parede branca de seu apartamento, ornada com um quadro preto, cujo traço vermelho-sangue corta-o pelas diagonais.

A Diana me provoca. Provoca em mim o que eu não conheço.

E eu a admiro.

Ela é decidida.

Mas a Nádia também é.

Eu também sou.

Porém, a Diana é diferente.

Ela não é casada, assim como eu também não sou. Contudo, enquanto eu me desgosto com o que tenho na minha realidade e sonho com o que nunca poderá ser meu... A Diana comanda sua vida.

Ela tem todos os homens que quiser. Ela brinca, joga com eles...

E ela tem o Marcos.

O Marcos, sim. É o homem que chama a atenção quando passa na rua. Bonito, porte atlético, jeito de galã, sorriso devastador para a maioria das mulheres.

Mas o sorriso dele nem chega perto do sorriso do meu Jorge...

A Diana gosta dele. Ou pensa que gosta. Ela não tem certeza.

O namoro deles não é propriamente um namoro. Eles ficam juntos, separam-se, voltam, dão um tempo... é até difícil acompanhar.

Porém, a relação deles não é conturbada, como se pode pensar. Na verdade, é simples até demais.

Quando um quer, aparece na porta do outro e é sempre aceito.

Ficam juntos até o momento em que um dos dois decide que enjoou.

E assim, eles se separam. Até a hora em que decidirem voltar.

Nos períodos em que ficam separados, às vezes engatam outro namoro. Nunca dá certo.

Às vezes, mesmo quando estão juntos, traem-se mutuamente. E com conhecimento do outro.

Por sinal, se há o conhecimento – e consentimento – do outro, então não se qualifica como traição.

De todo modo, admiro a Diana por ela fazer o que eu não tenho coragem de realizar na minha própria vida.

Admiro-a por ela ser tudo o que a Nádia gostaria de ter, mas que nunca obterá.

Só por isso, queria entender por que ela chora tanto.

Diana costuma chorar à noite. A não ser que o Marcos ou outro eventual companheiro esteja com ela. Aí, ela engole o choro e finge estar tudo bem.

Finge ser feliz.

Mas ela não é.

Quando a Diana chora, é um choro desconsolado, que sempre mancha e borra toda a sua maquiagem.

Ela se zanga e então começa a retirar a pintura de seu rosto de forma agressiva.

Sempre fica a marca daquele batom vermelho, que é difícil sair.

A maquiagem dela é trabalhada, bem definida, minuciosa.

Um perfeito quadro em preto-e-branco. A boca sempre vermelha. É a única parte que não é preta nem branca.

Cabelos negros, como os meus.

Pele muito clara, como a minha.

Olhos escuros, escuros demais.

Vestidos brancos, com detalhes pretos.

Vestidos pretos, com detalhes brancos.

Ela adora um scarpin vermelho.

A Diana gosta de roupas e acessórios que acentuem seu corpo...

A Nádia também chora. As lágrimas escorrem pelo seu rosto pálido à noite, quando o Jorge já está ao seu lado, dormindo tranquilamente.

Ele nem desconfia que a esposa sofre calada.

O choro dela é mudo.

E as lágrimas, poucas.

A Nádia tem tudo para ser feliz.

Deveria ser feliz.

Mas não é.

Eu não costumo chorar.

Tenho muitos motivos, mas não os transformo em lágrimas.

Nada contra quem chora. Dizem que é bom para extravasar.

Porém, eu simplesmente não consigo.

Os motivos que me levariam às lágrimas continuarão existindo. Por que me desgastar?

O Carlos é quem mais me dá motivos para isso.

E a culpa é do Sérgio.

Carlos é o meu noivo.

E Sérgio, o irmão dele.

São gêmeos, não idênticos.

Mas eu não quero falar sobre o Carlos.

Tampouco sobre o Sérgio.

Dói.

E, mesmo assim, não choro.

Eles não merecem que eu chore...

O único homem por quem já chorei foi o Jorge.

Por ele, acho que sou capaz de derramar lágrimas suficientes para inundar um deserto...

Mas que droga.

Já está anoitecendo.

Não escrevi muito. Pelo menos, não o quanto eu gostaria.

O problema é que, a toda hora, recordações me vinham à mente, interrompendo-me.

Não coloquei essas recordações aqui.

Ia ficar bagunçado demais. Acho até que já está confuso o bastante.

Se bem que nem me importo. Isso é um diário; apenas eu vou ler o que está aqui.

E servirá apenas de base, para me direcionar, ajudar a decidir o que vou fazer...

Eu quero ir dormir agora.

Hoje é quinta-feira. Dia em que sou eu.

Mas, amanhã, é sexta-feira. Dia da Nádia.

Vou dormir na minha cama, sozinha. E, quando acordar, eu vou estar ao lado dele. Do meu Jorge.

O que me enraivece é que não vou saber o quanto senti a falta dele. E não vou saber por estar na pele da Nádia, sentindo e pensando como ela.

O Jorge virá me abraçar, e ela irá repelir o contato, como tem feito nos últimos tempos.

Como eu a odeio!

Eu quero abraçá-lo, quero aninhar-me em seus braços e nunca deixá-lo ir!

Porém, não é isso que a Nádia quer.

Estúpida.

No entanto, o que eu posso fazer? Só tenho consciência de todas essas coisas no sábado, quando volto a ser eu. É quando costumo maldizer a minha versão em cores, até não poder mais.

No domingo, volto a ser Diana. Não faço tanta questão de estar na pele da Diana. Ela tem uma vida interessante e badalada, não posso negar. Mas eu gosto da minha vida.

Quem, certamente, daria tudo para estar na pele da Diana é a Nádia. Só para poder estar com o Marcos.

É até engraçado como a Nádia sonha com um homem exatamente como o Marcos. Ela já desenhou em sua mente o perfil de homem que ela gostaria de ter e, ao fazer isso, não idealizou somente as qualidades que deseja encontrar nesse modelo de homem criado por ela. Nádia imagina até os defeitos que ele teria e é isso que me assusta.

O homem que ela quer, sem tirar nem pôr, é o Marcos.

Eu não gosto do Marcos.

Acho que nem a Diana... Bem, é difícil dizer. A Diana é muito confusa nesse ponto.

De qualquer forma, por mais que a Nádia sonhe com a possibilidade de ser a Diana, isso lhe é impossível.

E eu digo, com convicção, que é impossível, porque a Nádia não sabe da existência da Diana. E vice-versa.

Nenhuma das duas passa por essas experiências, como eu.

A Nádia é a Nádia. Vive somente a sua própria vida. Tem total desconhecimento de mim e da Diana.

O mesmo vale para a Diana, que ignora a mim e à esposa do Jorge completamente.

Somente eu vivo três vidas.

Mas uma de cada vez.

Explicando mais claramente: uma a cada dia.

E seguindo um estranho e rigoroso calendário...

Estou na minha pele, vivendo a minha vida, três vezes na semana.

Sou eu mesma somente às terças, quintas e sábados.

Entro na vida da Nádia apenas às segundas e sextas-feiras.

E me transformo em Diana às quartas e domingos.

Não sei por que se segue criteriosamente essa ordem. Só sei que é sempre assim.

Eu não sei quando ou como foi que isso começou. Entretanto, tenho a leve impressão de que não deve ter mais de um ano que vivencio essa experiência. Mas não tenho certeza... É estranho, mas hoje é como se a Nádia e a Diana fizessem parte de mim, e eu delas, desde sempre. Não consigo me recordar da época em que minha vida se resumia apenas a mim. As memórias e lembranças de uma vida inteira e que antes pertenciam somente a elas, agora também fazem parte de mim. Não consigo desatrelar-me delas.

Sinceramente, não me importo mais com o porquê, o como, o desde quando.

Meu objetivo agora é entender aonde isso tudo vai me levar.

Minha vida, que agora se divide em três, exige que eu compreenda o que vai ser daqui para a frente.

Viver três vidas pode parecer difícil.

Entretanto, não é. Ou melhor, profissionalmente, falando de aspectos práticos, não é.

É tão estranho, mas a minha vida continua mesmo quando não estou aqui.

Quando regresso da vida da Nádia ou da Diana, um dia também se passou, naturalmente, na minha realidade.

E eu trabalhei e fiz tudo o que deveria normalmente; mesmo não estando teoricamente, conscientemente, aqui.

O mais interessante é que, tão logo regresso à minha vida, fico ciente de tudo que fiz em minha ausência.

É quase como se houvesse um piloto automático, que tomasse conta de tudo por aqui enquanto eu estivesse fora, vivendo outras vidas...

Rio de mim mesma agora.

Se o Carlos encontrar esse diário, vai me chamar de louca. Preciso escondê-lo bem. Do contrário, vamos ter uma daquelas discussões intermináveis.

Se isso acontecer, eu inevitavelmente vou me cansar e acabarei por mandá-lo embora do meu apartamento, ameaçando romper o noivado. É tão fácil perder a paciência com o Carlos.

E, algumas horas depois, é certo que o Sérgio virá bater à minha porta, para conversar, para saber por que briguei com seu irmão.

Vai ser um bom amigo e vai me consolar.

Vai falar coisas boas do Carlos.

Vai tentar nos ajudar a fazer as pazes.

Eu vou me negar, pois sou orgulhosa.

E o Sérgio é tão paciente...

Ele vai querer saber o motivo da briga.

E, para ele, talvez eu conte.

Talvez mostre esse diário.

Será que ele me entenderia?

Chega; estou divagando demais.

Preciso dormir, quero dormir.

Quero encontrar o Jorge.

Quero sentir o perfume dele, mais uma vez.

Quero ver aquele sorriso.

Quero tentar me ver naqueles olhos.

Ver a mim. Não a Nádia...

Boa noite, querido diário.

Eu volto depois de amanhã.


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