Olhos De Sangue escrita por Monique Góes


Capítulo 4
Capítulo 3 - Estranheza




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        Eu estava andando bem devagar. Em comparação ao meu passo normal, eu estava, mas agora que Raquel estava me seguindo, mas mesmo eu tendo reduzido meu passo ao máximo que consigo, ela ainda estava alguns passos atrás de mim, mas ela não reclamava, e nem parecia estar chateada.

        Já estava entardecendo, e já haviam se passado dois dias desde que eu havia a encontrado. A neve derretia muito rapidamente, o inverno acaba rápido neste continente.

       Acredita-se que Darneliyan seja o único continente no mundo conhecido, e ele é extremamente extenso. Tem cerca de 68 regiões do tamanho de países, sendo que ao extremo norte é repleto de neve, e só tem em média 90 dias com sol visível por ano, enquanto ao sul predomina o clima tropical e quente. Tem até desertos em alguns lugares.

       Nós não somos exatamente do mundo que é chamado “Terra”, embora a conheçamos. Nós nos consideramos apenas... De outra dimensão. Pois, em cada uma das sessenta e oito regiões, há apenas uma coisa que chamamos de “portais dimensionais”. Se alguém quiser ir para a Terra para passear, passar férias ou até mesmo migrar – o que ocorre, mas é mais raro. – é só atravessar um deles, e pronto, já está na Terra.

        Também temos que tomar conta destes portais, tentando ao máximo impedir que monstros passem por eles, e isso também nos coloca com num certo ranking.

        O que for considerado mais fraco da Ordem ganha o portal menos movimentado do continente, ao extremo norte, e ganha o número 68. O mais forte acaba ganhando o mais movimentado e recebe o número 1.

        Atualmente, eu porto o número 9.

        Se bem me lembro, o número 68 atual é um cara atarracado chamado Maurice, e o número 1 é uma garota chamada Liana. Só a vi uma vez, mas me lembro que ela era bonita, de cabelo curto e cacheado, pouco abaixo do queixo.

        Um ruído audível me alarmou, mas depois fui me lembrar que Raquel se cansava mais rápido do que eu, portanto, a energia dos seus alimentos era queimada mais rápido.

        Peguei a mochila, abri-a e tirei o pacote de bolachas – que estava na metade - e o entreguei a Raquel.

        - Pode comer o resto se quiser. – disse.

        - Obrigada. – ela disse.

        Continuamos a andar, essa era basicamente a rotina. Andar o máximo que se pode – ou ela pode – comer, beber água, fazer necessidades se precisar, andar de novo, armar uma espécie de acampamento e dormir.

        Nenhum outro monstro apareceu, o que era reconfortante. A neve das árvores derretia aos poucos, os pássaros começavam a sair de seus ninhos, assim como outros animais de suas tocas.

         Já estávamos nas últimas horas da tarde, e o crepúsculo já estava se acabando, portanto, tinha que procurar um lugar para passar a noite.

         - Eu vou tentar andar mais devagar. – avisei. – Já que está anoitecendo, fica mais fácil para você se perder, então fique mais próximo de mim.

         Ela murmurou algo, mas pude escutá-la se aproximando de mim, ou melhor, eu me aproximando dela, enquanto a noite surgia ainda mais rápido do que esperava.

         Acabei encontrando uma clareira - que milagrosamente - limpa, já sem neve, que dava para passar a noite. Agora era achar alguns galhos para fazer uma fogueira. Falei para Raquel fazer um círculo de pedras, enquanto eu achava alguns galhos que, milagrosamente, estavam secos.

          Risquei um palito de fósforo, e ateei fogo na lenha, iluminando e esquentando o local, com cuidado, verificando se não havia nada que pudesse por descontrolar as chamas.

          Comecei a procurar na mochila os restos do coelho que havia pego no almoço. Era o suficiente para nós dois ficarmos cheios, mas teria de esquentá-lo no fogo, pois ainda estava cru e guardado no plástico (que na falta de outro, precisaria ser lavado.). Enquanto eu pegava mais alguns gravetos para colocar o coelho, ouvi Raquel começar a cantar baixo, provavelmente só para si, mas eu conseguia escutar.


          “Anjo guerreiro, que do escuro formou-se.

          Diz-me teu nome e guerreiro tornou-se

          Não fique triste, estou tão bem

          Que você surgiu ao meu lado também.

         

          Anjo ou guerreiro, por onde estavas?

          Na escuridão onde a noite acaba?

          Se tu viste é porque és meu anjo?

          Não! Por favor, não se vá estranho anjo.

          

          Durante a noite que cai aos meus pés

          Tua que sabe fazendo refém

          Teu coração tão puro que

          Faz de conta que ele não bate aqui.

                

          Nos teus olhos eu vejo o luar

          O teu cheiro eu sinto no ar

          Meu coração ferve diante de tal beleza

          Eis aqui diante a minha fraqueza.

         

          Leve contigo, um pouco de calor

          Nessas entrelinhas que canta com fervor.

          Deixo contigo uma flor

          Entre as pétalas, um beijo de amor.”

                                                              

          Ela terminava esse último verso e começava novamente e a essa altura, a noite havia chegado realmente, trazendo consigo os sons dos animais noturnos.

          - Que música é essa? – perguntei, quando ela terminara novamente, cutucando um pouco o coelho que estava assando.

          - Eu não sei o nome, mas meu pai me ensinou ela quando eu era pequena.

          - Não esqueceu mais depois disso.

          - A música é mais longa, porque conta a história de alguém, mas o resto eu esqueci.

          Reprimi o riso com a expressão meio culpada que fez.

          - Não se culpe por isso. Eu não lembro quase nada que cantavam pra mim quando era pequeno. – comentei, dizendo a verdade.

          - Nada?

          - Nada. – afirmei. – E olha que de vez em quando a minha mãe cantava pra minha irmã quando estava por perto. Mas nunca gravei realmente.

          - Você tinha uma irmã?

          - Acho que o certo é dizer que tenho. Ela deve ter sua idade.

          - Você é um dos que foram vendidos?

          Suspirei.

          - Sim. Minha família está viva, ou assim eu acho.

          - Minha cidade foi atacada por ladrões. Aí meu pai morreu lá.

          Ataque de ladrões? Era tão raro que diziam que ocorriam de uma vez a cada 20 anos. Uma coisa então me deixou curioso.

          - Er, Raquel, qual era o nome da sua cidade?

          - Crimstor. Por quê?

          Um calafrio passou por mim. Aquela cidade fora a mesma em que eu pensara.

          - Bom, quando eu tinha uns onze anos, estava por perto de uma cidade que foi atacada por ladrões... Depois me disseram que era Crimstor.

          - O que você tava fazendo por lá?

          Suspirei, formulando a resposta e tirando o que eu queria evitar.

          - Eu tinha fugido da ala de treino lá da Ordem com o Hideo. A gente acabou passando uma noite perto de Crimstor quando ocorreu o ataque.

          Girei um pouco o coelho para que não assasse apenas de um lado.

          - A sede da Ordem fica muito longe de Crimstor, se eu me lembro. – ela comentou.

          - E é. Nós passamos uns meses perambulando fora dela até que nos pegassem de volta.

          - Ah... E quem é “Hideo”?

          Quase bati em minha própria testa por não ter explicado quem era o Hideo antes de falar aquilo. Ou tê-lo omitido da resposta.

          - Hideo é o meu irmão. Ele foi levado pra Ordem junto comigo.

          - Ah. Ele é mais velho ou mais novo?

          - Mais velho em questão de alguns minutos. – respondi. – Somos gêmeos.

          - Idênticos?

          - Idênticos. – repeti, fazendo da pergunta dela minha resposta.

          Tirei o coelho do fogo, repartindo-o para nós dois, e ela logo começou a comê-lo, enquanto eu, apesar de estar segurando o meu pedaço, fiquei um tempo brincando em silêncio com um graveto em chamas, só parando quando ameaçou começar a queimar meus dedos.                                          

          Comecei a comer então, sem pensar em muita coisa. Quando terminei, dei o saco de dormir a Raquel quando ela aparentou sono, e logo ela adormeceu. Mesmo tendo reduzido consideravelmente o meu passo, deve ser difícil tentar acompanhá-lo o dia todo.

          Levantei e escalei uma árvore, só para ter uma visão melhor, caso algo aparecesse. Dentro de um buraco oco no tronco, tinha, pelo que eu podia ver, um ninho de corujas, os filhotes estavam piando de maneira insuportavelmente aguda, porém, impaciente e chorosa. Verifiquei e deu pra ver a mãe lá dentro, e ela me olhou com uma expressão de “se você chegar mais perto, vai ganhar a bicada da sua vida!”. Me mantive no meu lugar só por precaução, e um bom tempo depois, vi uma coruja – que presumi ser o pai da ninhada – com meia dúzia de ratos no bico. Para evitar bicadas desnecessárias, desci da árvore antes que ele se aproximasse mais.

          Peguei minha mochila, e estava me preparando para usar ela como travesseiro, quando senti uma Aura. Mas essa era diferente, era “quente”, ou seja, era de um guerreiro. Tinha um gosto que me lembrava chocolate, e eu soube que era Hideo. Parecia que ele havia recebido uma missão também.

          Dei uma olhada e parecia que Raquel dormia pesadamente, então decidi ir dar uma olhada, pois sentia que ele estava meio afastado. Adentrei a floresta então, seguindo na direção de sua Aura.

         Quando já estava no meio do caminho, comecei a perceber algo estranho. Sua alma estava, literalmente, pulsante, em vez de manter-se em um só nível. Ela ficava normal, e depois se contraía. Apressei o passo, pois aquilo não me deixara curioso, mas sim, preocupado.

         Já estava próximo, quando uma coisa mais estranha veio. Estava frio. Não o frio normal, como deveria estar o ambiente, mas um frio sinistro, que parecia poder congelar qualquer coisa, até a alma. Um calafrio mais do que sinistro percorreu minha coluna, e parecia que cada sentido de meu corpo gritava, não, berrava e exigia, que eu desse meia volta e saísse dali o mais rápido que podia. Foi exatamente por isso que continuei. Faltava bem pouco, sua Aura já estava bem mais próxima, e já conseguia sentir o cheiro de Hideo.

         Escorreguei e caí, fazendo-me soltar impropérios, só então percebendo que a grama não estava com neve, mas sim, completamente congelada. Cada tufo brilhava na luz fraca da lua como se fossem diamantes, pareciam ser completamente feitas de gelo, se não fosse o fraco verde em seu centro, sinalizando que aquilo não podia ser natural.

         Com cuidado – além de um pouco atrapalhado – levantei, e escutei algo. Pareceu tanto um choramingo quanto um gemido de dor, e sem dúvida aquela era a voz de Hideo, mesmo que não tivesse dito nada. E eu soube imediatamente que havia algo errado. Eu nunca ouvira-o chorar, desde quando, ainda crianças, havíamos começado a ter um pouco de consciência das coisas.

         Ele estava sentado atrás de uma árvore que bloqueava parcialmente minha visão, e não se virou, mesmo com a grama congelada fazendo muito barulho sob meus pés. Aquilo estava cada vez mais estranho, e me dava uma sensação sinistra.

         - Ei Hi... – comecei quando me aproximei o suficiente dele, porém, não terminei a frase.

          Subindo sobre ele, estava algo que não consegui identificar. Era completamente negra e brilhante, tanto que parecia ser polida ou envernizada, talvez ambos juntos. Aquilo, seja lá o que fosse, estava subindo sobre ele. A coisa já estava chegando ao seu rosto, que estava escondido entre as mãos, e também já subia por seus braços.

          - Mas o que diabos... Hideo! – chamei, bem alto na verdade.

          Ele pareceu não me escutar. Não demonstrou nada quanto ao ato de me escutar e reagir.

          - Hideo! – chamei novamente, dessa vez pegando seus ombros, pretendendo balançá-los para que me escutasse.

          Essa foi a besteira que fiz.

          No momento em que toquei seus ombros, a coisa começou a subir por minhas mãos. Imediatamente, soltei seus ombros, porém, a coisa simplesmente continuou, mantendo-se ligada entre mim e Hideo. Era mais fria do que eu pensava. Parecia queimar, de tão gelada que era. Continuou subindo mais e mais, e não conseguia me mover.

         “Você novamente...”

          Aquela voz feminina soou em minha mente, mais fria até do que a coisa, se é se isso era possível.

         “Você há milênios tem o prazer de tê-lo consigo, por que não o divide comigo?”

        O quê?

         Não tive muito no que pensar depois disso. A coisa começou a apertar dolorosamente cada parte sua que cobria meu corpo. Não conseguia emitir nem um gemido de dor sequer. Algo me dizia que meu sangue estava escorrendo, e foi então que escutei. Não foi aquela voz novamente. Não, foram as vozes das pessoas que, com certeza, já foram ou são importantes pra mim. Amigos e parentes. Conseguia escutar nitidamente as vozes de meus pais, minha irmã, amigos que ficaram para trás, todos. Mas não eram palavras doces. Eram gritos de dor, culpa, raiva, ódio, tudo ao mesmo tempo. Minha cabeça iria explodir se isso continuasse, até que um último grito rasgou meus ouvidos.

         “Não vou perdoar isso!”                                                

         O grito final de Lúcio.



                            



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Notas finais do capítulo

Créditos à minha amiga Anita Flexa por ter escrito a música (inteira, falta um pedaço) e à Tamires Antonussi por ter me dado o nome Darnassus ao continente em que se passa a história. Mas como Darnassus é o nome de uma cidade do jogo WoW, eu tive de inventar um novo nome. O que acham de Darneliyan?