A Última Rainha escrita por Clio


Capítulo 1
Epílogo




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Susana deu um grito ao acordar, passou a mão pela testa úmida de suor e sentou-se na cama, percebendo, enfim, o quão rápido seu coração batia.


Respirou profundamente tentando recuperar a calma, ao seu lado a cama estava vazia, o amante daquela noite já havia ido embora, não havia nem mesmo se despedido propriamente. Ela preferia que fosse assim, odiava despedidas falsas.


Levantou-se, e segurando a mão no seio esquerdo, caminhou até a cozinha, para preparar um chá qualquer.


Imagens de seu sonho vinham a sua mente, por mais que quisesse esquecer seu subconsciente não permitia, era como uma fita que repetia várias vezes as mesmas cenas, que ficavam flutuando em sua cabeça.


Encheu a chaleira até a metade, ligou a chama fraca do fogão, e foi até o armário escolher algum sabor de chá. No fim, para ela, todos pareciam ter o mesmo sabor. Pegou um que vinha dentro de uma pequena embalagem vermelha que era ilustrada por pequenos desenhos de faunos e ninfas dançando. Era ridículo, como se tais criaturas gostassem de chá... ou como se existissem.


Mas a impressão que teve, enquanto olhava a pequena embalagem, era de que faunos talvez gostassem de chá, de servirem-se perto da lareira enquanto bebericavam uma xícara fumegante. Por alguma razão esse pensamento inverossímil trouxe a memória de sua irmã mais nova.


Sentiu um aperto em seu coração, as lembranças de seu sonho vinham à tona mais uma vez, eram imagens que misturavam-se com as memórias do acidente de trem, quando viu todos que conhecia despedaçados, toda sua família estava morta.


Susana já nem se lembrava mais o motivo de não ter pego aquele trem, tampouco lembrava por que todos os outros estavam no mesmo. Lembrava-se de quando ouviu as notícias, de quando reconheceu todos, de quando organizou o funeral, de quando recebeu todos os pertences e de quando doou todos, guardando apenas algumas fotos, que ficavam dentro de uma gaveta em seu quarto, longe de seu campo de visão.


Novamente revivia aquelas memórias, que tornavam a se misturar com cenas de centauros cavalgando por campos verdes, com alguns resquícios de neve de um inverno tão frio que sentia-o em seus ossos. Vinha-lhe a mente, também, castores conversando, via seu irmão mais velho brandir uma espada feito um cavaleiro medieval.


Sabia que existia um outro que era príncipe, e que, não sabia como, mas sabia, que o trono dele havia sido usurpado. Ruínas de um castelo apareciam logo depois de ver um palácio luxuoso com quatro tronos, via uma rainha que apesar de belíssima, não conseguia saber quem era.


A chaleira apitou despertando-a de seus devaneios, despejou a água quente em uma xícara qualquer, e adicionou o chá. Ficou um tempo mexendo o líquido com a colher, mas a verdade era que não sentia vontade de bebê-lo. Talvez tivesse feito tudo aquilo apenas para sair da cama e evitar sonhar novamente. O relógio batia e já eram sete horas da manhã.


Mas até que dessem dez horas ela não tinha nada para fazer, e quando suas manhãs começavam tão cedo assim, tinha a impressão que o dia não terminaria nunca. Pensou em ir ler o jornal que já estava na porta, mas era difícil concentrar-se em qualquer leitura quando o sono lhe havia sido privado de forma tão brusca.


Susana já tinha trinta e dois anos, ainda era solteira, e talvez continuasse para sempre, afinal, parecia que havia sido talhada com a incapacidade de amar. Tudo o que podia fazer sair com homens que achasse interessante, até começarem a entediá-la quando ela por fim os mandava embora.


Qualquer envolvimento mais sério parecia doloroso demais, mas ela mentia-se para si mesma, dizendo que não era sua culpa se todos seus casos no fim, por um motivo ou outro, tornavam-se decepcionantes. Depois de tudo, ela acostumara-se a ficar sozinha.


Começou a remexer em algumas gavetas esquecidas, talvez assim o tempo passasse mais depressa, em uma pequena caixa estavam guardados todos os convites de festa que costumava receber, estavam ali, também, pequenos bilhetes amorosos.


Nunca foi segredo o fato de que era sempre o alvo de flerto dos rapazes, e nunca foi segredo que isso a envaidecia como nunca. Seu maior prazer, na verdade, era dispensá-los, ou então, responder os flertes, só para minar suas esperanças depois de algum tempo.


Hoje percebia que isso, no fundo, era cruel. Mas quando se tem vinte anos nada disso importa, a vida é apenas frívola.


Perto de algumas flores secas, que havia ganhado seu irmão mais novo como presente de aniversário, estava uma fotografia de quatro crianças, tirada pouco antes de pegarem um trem para a casa de um senhor muito peculiar. Susana sorriu ao ver seus irmãos, diferentemente dela eles não envelheceram, e jamais iriam.


Lembrava-se da pequena Lúcia que adorava entrar em um dos guardarroupas da casa, só para sentir a textura dos casacos sob a pele. Lúcia adorava passar horas lá. Mas quando Susana começou a se interessar por casacos e roupas lhe disseram que havia que era vaidosa e fútil.


Disseram-lhe que estava mudada, que preocupava-se mais com festas e rapazes, com vestidos e meias, maquiagem e compras e outras coisas materiais. Ficavam-lhe implicando dizendo que havia se esquecido de sua infância, das aventuras que tiveram em reinos encantados de fantasias.


Até mesmo o seu primo Eustáquio, o qual de uma hora para outra deixou de ser uma pessoa insuportável e irritante para ser alguém quase agradável, a dizia que era preciso que ela se lembrasse.


Lembrar do quê? Fantasia, contos de fada e lendas que não existiam? Nem mesmo Pedro a deixava em paz, dizendo que ela havia se esquecido por que havia se tornado uma moça mais preocupada com as aparências do que com aquilo que é real.


Susana revidava dizendo que ela era real, enquanto todos os outros pareciam ainda viver em um mundo imaginário, chegava até a temer pela sanidade de sua família, afinal eram todos já grandes para ainda acreditarem em lugares mágicos com animais falantes.


Ela só acreditava no que via, e no que tocava, e não tinha culpa se gostava de ser jovem e de se divertir, enquanto os outros ficavam trancados em casa conversando e, discutindo, lendas e histórias de locais imaginários. Se todos preferiam continuar feito crianças e continuarem a se iludir com bobagens, ela preferia sair e viver.


Mas isso acabou, de uma só vez, sua juventude e alegria de festas e bailes, haviam sido tirados dela. De uma só vez Susana envelheceu, se antes era madura, a perda a tornou envelhecida. Tudo o que antes a alegrava, agora não tinha sentido e nem razão de ser.


Sem saber o que fazer dedicou-se ao que a restava, apenas aos seus estudos, na universidade era uma aluna brilhante, popular entre os professores e os outros estudantes, mas, se antes isso a deixava orgulhosa e feliz, agora a deixavam apenas irritada. Por algum motivo todo mundo a irritava, apreciava apenas a própria companhia. Já não ia mais festas ou cafés. Já não fazia mais nada.


Susana passou a estudar sobre tudo o que pudesse explicar alguma coisa, procurou em livros de mitologias, religiões, qualquer coisa sobre deus ou qualquer deus. Por algum motivo desenvolveu uma obsessão pelo assunto.


Mitos de criação, histórias sobre mundo além do nosso, explicações sobre a alma eram o objetivo de seus estudos de pós-graduação.


Não conseguia explicar de onde havia vindo tal interesse, afinal, jamais havia acreditado naquilo que não existia, ou naquilo que não podia ver. Em uma das consultas que teve com um psicanalista, logo após sua perda, lhe foi dito que era normal ter esse tipo de interesse quando se tem algum tipo de contato com a morte.


Mas ela sabia que esse não era o motivo de seus estudos, no fundo ela sabia que se pudesse provar alguma coisa, se tivesse algum fato concreto, científico, então ela poderia enfim descansar, poderia enfim acreditar nas fantasias dos irmãos, mesmo que agora já fosse tarde demais.


Susana voltou a enfiar todas as coisas que havia tirado da caixa, e colocá-la dentro da gaveta, e começou a arrumar-se para sua aula. Apesar de não ter a vaidade de seus vinte anos, e apesar dos anos de tristeza, ela ainda mantinha seus traços de beleza, e ainda era possível ver uma luz no fundo de seus olhos.


Trancou a porta de casa e saiu caminhando calmamente pela rua, passou em frente a uma banca de jornais, onde em uma das prateleiras estava uma revista que estampava um caçador em uma savana, ao seu lado estava um grande leão, de pelo dourado e uma juba lustrosa. Com um impulso inexplicável ela comprou a revista, não lhe interessava nada, além do leão.


Quando chegou em casa olhou novamente o animal, sentia temor, ao mesmo tempo em que sentia uma grande leveza invadir seu coração, quando via fitava o leão da foto.


Aquela revista ficou por alguns anos em cima da mesinha da sala, Susana jamais a abriu, nem sequer sabia sobre o que aquela publicação se tratava, gostava apenas de observar o leão, que sem motivo algum, trazia memórias nostálgicas de sua infância, junto com a sensação de um dia ter corrido e brincado com um animal daquele porte.


Era absurdo, ela pensava, mas era uma memória tão forte que ela concluiu que ela mesma havia fabricado aquela recordação.


Outra vez os anos passaram-se, e Susana se vida cada vez mais envelhecida enquanto ainda procurava respostas de perguntas que nem sequer conhecia.


Os dias cada vez mais arrastavam-se entre seus livros e teorias, lembranças e sonhos confusos. Certa noite resolveu caminhar para ver se conseguia absorver o ar da noite, talvez isso a fizesse bem, havia dias que não dormia.


Estava distraída demais para ver as luzes do carro que vinha em alta velocidade em sua direção. Tudo o que ela sentiu foi um impacto forte, como se fosse lançar sua alma para fora de seu corpo, e deitada na rua ela contemplava as estrelas. A única coisa que vinha a sua mente era a capa da revista, imaginava-se olhando para aquele leão novamente.


Logo depois viu-se em uma terra coberta por neve, estava com um arco-e-flecha que havia ganho de papai noel. Viu o sacrifício de um grande leão enquanto chorava desconsoladamente. Viu o mesmo leão levantar-se e correr com ela. Ela reinava em um grande castelo, junto com seus irmãos, e depois disso ela havia voltado para aquele lugar somente para ajudar um príncipe que havia sido tirado de seu trono. Exatamente como em seus sonhos.


E observando as estrelas, enquanto mais pessoas se ajuntavam a sua volta, enquanto começava a ouvir o barulho de uma sirene se aproximando, Susana sentiu a juba do leão tocando seu rosto, ergueu as mãos e pôde abraçá-lo. Depois de tanto tempo ela conseguiu tocá-lo novamente.


Viu seus irmãos e sentiu que correria para poder apertá-los entre seus braços, enquanto olhava para si mesma e via que era jovem, como nunca havia sido antes, era jovem como a rainha que via em seus sonhos.


E naquele lugar que parecia o paraíso que visitava quando criança ainda estava o leão, num sussurro Susana o chamou, pela primeira vez em muito anos ela havia se lembrado de seu nome: 'Aslam'.


Enquanto seu corpo era chacoalhado dentro da barulhenta ambulância, ela sussurrou aquele nome novamente, e desta vez ele se estendeu até ela, que o seguiu em direção aos seus irmãos, e a todos que conhecia. Enfim, a última rainha havia retornado.


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Notas finais do capítulo

Como vários leitores da obra de C.S. Lewis eu quis dar um final diferente para Susana.
Nunca fiquei indignada pelo fato de ela não voltar para Nárnia, acho que o que o autor quis dizer com isso era que Susana havia tornado-se uma pessoa materialista, frívola esquecendo-se de quem era verdadeiramente, para ser alguém apenas aparente.
Bom essa é a minha opinião. Porém o que sempre me indignou foi o fato de que a história dela ficou como que inacabada, afinal há, também, teorias de que ela só não retornou a Nárnia por simplesmente não estar no trem.
Por isso resolvi dar esse final a personagem, como fã da maravilhosa obra de Lewis, espero ao menos ter fechado a história de Susana, sem destoar ou arruinar a personagem.