O Primeiro Massacre Quaternário escrita por AnaCarol


Capítulo 23
Entrando numa Fria


Notas iniciais do capítulo

Música: Paradise - Coldplay



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Droga. Eu acordo em um cilindro de vidro numa sala escura. Não sei há quanto tempo estou viajando, mas começo a ouvir a primeira contagem e me levanto, pronta para correr. Imagino se Hyllu não está sonolenta o bastante para ficar mais devagar, mas me lembro de quem está contra nós e acho que não é possível ficar sonolenta ao lado deles.

A segunda contagem começa. Meu casaco está amarrado à cintura e imagino se o cobertor ficou no chão da outra arena. Chacoalho as costas. Algo fofo está entufado nela, então o cobertor está aqui. Será que foi Hyllu quem bolou isso?

A terceira arena desses Jogos é no gelo. As únicas coisas que podemos contar como abrigo são as montanhas de Gelo, que nem chegam aos pés da Caverna em que estávamos. O chão parece ser liso e escorregadio, mas tenho que correr do mesmo jeito, pois Lay Down e Lisa olham para mim com raivas descomunais.

A sirene soa e todos começam a correr. Lay Down está correndo loucamente atrás de mim, determinada a não me deixar escapar dessa vez. Fico feliz ao me lembrar de que não vi o rosto do menino do distrito Doze ontem no céu, então ele sobreviveu. Lisa, apesar de sua cara de má, não corre atrás de mim. Ela está parada, desafiando os mais corajosos a se meterem com ela. Provavelmente ela não é boa no gelo.

Lay Down não tem boa mira, pois arremessa uma faca que vai parar metros à minha direita. Não paro de correr por um só segundo. Hyllu está correndo até mim pelas laterais, perseguida pelo menino do distrito Seis. Não sei onde está John, mas como não ouço nenhum canhão, deduzo que ele está correndo de algum brutamontes por aí.

Alcanço uma Montanha de gelo, e Lay Down ainda está correndo atrás de mim. Demoraria muito para eu abrir a mochila e pegar um tridente, ou qualquer coisa. De um jeito atrapalhado, eu coloco o casaco e me esquento. Ainda sinto frio, mas estou bem melhor do que antes. O ar golpeia meu rosto e minhas mãos. Lay Down não para. Aparentemente ela ficou de vigia noite passada, pois finalmente ela começa a se cansar.

Não sei para onde estou correndo, pois não tenho objetivo algum a não ser me livrar dela. Quando ela finalmente para e atira outra faca, que vai parar alguns metros à minha esquerda, eu decido correr até a Montanha de gelo mais próxima.

Eu odeio o gelo. Não tenho onde me esconder ou abrigar, é frio demais, é perto a bastante da água para me dar esperança, mas longe o bastante para me dar insegurança. E sou um alvo fácil nele, pois a neve branca não esconde de maneira alguma minha roupa preta.

Lorien me chamou de Estrela dos Mares quando desfilamos na Capital. Bom, tenho certeza de que não vou achar nenhuma outra estrela do mar aqui.

John e Hyllu chegam alguns minutos depois de mim. Estamos todos arfando. Eles põem seus casacos e nós trememos de frio por pararmos subitamente de nos mover.

–Temos que ir para outra Montanha de gelo mais longe. – Hyllu diz. – Os perseguidores viram para onde viemos e logo vão se recuperar e vir até aqui.

–Mas eles podem nos ver se formos até a outra montanha de gelo. – Eu protesto. – Não estamos nem perto de estar camuflados.

–Droga. – John reclama. Ele começa a pular no mesmo lugar.

Eu olho para a Cornucópia. Ela está bem longe, mas não o suficiente, e parece que eu percorri bem menos do que minhas pernas se moveram. O piso de gelo é regular, não totalmente branco, não totalmente azulado. Parece até que o gelo foi alterado para obter uma tonalidade branca rosada. Branca rosada. Branca rosada.

–Tive uma ideia! – Eu quase grito.

–Shh! Shh! Shh! – John tapa minha boca. – Não faz escândalo.

Eu lambo sua mão e ele a tira rapidamente.

–Ai que nojo, Madison.

–Psiu! Hey! Ouça! Nossas roupas. Se virarmo-las do avesso – Eu viro minha manga em demonstração. – Elas ficam parecidas com o chão!

Hyllu sorri.

–Certo. Virem seus casacos do avesso e coloquem os gorros. – Hyllu ordena. Nós todos o fazemos. Quando terminamos Hyllu ri e manda John se virar. Nós duas reviramos rapidamente nossas calças e então viramos de costas. John repete nossos movimentos e nós estamos prontos para partir. Não estamos totalmente camuflados por causa dos pontos de costura das roupas, mas é melhor do que nada.

–Espera. – Ele olha para nossas malas.

–Argh! – Eu resmungo. – Não dá pra virar as malas.

–Vamos ter que ir com elas assim mesmo. – Hyllu diz.

–Certo.

Eu me abaixo e pego um tridente na mala.

–Vamos ver o mar está pra peixe, hã? – Eu o jogo para cima girando e o pego.

John sorri e Hyllu começa a correr na frente.

Chegamos com sucesso na montanha de gelo mais próxima. Não vemos nenhum outro tributo até anoitecer, mas mesmo assim John decide que devemos partir para outra montanha, pois é arriscado permanecer muito tempo no mesmo lugar. Eu concordo e nós corremos para outra montanha.

Ninguém morreu hoje, mas eu vi uma menina (do distrito Oito, de acordo com Hyllu) que não possuía nenhuma mala, e não vai aguentar o frio desta arena por mais de um dia.

A noite passa congelante, mas consigo dormir um pouco. O chão não chacoalha quando eu acordo. Pelo contrário. Estou com a cabeça apoiada no colo de John, e meu corpo está tremendo embaixo do cobertor. John está com as costas encostadas no gelo, e quando olho para sua face, ele está olhando para mim. Eu me levanto num impulso, olhando assustada para ele.

Jason não saiu da minha cabeça desde que revirei minha calça, horas atrás. Ele estaria assistindo a mim na TV, apenas de calcinha por alguns segundos? Sonhei comigo voltando para casa e ele me abraçando. Vi suas lágrimas e seu sorriso me recebendo de volta em casa. Vi-nos correndo novamente até a praia, sem precisar me preocupar com nada mais, pois eu não teria que voltar para o Abrigo para lavar a louça. Vi Beau nos recebendo em sua casa para um piquenique e nós podíamos ficar lá para dormir. Fico surpresa ao não acordar chorando. Afinal, quais não minhas chances de ganhar esses Jogos? Só fugimos, só corremos. Quais as minhas chances em uma luta contra Jack ou Lisa?

John ri.

–Bom dia! Tenho a impressão de que vai ser um dia espetacularmente ótimo!

Eu gemo.

–Hanny, é você?

Eu cutuco Hyllu e ela acorda com um gemido.

–Temos que mudar de montanha? – Ela pergunta. Eu olho para John que assente com uma careta.

–É melhor sim.

–Certo. Prontos para correr?

Hyllu e John assentem e nós partimos. Estamos no meio do caminho quando, de trás da montanha, sai Lisa, a assustadora garota do Distrito Dois. Nós paramos imediatamente, com caras assustadas. Ela ri.

–Olá, garotinhas. – Ela tira a lança das costas. – Espero que estejam usando fraudas dessa vez.

Ela arremessa, e num último minuto eu derrubo John não chão. A lança voa por nossas cabeças. Ela pragueja ao ver a arma escorregando para longe no gelo. Tira da mala sua espada, e nós três corremos para trás da montanha de gelo. Ela a contorna. E eu puxo Hyllu para mim, livrando-a de um golpe na bochecha.

Ainda não posso usar o tridente. É melhor esperar uma oportunidade melhor. Vejo que John tira uma faca de dentro do casaco e a segura na parte mais pesada.

Nós corremos enquanto Lisa nos persegue. John arremessa a faca, e ela para em seu ombro. Como se fosse de ferro, Lisa apenas tira a faca do ombro e resmunga algo. Arremessa e eu grito para nos abaixarmos.

Quando estamos levantando, Hyllu grita e cai no chão.

–Hyllu! – Eu puxo seus ombros e a carrego para longe. Lisa ri.

–Ah. O bebê se machucou? O que mamãe e papai vão fazer agora?

Ela defere um golpe em meu braço direito e eu grito. John carrega Hyllu para longe.

–Vai embora! – Eu grito para ele. – Corra!

Ele balança a cabeça.

Corro até a lança de Lisa. Tenho um plano. Ele não é dos melhores, mas tem que funcionar. Deslizo de joelhos pelo gelo na direção de Lisa. Ela parece um pouco confusa, mas feliz. Levanta sua espada para o alto e a inclina em um ângulo de 90 graus exatos. Está pronta para enfiar a espada em minhas costas, mas eu sou mais rápida, por pura sorte.

Ela grita quando eu retiro a lança de seu pé esquerdo e enfio-a em seu pé direito. Pula para trás e essa é minha única chance. Olho para trás. John está mais longe agora. Tem que ser agora!

Eu cravo a lança profundamente no gelo. Ele começa a se rachar. Meu tempo é de aproximadamente 30 segundos. Sem pensar duas vezes invisto contra Lisa, que ainda parece entender o que estou fazendo. Esse milésimo de segundo de sua confusão foi letal para ela.

Pego meu tridente e furo sua roupa. Ele atravessa-a sem ferir Lisa e ela parece achar que eu errei.

Pelo contrário.

Com sua blusa já presa a meu tridente, eu o cravo no gelo. Ele começa a se rachar em pedaços menores e eu pulo para o lado que ainda está intacto. Chuto sua barriga, desequilibrando-a; Ela cai sentada no gelo, que se parte e começa a afundar. Seu traseiro toca a água gelada e ela geme, tentando se levantar, mas o peso de meu tridente já afundando não a deixa voltar a ficar de pé.

Sei que já basta. Sei que ela já está condenada. Seu olhar de terror me diz isso. Meu instinto quer vingar Ky. Quer tira-la de lá apenas para mata-la aos socos e golpes.

Mas Ky não quer vingança. Ele está livre.

Tenho que repetir isso algumas vezes, e fico assistindo a sua morte lenta, seu corpo congelado afundando cada vez mais, mais e mais, até não eu conseguir ver nada além da água.

–Anna! – John grita de trás da outra montanha de gelo ao soar o canhão. – Anna!

Eu corro até lá, deslizando de joelhos no final. Hyllu está tossindo. John tenta cuidar de seu ferimento, mas é impossível, pois não temos outra água que não seja a congelante. Ele tentou limpar com nosso Kit de Emergências, mas nada adiantou. Hyllu sangra muito. Estou com medo de puxar ainda mais sua blusa regata, pois sei que embaixo dela existe um ferimento incurável.

Hyllu está morrendo.

–Hyllu... – Eu consigo pronunciar. Lágrimas brotam em meus olhos enquanto eu a abraço. Um sentimento de culpa me invade. – Sinto muito. Eu devia ter usado o tridente na primeira chance! Desculpa. Eu... Deixei você ficar em minha frente desarmada, eu...

–Anna. Tudo bem. – Ela tosse. – Eu vou ficar bem.

Eu assinto.

–Vai sim. Tenho certeza que vai. – Eu murmuro, ainda pensando se posso fazer algo com seu ferimento.

Ela sorri. John e eu a abraçamos. Ele não está chorando, mas acho que está se mantendo forte por mim. Estou prestes a entrar novamente em transe.

–Faz um favor? – Ela pergunta.

–Claro.

–Canta pra mim. – Ela diz. – John me disse que você canta bem pra caramba.

Eu assinto. Hyllu fecha os olhos e John a cobre com o cobertor. Estamos muito expostos aqui, mas eu não ligo. Não ligo se alguém se intrometer, porque vou matar qualquer um que passar por mim agora.

Quando ela era apenas uma garota

Ela esperava o mundo

Mas ele voou fora de seu alcance

Então ela fugiu em seu sono

E sonhava com o paraíso

Paraíso

Paraíso

Toda vez que ela fechava seus olhos

Quando ela era apenas uma garota

Ela esperava o mundo

Mas ele voou fora de seu alcance

E as balas ficaram presas em seus dentes

A vida continua,

Ela fica tão pesada

O Ciclo da Borboleta se Rompe

Cada lágrima, uma cachoeira.

Na noite, a noite turbulenta.

Ela fechará seus olhos

Na noite

Na noite tempestuosa

Para longe ela voaria

E sonhos com o paraíso

Paraíso

Paraíso

Ela sonharia com o paraíso

Paraíso

Paraíso

E assim por debaixo dos céus tempestuosos

Ela dizia: oh-oh-oh-oh

Eu sei que o sol deve se pôr para levantar

E então debaixo daqueles céus tempestuosos

Ela diria oh-oh-oh-oh-oh-oh

Eu sei que o sol deve se pôr para levantar

Isto poderia ser o paraíso

Paraíso

Paraíso

Isto poderia ser o paraíso

Paraiso

Isto poderia ser o paraíso


Logo quando eu termino de cantar ela sorri e assente, ainda de olhos fechados. Então sua cabeça tomba levemente para o lado e eu sei que aquele foi seu último sorriso.

Eu abraço John e choro em seu ombro por sei lá quantos minutos, horas, dias... Quando abro os olhos, o rosto de Hyllu brilha no céu escuro projetado pela Capital, logo depois da foto de Lisa.

–A foto dela... – Eu consigo dizer. – Está linda!

Eu a encaro. Seu corpo morto ainda está conosco, porque é preciso que os tributos vivos se afastem do morto para ele poder ser retirado. Seus cabelos caem perfeitamente em seus ombros. Sua blusa manchada de sangue começa a secar e obter um tom assustador de vinho. Seus olhos estão fechados e o sorriso permanece em seu rosto. Ela está calma. Em paz. Ela não pertence mais a Capital. Ela nunca pertenceu. Assim como Ky, a foto não representa como ela está agora.

–Você canta mesmo muito bem. – John diz. Eu assinto e me levanto.

–Temos que mudar de montanha de gelo. – Eu digo.

Ele assente, mas não se levanta. Pelo contrário, tira a mala das costas de Hyllu – coisa na qual eu não pensei, mas que foi uma ótima ideia de John – e retira de lá uma flor, parecida com as flores que ficavam ao lado do rio onde a encontramos pela primeira vez. Tira sua franja do olho e coloca a flor atrás de sua orelha.

–Nossos sentimentos ao Distrito Três. – Ele diz, olhando para o horizonte, onde deve estar escondida uma câmera. – Você escolheram os piores tributos para os Jogos. Por que eles sim deveriam viver.

Então, sem nenhuma outra palavra, nós nos viramos e corremos para a montanha de neve mais próxima.

–Hoje é nosso terceiro dia nesta arena. – Eu transmito a John todos os meus cálculos que fiz enquanto montava guarda. – E pelo que aconteceu com as outras arenas, é provável que nós mudemos de arena amanhã de manhã.

–Por quê?

–É mais simples do que parece. – Eu explico. – Passamos um dia na primeira arena, a Floresta Chuvosa.

–Certo.

–Dois na arena do Rio. Então três nesta arena, quatro na próxima, cinco na depois dela e assim vai.

–Ótimo. Isso quer dizer que vamos sair logo dessa porcaria. Estou morrendo de fome.

–Concordo.

–Não é possível que não tenha nem um urso polar sequer nessa arena.

–Concordo.

–Nem mesmo baleias!

–Baleias?

–Focas, leões marinhos, sei lá qual o nome do bicho doido que vive nesse inferno.

–Quem me dera isso fosse um inferno, querido.

Nós rimos mais de nossa bobagem do que de nossas piadas.

–Vamos comer a maçã. – Eu digo. – Sei que temos que racionar comida, mas estamos morrendo aqui.

–Verdade.

Nós comemos nossas maçãs em silêncio, eu empoleirada em seu braço, tentando me esquentar, nossas pernas encolhidas embaixo do cobertor. O vento frio golpeia meu rosto e mãos e me lembra de que os lábios de Hyllu estavam semi congelados quando ela deu seu último sorriso.

Eu suspiro.

–O que foi?

–Esse céu é tão feio. – Eu olho para cima, onde até mesmo a tecnologia da Capital não consegue disfarçar os quadriculados azuis celestes. – Queria que ele não fosse ser a última coisa que eu visse na vida.

–Então te aconselho a ganhar.

–Você deu esse mesmo conselho a Hyllu. – Eu o lembro. Ele dá de ombros. – Você ao menos considerou a opção de tentar ganhar? De desfazer a aliança comigo e ir matar os outros tributos como Lisa fez?

–Não mesmo. Matar é horrível. Uma família inteira está assistindo sua criança neste exato momento, esperando com todas suas forças que ela ou ele volte para casa. E, com um simples gesto, eu acabo com essa esperança?

Lembro-me de Beau todos os anos, quando reprisam os Jogos em que tributos treinados por ele perderam. Ele fica sério, triste e não quer falar com ninguém.

–Você está certo. – Eu olho para a câmera. – A família de Lisa deve me odiar tanto.

Ele ri, assentindo.

–A família de Ky também – Eu completo. – Talvez até a de Hyllu.

–Não foi culpa sua essas duas mortes.

–Indiretamente foi sim. – Eu gemo e tapo meu rosto com as mãos.

Um canhão soa e um aerodeslizador aparece alguns metros de distância de onde estamos. Recolhemos o cobertor e partimos rápida e silenciosamente.

Passamos pela montanha de gelo que deixamos Hyllu, mas ela não está mais ali. Chegamos até uma montanha de gelo e estamos nos sentando quando ouvimos um passo. Paramos duros como estátuas, e ouvimos. A garota do distrito Oito espia a parte em que estamos com apenas os olhos. Seus cabelos loiros oxigenados quase desaparecem no gelo, mas seus olhos verdes se destacam. Ela percebe que consegui vê-la. Corajosamente ela assume posição de combate físico e pula para nossa parte. John garra a gola de sua blusa e a puxa para baixo.

Ela abre a boca para gritar e John parece perceber. Tapa sua boca num ato instintivo. Ela reproduz sons vindos de sua garganta, mas eles não podem ser ouvidos de muito longe.

–Shh. Shh. Shh! – Ele a acalma. Ela ainda olha assustada para ele; Os olhos arregalados. – Não vamos te machucar.

Calmamente John retira a mão de sua boca. No começo ela parece sem voz, mas segundos depois muda de ideia e começa a produzir um som. No começo baixo, mas em segundos pode se tornar altíssimo e denunciar nossa posição.

Então John faz uma coisa que eu não imaginava ver nos Jogos.

Ele a beija.

Eu começo a rir diante da cena, e a menina parece mais confusa do que nunca. Ela estapeia a cara de John, mas parece decidir não gritar.

Eu continuo rindo, e, se ela não estivesse ouvindo, eu provavelmente iria brincar com ele: “Turnit ataca novamente.”.

–Dá pra calar a boca agora? – Ele reclama, parecendo arrependido de tê-la beijado. Tenho vontade de rir mais ainda, mas me contenho a tempo.

–O que querem?

John olha para mim e entramos em um acordo silencioso.

–Não vamos te machucar, contando que: A) nos informe tudo o que sabe. B) saia daqui.

–Se eu contar posso permanecer aqui?

Eu assinto e John fala:

–Pode. E ainda ganha um lugar no nosso cobertor.

Ele sorri. E a menina logo se aloja entre nós dois embaixo do cobertor. Abraça suas canelas e suspira de alívio.

–Os tributos mortos até agora são 8. Então são 16 tributos vivos. Estamos Jogando há seis dias, esta é a terceira arena. Os mortos são:

Menina do distrito Dois. Menina do Três Menino do Três Menina do Cinco Menino do Oito Menina do Nove Menina do Dez Desconhecido

“Sei que o menino do distrito Oito se chamava Rev, e morreu nas mãos do menino do distrito Dez.”.

–Jack. – Eu murmuro e ela assente. Olho para ela, tremendo de frio, com os dentes trincados. Não chega nem perto de parecer uma sobrevivente. – Você era aliada dele?

–De Rev? Mais ou menos. Era para sermos aliados... Mas ele morreu na Cornucópia.

Ky me vem à cabeça e penso se devo conta-la, mas John não abriu a boca então fico calada.

–Sinto muito.

Ela dá de ombros. O céu escurece. Não consigo enxergar um palmo a minha frente, mas o céu brilha quadriculado. O hino de Panem começa a soar. O rosto do garoto do distrito Nove brilha no céu e a luz provida pelo brilho de sua foto acaba. Os dois tributos do Distrito Nove se foram. Assim como os dois tributos do distrito Três.

–Você dormiu esses dias? – Eu pergunto. Ela balança a cabeça. – Eu fico de guarda. Podem dormir você dois.

Eles não reclamam. Distrito Oito apoia a cabeça em meu ombro e dorme. Nem parece que ela tem 17 anos.

Tributos restantes: 16.

No meio da noite eu ouço um barulho estranho. Por instinto eu me levanto, meu segundo tridente em mãos.

–Oi docinho. – Eu ouço. Ainda está escuro, mas tenho certeza de que é Jack. Com a mão livre eu soco a direção de onde vem sua voz, mas ele já se moveu para outro lugar sem que eu percebesse. Estamos só nós dois acordados.

–Hey, Jack. – Eu entro em seu jogo, permanecendo na frente de John e seja lá qual for o nome da menina do distrito Oito. – Soube que a menina do seu distrito morreu. O que houve? Ficou muito tempo ao seu lado?

–Bonita e engraçada. Só falta inteligência, não é?

–No seu estado de desespero qualquer uma serve.

–Vem aqui então.

Eu golpeio o que acho ser sua barriga. Ele ri e sinto seu punho agarrando meu rosto. Ele força meus lábios a formarem um bico e os aperta com muita força.

–Vou te dar duas opções – Sinto seu hálito bem perto de meu nariz e tento me afastar. Ele me aperta ainda mais. – Você pode ser minha aliada e abandonar esse mariquinha. Ou você pode ser minha aliada e entrar para o time dos poderosos.

–Eu prefiro morrer! – Eu consigo falar entre os dentes.

Uma faca passa levemente por meu rosto e chega à minha barriga. Ela perfura meu corpo na altura dos pulmões, a uma distância perigosa do coração. Eu berro e meus aliados acordam. John parece não entender o que acontece, mas se põe de pé de prontidão. Jack ri.

–Feio adormecido acordou? Acordou foi? – A faca desliza até acima de meu umbigo e perfura novamente. O mundo dá um mortal duplo para trás e eu me deixo cair. Jack ainda aperta meus lábios e meus maxilares doem.

Consigo visualizar minha foto brilhando no céu quadriculado e fecho os olhos. Eu me recuso a morrer olhando para Jack ou para o céu artificial. Sinto o gelado da ponta da faca girar em meu corpo e desejo com todas as minhas forças que Jack me deixe cair no chão, mas ele não deixa.

–Jack. Solta a menina. – John fala. Não tenho certeza, mas acho que está desarmado.

Ele me solta e eu caio no chão, chorando. A menina do distrito oito me puxa para si e começa a limpar meu ferimento com sua blusa. Meus olhos só enxergam vultos, e algumas bolinhas brancas piscam em minha visão turva. Fecho os olhos e respiro com cuidado, lentamente. Meus ouvidos ainda funcionam normalmente, então me concentro neles.

John geme, mas parece que avança contra Jack.

–Deixe... A faca... De lado... Marica. – John fala entre socos, chutes e facadas.

Ouço a faca tilintar no gelo e a menina do oito me solta rapidamente. Acho que ela pega a faca. Então volta sem fazer nenhum barulho.

Ouço um baque e John cai no chão com um gemido estridente. Acho que Jack o imobilizou. A garota do distrito Oito saiu de perto de mim, mas não sei para onde ela foi.

Num gesto inesperado ouço Jack gritar. Abro os olhos. Minha visão continua a mesma porcaria, mas posso ver dois um vulto deitado no chão e o vulto de Jack ajoelhado em cima dele. O vulto Jack se contorce e tomba de lado. Ouço um canhão. Vulto John joga vulto Jack para o lado e seu corpo desliza metros além.

John vem até mim e sinto a garota do distrito oito de volta. Minhas mãos tocam o rosto de John e imediatamente são inundadas de sangue.

–Acho que ele era mais forte que eu. – Eu digo, me referindo ao soco que lhe dei enquanto dormia.

–Acho que não. – Ele ri.

Minha voz está fraca.

–Facas machucam. – Eu murmuro. Vulto John assente. Vulto Distrito Oito limpa freneticamente vulto eu e vulto John. – O que matou ele?

Vulto John estremece quando vulto Blusa da Distrito Oito toca seu rosto.

–Ela jogou a faca pelo gelo.

–Obrigada. – Eu murmuro, tentando olhar para ela.

–Não foi nada.

John se deixa cair ao meu lado. Meus ferimentos não estão totalmente curados quando o Sol nasce e o chão começa a tremer: exatamente como eu previra.

–Droga.



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Notas finais do capítulo

Isto é uma guerra. Pessoas morrem em guerras. Tchau, Hyllu Neter, 16 anos. Sinto muito.



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