O Primeiro Massacre Quaternário escrita por AnaCarol


Capítulo 20
São e salvo.




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  John ainda me puxa para longe da Cornucópia. Seu aperto é forte ao redor de meu pulso direito. Estou confusa. O mundo gira e todas as árvores são iguais, umas às outras. Eu olho para uma árvore e vejo uma lança. Olho para uma folha caída no chão e o rosto de Ky aparece pintado nela.

  Estou soluçando loucamente. Tento ao máximo não gritar todo o ar de meus pulmões, mas não consigo impedir gemidos escaparem de minha boca. Posso ver, entre o embasado de minhas lágrimas, que John também está chorando, mais discretamente do que eu. Quando ele acha que estamos longe o bastante, sentamos aos pés de uma árvore.

  Não trocamos uma palavra sequer desde que eu saí do telhado. Sentamos no chão enlameado sem nos importar. Vestimos jaquetas pretas e calças pretas também. Nossas blusas são regatas brancas.

  John, que ainda se mantêm consciente do que acontece ao nosso redor, decide verificar o que têm nas mochilas que pegamos.

  Percebo que temos três mochilas. Nunca reparei que pessoas não carreiristas poderiam pegar mais de uma mala, mas lembro de que John é um carreirista e mando eu mesma calar a boca. Na mochila um temos quatro tridentes de tipos diferentes, uma caixa de cereal, uma xícara de tamanho médio, um kit de primeiro socorros e um cobertor fino. Pergunto-me quando eu cheguei perto assim da Cornucópia, pois essa mochila só poderia estar muito perto do chifre.

  Na mochila dois temos um casaco grosso, um short feminino preto, um gorro de cabeça vermelho, um tubo de cola, três facas afiadas de tamanhos e lâminas diferentes e dois tabletes de chocolate ao leite.

  Na terceira e última mochila temos um apito, um arco e flecha com uma aljava de 24 flechas (ironicamente, daria para matar todos os tributos com só um arco), um pincel, duas maçãs verdes, um tijolo e uma presilha de cabelo.

  Até que é bastante coisa. Um gemido escapa de minha boca quando uma série de canhões começa a soar. Eles soam o primeiro canhão em honra ao primeiro morto dos Jogos, e o resto do banho de sangue da Cornucópia é transmitido ao final do acontecimento. Conto lentamente, forçando-me a prestar atenção apenas nisso, para depois voltar à insanidade.

  Grande tributo sou eu.

  Foram apenas Seis mortos no banho de sangue. Eu mal acredito, pois na maioria das vezes o chão fica manchado com o sangue de Doze a Dezesseis tributos mortos. Mas dessa vez foram apenas Seis.

  Ou somos todos covardes, ou são todos muito bons. Quero acreditar na primeira hipótese, mas sei que não é verdade. John puxa meu braço e diz algo. Provavelmente quer que nos afastemos ainda mais. Está escurecendo e os mais fortes que sobreviveram ao banho de sangue devem estar se espalhando, procurando os mais fracos que também escaparam.

  Não quero me levantar. Ele grita comigo e vejo lágrimas caindo de seus olhos, mas tudo que ouço é o mesmo canhão, na mesma tonalidade, anunciando a morte de Ky. Ele morreu para me salvar. Não precisava ter morrido. Ele poderia muito bem correr por cima de mim e me deixar morrer em seu lugar... Mas não. Ele foi honroso e lutou por mim: a menina que ele mal conhecia. Deixou para trás sua namorada, seus irmãos, seus pais, seus amigos e toda sua vida para me ajudar.

  Chego à conclusão de que Ky não era bom da cabeça.

  -Ele morreu. Honre isso. – Ouço as palavras finais de apelo de John.

  -Ky. – Eu murmuro seu nome. John se ajoelha ao meu lado e me chacoalha.

  -É só o primeiro dia, está escurecendo. Vamos continuar andando. Temos que sair daqui.

  -Ky está morto.

  -Anna, levante! – Ele grita.

  -Ky está morto e a culpa é minha. – Continuo viajando.

  -Não é culpa sua, Anna. Ele escolheu fazer o que fez. Agora vamos, não o faça morrer a toa.

  -Desculpa. – Eu me levanto com sua ajuda.

  -Você está em transe.

  Fecho os olhos e sinto-os arderem. Solto outro gemido. John bufa.

  -Jason está vendo isso agora, e ele não gostaria de te ver assim.

  Eu não respondo, mas sei que ele está certo.

  -Você parece uma medrosa, inútil. – Ele continua. Eu não respondo de novo. – Então está bem. Não quero você como aliada mesmo.

  Eu me levanto e, sem dizer uma palavra, pego a mochila um – a dos tridentes – e saio correndo.

  -Anna! – Ele chama primeiro em voz baixa e depois começa a gritar e correr atrás de mim. Eu acelero. – Anna!

  Ha. Achei mesmo que John fosse mais esperto do que isso. Está denunciando nosso paradeiro e voltando comigo até a cornucópia. Pelo menos para onde eu acho que é a Cornucópia.

  Continuo em transe, mas não ligo mais. As árvores começam a rarear e eu vejo novamente o chifre. Os corpos já foram retirados. Eu corro até onde me lembro de que Ky foi assassinado. Murmuro algumas palavras que tenho certeza que a mãe da menina do Distrito Dois não vai gostar. E que tenho certeza de que estão sendo reproduzidas para toda a Panem.

 Eu caio de joelhos na grama. A chuva parece mais fria agora. Tem algo estranho com ela, mas eu ignoro. Tudo o que ocupa minha cabeça agora é o canhão, o olhar de Ky antes de morrer.

  Ele parecia corajoso, não assustado como eu achei que ficaria.

  –Droga Ky. Droga. Você é idiota?

  Algum idealizador brincalhão sacode o chão, como se Ky me respondesse.

  -Você não foi fraco, Ky. Não mesmo.

  Sinto a mão de John sobre meus ombros e ele fala algo que não entendo.

  -Não quero ir embora, Turnit!

  -Anna, ela também está jogando. Pare de reclamar e seja útil!

  Ouço um zumbido vindo do nada. Agarro a gola da blusa de John e o puxo para baixo. Ele cai de costas no chão.

  Zum!

 Uma flecha zune sobre nós.

  Ele tenta levantar, mas eu o seguro contra o chão. Qualquer arqueiro sabe que não deve se aproximar muito. Vai assustar a presa. E, nesse momento, somos a presa. Conto até dois. E o puxo para cima, nos levantando e correndo para a floresta. A mala na frente do rosto, impedindo que o atirador me fira no rosto.

  Entramos na floresta e passos quase inaudíveis nos acompanham. Eu pego o nosso arco e flecha e o preparo, mirando no lugar de onde vem o barulho.

  -Recue. – Eu pronuncio.

  Ouço passos e finalmente estamos sozinhos novamente. Meu rosto está vermelho de tanto chorar e isso deve ter me dado uma expressão mais assustadora do que eu expressei.

  John abafa um riso.

  -Seu nariz está vermelho. – Ele diz, limpando meu rosto com a manga de seu casaco. Eu afasto sua mão antes que ele termine.

  -Vai embora, Turnit.

  -Eu também gostava dele, está bem? – Ele deixa uma lágrima escapar.

  Eu o encaro e percebo que está falando a verdade. Afinal eu preciso um pouco de um aliado.

  -Está bem. – Eu digo fria. – Vamos.

  Ponho-me a andar na direção oposta a Cornucópia. Lugar o qual não me trás nenhuma lembrança boa nem hoje nem nunca.

  Andamos por uma hora inteira sem pronunciar nenhuma palavra. É quando eu avisto um paraquedas caindo. É nosso. Olho para os lados e o pego.

  -O que tem aí?

  -Um papel. – Eu digo aturdida. Passo o papel para John. Ele o interpreta ao mesmo tempo em que eu. Nele, uma pomba branca voa num céu azulado, livre de nuvens. Ela carrega dois fios em sua boca, parecidos com fios atrás de uma TV. Um verde e um Vermelho.

  -Ele está livre agora. – John murmura.

  -Droga, Troy. Eu tinha parado de chorar.

  -Acho melhor descansarmos... Aqui está bom.

  -Descanse você então. Eu não vou parar de andar.

  -Para onde quer ir?

  -Para longe.

  A arena está muito cheia e pode ser que estejamos sendo ouvidos agora mesmo, então paramos de falar num acordo silencioso. Sento-me ao seu lado e, mesmo sabendo que não é seguro dormir ao relento, eu fecho os olhos e tento dormir, mas não antes de ver o rosto de Ky brilhar no céu projetado pela Capital. Ele parece tão comum, brilhando ali. Parece preocupado, mas agora sei que ele não está mais.

  Porque ele está morto. Longe das garras maléficas e mortíferas da Capital.

  Ele está são e salvo; Ele está livre agora.


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Notas finais do capítulo

Nós o saudamos, Ky Cab.