As Sete asas do Arcanjo escrita por Rafnir


Capítulo 3
O Advento do Arcanjo


Notas iniciais do capítulo

"E não se queixem, como alguns o fizeram, e por isso foram destruídos pelo Anjo da Morte"
1 Coríntios 10.10



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Grande estardalhaço foi feito acerca do ocorrido – não porque havia uma mulher assassinada dentro da Igreja de São Tomé, mas pelas manchas de sangue que decoravam o cenário do crime. Como Padre Jeremias já estava submerso no seu sono lânguido e profundo sono (fruto em parte de terrível ressaca), e as irmãs do convento que por ali se encontravam só faziam gritar e chorar desesperadas, os quatro padres italianos foram em busca de algum oficial da Lei para relatar o ocorrido.

Por ser uma pobre mendicante, e ainda por cima dada por louca, pouco ou nada fizeram a respeito, a não ser algumas rondas pela cidade, para ver se encontravam "algo suspeito".

- E agora, irmãos – suspirava o Padre Francesco, sentado aos pés da escada que serpenteava até o portal da igreja – Que faremos nós? Pouco ou nada estão dispostos a fazer pelo crime atroz que foi perpetrado esta noite…

- Não poderemos fazer mais nada pela mulher Eva – bufou o Padre Giuseppe, cansado – Não temos meios de encontrar o criminoso, e a criança que estava em sua companhia já foi dada como desaparecida… Uma noite correndo atrás do vento, se me permitem dizer.

Padre Mateo soltou uma longa gargalhada nervosa, jogando furiosamente sua cabeleira ruiva para trás. Como os outros não compreendessem o motivo de tal comportamento, ele pôs-se de pé e discursou:

- Irmãos, nada neste mundo obedece ao acaso: a morte de Eva foi-nos dada como sinal do alto. O criminoso não precisa ser encontrado, pois nunca se escondeu: está aí, às nossas vistas, irmãos, espreitando em nosso derredor. Quanto à criança, confio na Providência, que nunca nos deixa à mercê. E podemos, sim, fazer algo por esta mulher…

- Falas como um sábio que és, Fra Mateo – brincou Padre Giulio, num sorriso cansado – Diga-nos, o que tem em mente?

O jovem apenas sorriu mais uma vez, e conferenciou com seus demais irmãos, aos sussurros, em seu idioma natal. Quando o céu começou a se tingir de um tom purpúreo, os quatro levantaram-se e foram tratar de seus afazeres.

Enquanto as irmãs providenciavam a limpeza daquela ala da igreja (tingida com o carmim do sangue), e o Padre Jeremias providenciava sua mudança entre uma dose de pinga e outra, os quatro florentinos chamaram a si o coveiro responsável pelo cemitério da igreja e ordenaram uma cova livre, pois tinham pressa em realizar um enterro.

- A esta hora…? – indagou, bocejando – Bom, ninguém escolhe quando morre, não é mesmo, monsenhores? Mas, digam, têm preferência por algum lugar? Felizmente, não recebemos tantos hóspedes por aqui, se me entendem…

Os quatro padres perscrutaram com os olhos toda a extensão do cemitério, procurando por algo cuja natureza o coveiro ignorava. Foi quando o Padre Francesco, em um meio sorriso, apontou para uma das últimas lápides do terreno.

- "Lúcia Sant’Anna Roscelli"? Alguma parenta do defunto? – indagou o homem, coçando os olhos vermelhos de cansaço.

- Todos somos irmãos em Cristo, e filhos de Deus – sentenciou Padre Giulio, solene – A pobre jovem há de ser enterrada ao lado desta lápide. Bom, senhor coveiro, faça os preparativos para o enterro. Aquele corpo pertence à terra, e a ela deve ser entregue…

O coveiro, confuso, balançou a cabeça em sinal afirmativo e partiu em busca das ferramentas necessárias para seu trabalho. Enquanto isso, os quatro Padres dirigiam-se para a Igreja, a fim de pôr em ordem certos assuntos pendentes.

Passaram grande parte da manhã dentro do Escritório Paroquial, consultando livros e mais livros, e fazendo uma série de anotações e observações. Passadas algumas horas neste labor incansável, eis que chega a Irmã Rosa:

- Com licença – ia dizendo, enquanto entrava na sala e ia tomando a bênção aos Padres – O coveiro disse que está tudo pronto… Ignoro qual seja a natureza do assunto, mas disse que estava a serviço dos senhores. Pediu que fossem ao cemitério assim que pudessem.

- Agradeço o favor prestado, irmã – disse Padre Francesco, retirando o rosto gentil e sorridente detrás de uma pilha de livros empoeirados – A propósito, não queria tratar conosco de algum assunto pendente da paróquia…?

- Sim, sim, de fato – disse, num sorriso – Sobre certos aspectos do Convento de Santa Lúcia… Mas vejo que os senhores estão ademais ocupados no momento. Eu poderia…

- Mas de jeito nenhum, Irmã Rosa – suspirou Padre Mateo, pousando a mão gentilmente no ombro da freira, que já estava à porta – Estávamos mesmo discutindo a respeito disto… Peço somente que espere um pouco mais, pois há assuntos mais urgentes dos quais devemos tratar.

Irmã Rosa virou-se lentamente, um pouco corada. Ficou encarando o jovem Padre que ainda estava com a mão delicadamente pousada em seu ombro, sorrindo. Ela balançou a cabeça timidamente, concordando. Fez uma última reverência e deixou o aposento.

- Bom, isso mostra a que ponto as coisas chegaram – rosnou Padre Giuseppe, numa gargalhada seca.

- Deus trabalha de maneiras inimagináveis através de seus servos, Fra Giuseppe – rebateu Padre Mateo, num sorriso malicioso – Mas deixemos estes assuntos de lado, ao menos por ora… Afinal, devemos honrar o "cinzas às cinzas, pó ao pó".

Os demais concordaram. Organizaram-se em pouco tempo, trancaram o recinto a chave e partiram para o cemitério.

Foi uma cerimônia curta, porém nobre. Cada Padre, falando em sua língua natal, fez uma breve prece pela alma da jovem, intercedendo por seu retorno aos braços de Deus. Ao final do enterro, o corpo já soterrado sob o monte de terra, o coveiro indagou o que seria gravado na lápide.

- "Aqui jaz Eva, filha de Deus, vítima da maldade deste mundo" – sentenciou Padre Francesco, sério – Agradecemos todos a sua prontidão e presteza neste trabalho. Deus te abençoe.

O coveiro, que custara a entender que era ele o alvo destes agradecimentos, fez uma mesura e pediu a bênção aos quatro. Findas as formalidades no cemitério, voltaram para Igreja, para continuar seus afazeres.

Os corredores exalavam um cheiro forte de limpeza, fruto talvez da tentativa frustrada das freiras de remover aquela quantidade exorbitante de sangue derramado. Mas, ainda assim, duas manchas perseveraram – a poça em frente ao quarto no qual os padres dormiram, e a frase gravada na parede adjacente. Esta fora oculta por um largo retrato de São Judas Tadeu, e aquela fora escondida por um amplo e felpudo tapete, que destoava um pouco do ambiente.

Chegando ao escritório, desta vez trancaram-se por dentro, e recomeçaram seus afazeres. Padre Mateo estava consultando pesados volumes do histórico de missas e celebrações religiosas, histórico este que tendia a ficar sempre mais vago e corrido à medida que as páginas passavam; Padre Francesco consultava um grosso e poeirento livro, a relação de nascimentos e óbitos pela qual a igreja passara; Padre Giuseppe consultava os relatórios da tesouraria (que, ao que parecia, tinha o dom da multiplicação do dinheiro – e do desaparecimento do mesmo, em certas ocasiões); e Padre Giulio consultava algumas anotações do punho dos padres anteriores, que já encabeçaram aquela paróquia.

Várias horas depois, quando finalmente deram por terminado o serviço, resolveram fazer a refeição do meio-dia:

- Bom, ao que parece poderemos almoçar sem peso na consciência – disse Padre Mateo, zombeteiro, enquanto caminhavam da sala onde trabalhavam ao refeitório das freiras. Como ainda não estavam hospedados na Casa Paroquial, as freiras convidaram-nos a fazer as refeições em companhia delas neste meio tempo.

- Não diga asneiras – bufou Padre Giuseppe, seco – Como não ficaremos com peso em nossa consciência…? Acaso não és também pecador, Fra Mateo?

Padre Mateo ficou sério de imediato. Encarou os outros três por mais alguns instantes, e depois deu um leve sorriso e prosseguiu, sereno:

- Me referia à organização de nosso escritório, Fra Giuseppe. Acho que quem precisa tomar cuidado é você, pois na situação que estamos seus lapsos não vão ajudar muito…

Os dois trocaram um olhar tempestuoso, mas Padre Giulio adiantou-se:

- É melhor pararem com essa troca de injúrias, irmãos. Não viemos aqui para isso. Lembrem-se de nossa missão nesta cidade…

- E além do mais – complementou Padre Francesco, coçando os alvos fios de sua barba – Não é bom discutir sobre negócios à mesa. Por hora, vamos nos concentrar somente na deliciosa refeição que as irmãs estão preparando.

Os demais concordaram, em silêncio. Mais alguns passos, e chegaram ao refeitório. As poucas freiras ali presentes correram por tomar a bênção aos padres, e rapidamente guiaram os quatro à uma mesa ricamente decorada e fartamente composta. Em uma mesa mais afastada, as irmãs tomavam seu singelo almoço.

Finda a parcimoniosa refeição, os Padres foram informados de que Padre Jeremias já estava de partida e queria despedir-se. Foram então até a casa paroquial, onde o sacristão já os aguardava:

- Padre Jeremias está ali na sala, esperando os senhores. Entrem, por favor – e deu passagem aos quatro florentinos.

Cada qual cumprimentou o jovem à sua maneira, e um a um, chegaram à sala, para encontrar um Padre Jeremias cercado por algumas malas e levemente embriagado.

- Soubemos de sua partida, Padre Jeremias – disse Padre Giulio, adiantando-se – Que Deus o abençoe em seu novo lar.

Padre Jeremias demorou um pouco para focar as órbitas avermelhadas na figura imponente de Padre Giulio. E quando o fez, foi para precipitar-se sobre ele num abraço desengonçado.

Os quatro Padres se entreolharam, sérios, enquanto Padre Jeremias, ainda agarrado à cintura de Padre Giulio, disse, numa verborragia típica das pessoas naquele estado:

- Vocês… São os melhores. Eu amos vocês… Vou lembrar de cada um de vocês bem aqui – disse, entre soluços, batendo o indicador no próprio peito – Vou lembrar de vocês todos, é sim, e essa cidade vai ficar aos cuidados dos melhores sujeitos que eu já conheci. Aos melhores sujeitos!

Enquanto Padre Jeremias bradava "Aos melhores sujeitos", os demais Padres foram carregando suas coisas para a estação, enquanto o sacristão tentava arrastar o pobre e tonto padre pelas ruas da cidade.

Muitas pessoas olharam com curiosidade para os quatro Padres que carregavam as malas, mas ignoravam completamente Padre Jeremias que, ainda cantarolando "Aos melhores sujeitos", era arrastado pelo pobre sacristão. Os quatro florentinos iam caminhando adiante, nobres e silenciosos, enquanto o desengonçado sacristão e o tonto Padre Jeremias seguiam atrás, entre tropeções e escorregões.

Basta dizer que, assim que chegaram, o trem apontava na distância. Instantes depois, Padre Jeremias já estava em seu lugar, roncando tão alto que as pessoas próximas lançavam um olhar de desprezo ao inválido e mudavam-se para o mais longe possível dele. Enquanto isso, o sacristão e os demais Padres guardavam as bagagens.

- Garoto – interpelou Padre Giuseppe, num aceno – Queremos lhe pedir um favor. É a respeito do Padre Jeremias.

O jovem bufou longamente de cansaço, passou a mão pela testa suada e dirigiu-se à Padre Giuseppe.

- Sim…? O que posso fazer pelos senhores?

- Haja vista as circunstâncias na qual se encontra – disse Padre Francesco, olhando de soslaio para a janela do Padre Jeremias, que roncava preguiçosamente – Não é aconselhável que Fra Jeremias viaje sozinho.

- Na viagem que ele está prestes a fazer – emendou Padre Mateo, pondo o braço por cima dos ombros do rapaz – Nós achamos melhor ele ter sua companhia.

O jovem suspirou, indeciso, oscilando o olhar dos quatro Padres que o fitavam para o Padre Jeremias, que já dormia a sono alto. Pensou melhor, e concordou com a proposta. Nunca saíra de Santa Lúcia mesmo, e aquele seria o último serviço que faria para o beberrão do Padre Jeremias. Era bom ganhar a confiança dos novos Padres o quanto antes, pensou.

- Tudo bem, monsenhores. Mas, não tenho dinheiro para a passagem. Será que…

- Aqui está todo o dinheiro de que precisa – disse Padre Giulio, enquanto pousava na mão do sacristão algumas moedas – Agora vá, meu jovem: você e Padre Jeremias têm uma longa viagem pela frente… Que Deus os guarde no trajeto!

O rapaz tomou a bênção aos Padres, num meio sorriso. E então, quando a locomotiva deu o primeiro apito, o sacristão pulava no trem e, apresentando sua passagem ao bilheteiro, correu para se assentar ao lado de Padre Jeremias, tentando amenizar um pouco a situação embaraçosa na qual se encontrava…

Quando o trem desaparecia ao longe é que os quatro Padres puseram-se a caminhar de volta para a Igreja. Quando já podiam avistar a construção alquebrada e soturna ao longe, Padre Giulio disse:

- Creio que agora seja um momento oportuno para dividir-nos em nossas tarefas, irmãos…

- Não poderia ter dito melhor, Fra Giulio – disse Padre Mateo, num largo sorriso – Suponho então que eu deva rumar para o Convento Santa Lúcia…?

- Exato – confirmou, também sorrindo – E você, Fra Giuseppe, vá à Casa Paroquial e prepare nossas coisas. Gostaria de mudar-me para lá ainda hoje, se possível for…

- Farei o possível dentro de minhas forças, irmão – disse, numa reverência quase que marcial. Como Padre Mateo já se dirigia ao convento e Padre Giuseppe já andava a passadas longas e firmes para o novo lar daquele quarteto, Padre Francesco olhou timidamente para o outro, esperando uma ordem.

- Fra Francesco, se você pretende começar seu trabalho com as almas carentes e abandonadas na Casa de Saúde, tem a minha bênção – murmurou Padre Giulio, que assustou-se de ainda ver o outro ali por perto.

- E você, meu irmão, vá cuidar desta igreja há muito esquecida… E que Nosso Senhor o guie em sua tarefa.

Ambos trocaram um cumprimento, e separaram-se.

Para resumir esta parte da história (que não oferece muitos detalhes importantes), basta saber que os quatro Padres mudaram-se para a casa paroquial ainda naquele dia e colocaram em prática suas obrigações: Padre Mateo tornara-se diretor do Convento Santa Lúcia, e organizara da forma devida as estruturas acadêmicas e religiosas daquele espaço; Padre Francesco cuidava dos inválidos e doentes da Casa de Saúde São Tomé, tentando melhorar (até onde suas capacidades permitiam, o que não foi pouco) a situação daqueles que ali buscavam abrigo ou cura para seus males; Padre Giuseppe pôs toda a Casa Paroquial na mais sublime ordem, limpando-a e reformando alguns recantos semi-destruídos daquela construção, e também cuidava das refeições ali feitas e da arrumação da casa, sempre que necessário; e Padre Giulio, este cuidou para reerguer das cinzas aquela paróquia, cuidando não somente do espaço físico da Igreja, mas também de seus alicerces espirituais.

Um trabalho glorioso, o que os quatro Padres fizeram. Os poucos que se dignavam a reparar neste trabalho, ao menos, assim pensavam. Mas, infelizmente, parece que a maldição do frade (o que fora tutor da própria Lúcia) era mais forte que a perseverança e a fé daqueles quatro florentinos: pouco ou nada a cidade fazia para abandonar as trevas que envolviam os corações de seus habitantes. Mas isso não desanimava os Padres, pelo contrário, levava-os a darem mais de si por aquela cidade.

Quase uma década já havia se passado sem maiores novidades. Sobre Padre Jeremias, o Destino finalmente clamara para si a vida daquele velho beberrão (bem como a do jovem sacristão): o trem sofrera um assalto durante sua viajem, e como Padre Jeremias estava por demais bêbado para colaborar, e o jovem sacristão tentava em vão controlá-lo, os bandidos resolveram dar cabo daqueles dois o quanto antes. Em Santa Lúcia houve uma humilde missa pela alma dos dois, e o luto fora mais humilde ainda.

Entretanto, as coisas não haveriam de continuar as mesmas por muito tempo: depois de tantos anos desde sua chegada a Santa Lúcia, em uma noite fria e sem estrelas de inverno, os quatro Padres, que até então dormiam tranqüilamente em suas camas, acordaram todos num sobressalto conjunto. Pálidos, ofegantes e com as órbitas arregaladas, ficaram um bom tempo encarando-se na escuridão do quarto, quando Padre Giuseppe acendeu uma lamparina, lívido como mármore:

- Vocês… Também viram, não viram? – indagou Padre Mateo, ainda tremendo um pouco por debaixo do lençol.

- Creio que sim, irmão… Mas, não acham que foi um pouco súbito? – respondeu Padre Francesco, limpando na barra das mangas o suor que chovia de sua alva cabeça.
Puseram-se então a olhar para Padre Giulio, que até então se mantivera no recato, ruminando.

Vendo que nada falaria, Padre Giuseppe disse, num sussurro rouco:

- Fra Giulio, creio que você deve tomar as rédeas desta situação. Afinal…

- Sim, eu sei disso – ralhou, sério – Mas não esperava que isso acontecesse tão de imediato… Se ao menos tivesse mais algum tempo ao nosso favor…

- Nós tivemos o tempo suficiente, Fra Giulio, uma década inteira, para ser mais preciso. É chegada a hora de aceitarmos a Vontade Soberana e agir conforme os planos de Nosso Senhor.

Padre Giulio concordou, sério. Os demais então acalmaram-se um pouco, mas ainda ficaram se encarando sob a luz fosca da lamparina. Passaram assim algum tempo, quando Padre Giuseppe apagou a lamparina e disse, deitando-se novamente:

- Bom, irmãos, não podemos ir contra a maré do nosso destino. Vamos voltar a dormir. Afinal, fomos intimados a aparecer na casa da família mais abastada e influente de Santa Lúcia das Sete Dores…

Os demais concordaram, e Padre Mateo ainda soltara uma risadinha nervosa e seca antes de dormir. Tiveram no restante da noite um sono inquieto e leve, como já era de se esperar. Desde que puseram os pés naquela cidade ansiavam por aquele momento, e não podiam deixar de se preocupar com o assunto concernente àquilo. Afinal de contas, por mais que pusessem suas almas em seu trabalho, sabiam muito bem que a missão deles não era lavrar as almas daquela terra – mas sim prepará-las…

A família em questão era a nobre e poderosa família Cruz. Seu patriarca, o Sr. Inácio Santos da Cruz, era descendente de imigrantes europeus, que vieram para Santa Lúcia a fim de fazer dinheiro com o plantio do café. O próprio povo da cidade às vezes referia-se ao poderoso agricultor como "O Barão", em homenagem aos grandes vultos do café que surgiram na história do país – e ainda talvez surgiriam.

O Sr. Inácio era viúvo, tendo sua senhora morrido ao dar à luz sua filha mais jovem (uma pequena temporã). Possuía duas filhas, duas belas e virtuosas filhas. A mais velha, Aurélia Barros da Cruz Alcântara, estava em Paris com o marido, nativo daquela região; raramente voltava ao país, e como era de se esperar, suas visitas tornavam-se mais e mais escassas. A outra, a mais nova, chamava-se Maria Barros da Cruz Arcanjo, e mudara-se com o marido para a capital, onde rapidamente se instalaram.

Mas, se assim o era, podem outros pensar que a casa do "Barão Inácio" era vazia e deprimente: enganam-se. Sempre cheia de vários amigos e demais convivas do velho agricultor (pois este, nos dias de sua mocidade, havia batalhado na Guerra do Paraguai). Naquela mesma casa, morava sua neta, a filha de Aurélia. Uma menina robusta e belíssima, o encanto da cidade.
Possuía um cabelo dourado como o sol de uma manhã de verão, as faces coradas como uma rosa ainda em botão, olhos verdes e profundos como as praias do sertão – e, na opinião de algum de seus pretendentes, um busto farto e curvilíneo como as serras do Jordão. A menina, que ia pelos seus 16 anos, ainda morava com o avô por duas razões básicas: era nova demais para morar com os pais, quando da viagem destes para a França; e segundo, pois os pais (e também seu zeloso avô) gostariam que ela antes "se arranjasse" por ali, para então deixar o país – como a mãe o fez.

Por ter sido criada na ausência dos pais, estando sempre sob as asas de seu avô (que sempre a chamava de "meu anjo dourado"), era de se esperar que a senhorita Adelaide da Cruz Alcântara crescesse uma menina um tanto quanto mimada. Quando não estava no Convento Santa Lúcia (pois lá estudava), estava em casa, na frente de seu toucador, embelezando-se, ou se já isso havia feito, ia para a varanda do casarão de seu avô, juntamente com sua mucama, para a aula diária de costura (pretexto que arrumara para ficar "à mostra", como costumava dizer). E quando não fazia nenhuma dessas coisas, estava a pedir mimos de seu avô, que a todos realizava com destra rapidez.

Dos outros membros que constantemente ficavam na casa, dois merecem especial atenção: o Sr. Deodato Alves Goullart, que batalhara ao lado do Sr. Inácio na Guerra do Paraguai, e desde então eram grandes amigos – tanto que se mudara para Santa Lúcia a convite do Barão, e tornara-se padrinho da pequena Adelaide. A outra figura era a madrinha da pequena princesa, a Sra. Violante Bragança Duarte, uma viúva bonachona que mimava sempre que possível a afilhada. Por algum tempo foi do interesse matrimonial do Sr. Inácio, sendo ambos viúvos e consideravelmente ricos (dentro dos padrões de Santa Lúcia). Como há muito o assunto não era tratado em aberto, findaram-se os mexericos e as suposições acerca do "casamento".

Naquela manhã, Adelaide já havia se retirado para seus estudos no colégio das freiras, estando o velho combatente a conversar com seu amigo Deodato, enquanto tomavam um café passado recentemente. Por obra do acaso, Padre Mateo havia sido chamado urgentemente ao convento, Padre Giuseppe cuidava de certos serviços inadiáveis na Casa Paroquial, e Padre Giulio cuidava de certos assuntos na Tesouraria da Igreja de São Tomé. Sendo assim, Padre Francesco fora pagar as honras da visita.

- Ora essa, não faça cerimônia, Padre: deixe isso para a missa de domingo – brincou o fazendeiro, vendo a figura miúda e tímida subir os degraus da varanda. Uma criada adiantou-se para abrir a porta ao Padre, e tomar-lhe a bênção. E nisso fora seguida por Deodato e Inácio.

- Pensei que os demais também viriam – murmurou Deodato, um tanto quanto decepcionado, enquanto bebericava sua xícara de café com pinga. Inácio fez sinal ao Padre para se sentar, aparentemente tão decepcionado quanto o outro.

- Peço perdão pela ausência dos demais, digníssimos senhores – disse, num largo sorriso sob a barba alva, enquanto ajeitava a batina para se sentar na alta poltrona – Mas nessa manhã meus irmãos foram levados a assuntos de uma natureza inadiável. Espero que entendam, e que não vejam nisso uma descortesia de nossa parte…

- De forma alguma! – bradou Inácio, bonachão – Afinal, é uma honra ter em minha mesa o Padre que batizou meu anjinho dourado e o homem que a segurou no momento do batismo.

- Agradecido, senhor Inácio: sabes que tenho grande estima pela menina… Mas, em nome de meus irmãos, gostaria de indagar-lhe o motivo desse chamado súbito à vossa casa. Notei certo ar de urgência na mensagem, mas posso ter me enganado…

Inácio sorriu, um riso quase que invisível sob os grossos bigodes. Havia feito uma boa escolha ao decidir pelos Padres para cumprir a tarefa que havia pela frente. Nada escapava àqueles italianos, pensou.

- De fato, Padre, há certa urgência. Não sei se sabes de minha filha mais nova, que morava na capital com o marido…

- Recordo-me vagamente da história, Sr. Inácio.

- Pois então – disse o velho, enquanto estendia para o Padre um pequeno envelope.
Era um telegrama, bem seco e corrido. Padre Francesco passou um longo tempo contemplando as letras miúdas no papel, quando finalmente levantou a calva cabeça e, num ar solene, murmurou:

- Meus pêsames, Sr. Inácio… Deve ter sido uma grande perda para o senhor.

- Na verdade não – disse, levantando-se de súbito – Maria sempre fora muito rebelde dentro desta casa. Talvez a culpa seja minha, mas o gênio dela sempre foi um problema. A última correspondência que mandou data de aproximadamente 8 anos atrás. Espero que o senhor não tenha uma má impressão da minha parte, Padre.

- De modo algum, Sr. Inácio. Mas, lembre-se de que até o filho pródigo obteve o perdão do pai…

- E ela também obterá o meu, Padre Francesco, e é por isso que preciso do senhor e dos demais padres. Maria e o marido, um tal Gabriel Arcanjo, tiveram um filho na capital. O guri deve estar na casa dos 7 anos agora… Está numa casa para menores, já que ninguém da família apareceu para revogar a criança. Gosto de pensar que esta é a minha oportunidade de perdoar os pecados de minha filha, não concorda?

Padre Francesco ficou pálido por um longo tempo, conturbado. Inácio e Deodato ficaram a admirá-lo por algum tempo. Então, era isso… Finalmente o destino dos quatro irmãos chegava ao seu propósito derradeiro, pensou o Padre com seus botões. Mas a emoção que acelerava seu coração ainda era grande, e pôde somente mirar seus olhos fundos e agitados para o fazendeiro e indagar, num sussurro quase inaudível:- Qual o nome de seu neto, Sr. Inácio…?

- Eleazar – respondeu, surpreso com a pergunta – Eleazar da Cruz Arcanjo.


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