Destino Londres escrita por Mavros Lefko


Capítulo 1
Capítulo 1




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/201272/chapter/1

Frio. Percebera que o cobertor estava no chão, enrolado ao lado da cama. Tentou se levantar, porém a intensa dor de cabeça lhe fez desistir da idéia. Não deveria ter tomado àquela cerveja no pub na noite anterior. Voltou para o travesseiro, olhando para a janela do quarto, embaçada pela chuva lá fora. Mesmo assim sabe que não iria conseguir ver nada, afinal o fog londrino não iria lhe permitir. Ainda era terça feira. Ainda era dia quatro. Mantinha o olhar no quadrado cinza na parede, com os pensamentos voando longe, até que uma imagem surge: O rosto dele. Um pequeno sorriso se abre em seus lábios ao se lembrar dos cabelos azuis que contrastavam com a pele clara, tão diferente da sua, queimada nas praias gregas pelo sol mediterrâneo.

  Contra sua vontade decidira que era hora de levantar. Novamente estava atrasado para o trabalho. “Eles se viram sem um obituarista”, pensava enquanto esquentava a água para o chá. Trabalhava há dois anos no Daily Mirror, na curva do Tamisa, escrevendo obituários. Não era a melhor profissão do mundo, mas conseguia se manter, o que pode ser considerado algo bom, uma vez que Londres é uma das capitais européias mais caras. E falando em salário, esquecera mais uma vez daquelas contas vencidas sobre a mesa desorganizada, coberta de fotos e negativos. Em suas folgas gostava de tirar fotos, quando o tempo permitia, é claro. Quando chegara ao país há cinco anos, fugindo da crise financeira que cobria as ilhas da Grécia, apaixonou-se pela modesta casa em Enfield, ao norte da metrópole, comprando-a com o que sobrara de seu pouco dinheiro. E há um ano o conhecera. Seu levíssimo sotaque francês lhe tomara de assalto naquela tarde no café. Havia vindo de Versalhes, ali ao lado de Paris, para a Inglaterra havia sete meses para trabalhar em uma firma de advocacia. E desde o encontro naquela rara tarde de sol londrina não conseguiram se separar.

  Saíra do jornal mais cedo do que o costume. A caminho do ponto de ônibus o céu começara a cair, fazendo-o entrar rapidamente em um café que havia ali perto. Desviando das pessoas que começavam a chegar fugindo da chuva, chegou até o balcão, onde o encontrou. Usava uma calça jeans azul e uma camisa escura, não sabia exatamente a cor. Ficara tão encantado com seus olhos que esquecera do resto. Da chuva, das pessoas, da roupa molhada. Somente os olhos que pairavam em sua mente. Percebera uma sutil reação nele também, porém a princípio não tomara a iniciativa de se aproximar. Suas palavras não soaram conexas, porém percebeu um delicioso sotaque nelas. Francês. Estava tão absorto nele que não sabia o que estava falando, tomando consciência do que fizera quando pegava em suas mãos um pequeno papel com um número anotado. Com pesar o vira pagar a conta e sair do estabelecimento. Acompanhou-o com os olhos até a vitrine, onde lançara um olhar para si. Destruidor. 

  O rosto voltava à sua mente enquanto tomava o desjejum na cama, com o olhar perdido na xícara de chá à sua frente, que começava a esfriar quando resolveu ir para o trabalho. Ainda estava com o pijama, lutando contra a vontade de ficar e dormir mais um pouco. Ainda não estava curado da ressaca daquela maldita cerveja escura que os ingleses insistiam em apreciar. E agora teria que pegar o ônibus, já que perdera a carona de Thomas, que costumava levá-lo até a redação. Ônibus este já perdido pelo atraso, e agora teria que ficar esperando pelo próximo no frio matinal da capital. Porém o frio o fazia lembrar dele, talvez pelos olhos um tanto distantes, ou talvez pelo toque da pele gelada. Lembrou-se da primeira vez que o tocara. A alvíssima pele era fria e lisa como mármore. Nunca havia ido à Florença, mas logo se lembrou de Davi. Durante o almoço de domingo no apartamento dele, durante o verão, esbarrara sem querer na pele nua de seu braço. “O mais puro mármore” pensou no momento. Naquela tarde fizeram amor pela primeira vez, selando para sempre seus sentimentos mútuos.

  O ditador croata tinha morrido aquela noite. Um ataque fulminante durante seu julgamento o fez cair morto do banco do réu, e ele ficara encarregado pelo obituário do falecido. O jornal estava em polvorosa, tentando reunir material suficiente para encher uma página com o acontecimento e ele fora incumbido do obituário do falecido. Ficara exultante, afinal, não é todo dia que um tirano croata morre no banco do réu. Porém não sabia que a vida do homem fora tão conturbada. Sua biografia levaria anos para ser escrita, e agora tinha que fazer uma nota rápida sobre toda a história do ditador. Além de ter que fazer uma triagem nos fatos mais interessante, teria que escrever a nota toda, claro, com um prazo curtíssimo, lembrado pelo chefe pelo dia inteiro. E entre uma nota e outra o telefone tocou sobre a mesa de trabalho, mais desorganizada do que a de casa. Era ele, agradecendo pela noite anterior e fazendo planos para aquela. Iam para o Soho jantar. Por conta dele. Seria complicado ajustar os horários, mas aceitava seu convite enquanto terminava de escolher a foto para a nota. Afinal, também não apareciam convites desses todos os dias. Infelizmente desligara. Sua voz macia e alegre o acalmava no ambiente hostil do jornal. Sorria contra sua vontade quando o editor chegou à porta de sua sala, perguntando se a matéria seria entregue no prazo. Pensara no jantar, e logo após no emprego. Sim, seria entregue.

  Saíra do jornal quando escurecia, e o vento aumentara, não dando trégua para a cidade que congelava no frio do inverno inglês. Havia perdido seu guarda-chuva e as roupas começavam a ficar encharcadas, completando o estado em que se encontrava: Cansado, sonolento e agora molhado. Ainda teria que passar no mercado antes de ir para casa, o que atrasava ainda mais o encontro. Não conseguia falar com ele, provavelmente o telefone estava sem bateria. Tentara avisar que perdera o ônibus novamente, e que talvez pudessem deixar o jantar para a noite seguinte. A caminho de casa lamentava ter perdido a ocasião, a única coisa que ainda poderia salvar seu terrível e interminável dia.

  Abria a porta da frente, molhado até os ossos. A chuva finalmente cessara, porém o frio continuava implacável, fazendo-o tremer dentro de suas roupas que pingavam. “Enfim em casa”, pensava enquanto girava a chave na fechadura antiga. “Ensopado, mas em casa”. Havia se atrasado uma hora e meia para o jantar, mas não havia nada que pudesse fazer. Amanhã iria ligar para ele e esclarecer tudo. Entrara finalmente na sala, largando as compras no chão, e qual não é sua surpresa quando o vê passando pelo corredor, lendo o rótulo de uma garrafa de vinho.

  - Desculpe, não ouvi você chegando.

  Respondeu ele à expressão perdida do outro, ao mesmo tempo em que se aproximava para lhe roubar um beijo estalado. Finalmente Milo se conforma com a situação, tirando o casaco molhado enquanto Camus carregava as compras para a cozinha, perguntando como fora o dia. Ele fecha os olhos, cansado e completamente surpreso com a situação, que realmente salvara seu dia.

- Ótimo.

  Respondeu quando Camus voltava com uma toalha e um sorriso irresistível.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!