Beastman escrita por Cicero Amaral


Capítulo 15
Capítulo 15




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      Teen Titans NÃO é minha propriedade, nem quaisquer outras obras que sejam citadas neste capítulo.

 

 

            Mutano estava parado na praça central da cidade, esperando. Tinha chegado ali fazia mais ou menos dez minutos. Olhando ao redor, podia ver o oceano de pessoas, muitas delas acompanhadas, passeando pelo local, despreocupadas. Era bom poder dedicar um dia a si mesmo, sem se preocupar com o próximo ataque de supervilões, ou gastar todo o tempo se preparando para emergências.

            Ele estava esperando sob a sombra de uma das árvores do parque. Estava em trajes civis agora, uma camisa lilás de manga comprida, e jeans preto, mas a pele continuava tão verde quanto de costume. Essa era a razão dele escolher o local onde estava: à sombra daquela árvore, à noite, somente seu contorno seria visível. O metamorfo não se importava em ser reconhecido e rodeado por fãs, mas isso o distrairia, e ele precisava manter os olhos e ouvidos bem abertos, para quando Ravena chegasse.

            Não precisou esperar muito. Por volta de 20h07min, suas orelhas captaram um som familiar atrás de si. E Mutano sabia que só uma pessoa no mundo era capaz de produzir aquele barulho, abrindo portais e deslizando por entre as dimensões.. Não foi capaz de impedir que o maior, mais besta, e mais brilhante sorriso do mundo se formasse em seu rosto, antes de pegar a mão de Ravena e praticamente carregá-la na direção do cinema próximo. Estava tão contente, que foi incapaz de perceber que ela estava usando seu uniforme habitual (mas a verdade é que ele já esperava por isso, e não se importava. Não estava ligando para a roupa, e sim para quem estava dentro dela), e nem notou que seu semblante não era o de uma pessoa contente. Muito pelo contrário.

 

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            Ravena estava com a consciência... complicada. Sabia que tinha cometido um erro ao vir. Haviam muitas pessoas em volta, que não tinham idéia do perigo que estavam correndo, simplesmente por estar no mesmo quarteirão que ela. Sabia que Azar, a sua mãe, e os monges de Azarath desaprovariam severamente o que ela estava fazendo agora. E a empata não conseguia evitar uma forte sensação de culpa, pois “egoísta” era a mais leve acusação que eles fariam, caso a vissem agora.

            Ela sabia que não deveria ter vindo, mas não conseguiu ficar em casa. Estava se sentindo compelida a isso desde horas atrás, sem realmente entender o porquê disso. Passara o dia quase que inteiro dizendo a si mesma que não deveria vir, e, no entanto, aqui ela estava, sendo praticamente arrastada pelas ruas da praça. Isso lhe dava a impressão de não estar no controle de si mesma, o que a irritava profundamente.

            E, por falar em irritante, Ravena voltou sua atenção a seu colega. Ele parecia mais agitado e contente do que o habitual, quase que uma versão verde e masculina de Estelar. Vendo como ele podia simplesmente aproveitar as coisas boas da vida sem pensar duas vezes, e, principalmente, o fato de nenhuma dúvida ou conflito estar torturando-o da mesma forma que a ela, ficou cheia de inveja. A empata sabia que o que estava sentindo agora não era correto, mas a alegria quase ilimitada de seu colega a estava incomodando demais. Ravena entendia muito bem que era errada essa vontade que estava sentindo agora, de colocar um ponto final no alto-astral de Mutano. Sabia que isso era MUITO errado.

            Mas não conseguia evitar.

 

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            Mutano e Ravena caminharam juntos por menos de um minuto, e então se viram diante da entrada do cinema. Havia uma verdadeira multidão ali. Pessoas de todas as idades estavam amontoadas na entrada, sendo que os mais entusiasmados estavam fazendo um verdadeiro show de cosplay, fantasiados como personagens dos vários filmes que estavam em cartaz.

            Os dois pararam em frente à fachada frontal, do outro lado da rua, e Ravena sentiu que Mutano tinha colocado alguma coisa em sua mão. Abrindo-a, viu que era uma entrada de cinema, informando a sala e o nome do filme, que estava marcado para começar às 08h30min.

- É que eu queria em tempinho para a gente poder conversar antes de começar o filme. – Disse o metamorfo, sorrindo meio sem graça, com a mão direita coçando a nuca, ante ao olhar que sua amiga lhe dirigiu após examinar o bilhete.

            Vendo que a empata simplesmente deu de ombros, ele decidiu falar. Era algo que tinha pensado já fazia algum tempo, ou, mais precisamente, desde o dia em que vasculhara as locadoras da cidade para conseguir aqueles cinco filmes. Somente agora, no entanto, é que ele tinha uma oportunidade real de conversar sobre esse assunto com Ravena.

- Ô, Ravena? Já parou para pensar no... ei, olha só aquilo! – Mutano interrompeu sua fala, ao ver o que estava ali do outro lado da esquina. Um fã-clube dos Jovens Titãs, munido de alguns cartazes, placas e até algumas fantasias, estava reunido próximo à entrada do cinema.

            O metamorfo foi ao encontro deles. Ficou no meio de cerca de vinte ou trinta pessoas, cumprimentou todas, assinou algumas camisas, falou alguma coisa para a menina que parecia ser a líder, e então voltou correndo para junto de Ravena. Levara um pouco mais de cinco minutos para fazer isso.

            No entanto, seu sorriso, que o acompanhara desde o momento em que encontrara Ravena, desapareceu assim que ele viu a forma como ela o estava encarando.

- Então, é isso? – Perguntou a empata, com cara de poucos amigos.

            Foi a vez de Mutano encará-la, com absoluta surpresa estampada em seu rosto. Surpresa e preocupação. Não tinha a mínima idéia do que a deixara tão incomodada:

- Hã, isso o quê? – Perguntou ele, realmente sem entender a hostilidade que tinha saído junto com a voz dela.

- Foi para ISSO que você me trouxe aqui? – questionou a empata, mais irritada ainda. – Para me exibir na frente das pessoas, como se eu fosse uma espécie de troféu? Para poder se vangloriar no meio daquelas meninas? – ela acusou, referindo-se ao fã-clube ali perto. – É por isso que estamos aqui? Para massagear mais ainda esse seu ego?

            O metamorfo não pôde evitar a si mesmo de dar um passo para trás, horrorizado. Não de medo, mas que ela realmente pensasse que ele só a queria para poder se gabar. Não, não queria. Muito pelo contrário. Mas estava tão surpreso, tão chocado com a acusação que tinha acabado de ouvir, que não conseguiu juntar as palavras de que precisava para responder.

- Não Rae! Olha, eu só queria... – Mutano tentou explicar, mas foi interrompido pela garota furiosa à sua frente.

- Me largar aqui sozinha e ir correndo para se mostrar no meio daquelas fãs risonhas, que não têm nada melhor para fazer do que ficar balançando aqueles cartazes ridículos no meio da rua?

- Não! Claro que não!

- Então o quê? – Ravena exigiu, parecendo estar prestes a explodir.

- Ravena, eu só fui até ali dizer para elas que não podia dar atenção hoje! – respondeu o metamorfo, num tom de voz mais alto que o habitual. – Que esta noite era diferente e eu estava por conta de uma pessoa só! Só isso!

- Mutano, esta é a desculpa mais esfarrapada que eu já ouvi na vida.

- Mas é verdade! Eu juro! – protestou ele, balançando os braços desesperado. E, de fato, fora isso o que ele tinha feito no meio do fã-clube. Se tivesse ido lá para ganhar atenção ou se exibir, estaria ali até agora. – Olha! Olha lá! – Apontou, com o dedo indicado a esquina onde o fã-clube estivera reunido momentos antes. E, de fato, havia menos adolescentes ali. Uma delas estava saindo naquele exato instante.

- Ah, fica quieto. – sibilou Ravena. – Quieto!

            Os dois Titãs ficaram parados, um na frente do outro, sem dizer uma palavra sequer. Ravena estava com a cabeça meio baixa, espremendo a testa com a mão direita, e segurando o cotovelo desse braço com a mão esquerda. Pareceria estar pensando em algo, se não fosse possível ver o quanto ela estava tensa. Na verdade, alguns transeuntes estavam até atravessando a rua, só para não passar ao lado da empata: dava para sentir de longe que ela estava segurando muita, mas muita raiva.

            Mas raiva de quê, afinal de contas? Ninguém seria capaz de arriscar um palpite. Na verdade, a forma como Ravena estava agindo era diferente de tudo o que se esperaria dela. Sinais de irritação e incômodo eram normais, assim como outros sinais de desagrado que ela dava com certa freqüência. Mas nada parecido com isto. Parada, imóvel, com a musculatura tensa, como se estivesse lutando para não começar a espancar alguém.

            E a empata estava, de fato, lidando com um bocado de coisas. A principal delas era a culpa. Quando viu a si mesma no parque, Ravena percebeu que tinha feito algo que nunca, jamais, deveria sequer ter cogitado. Tinha ignorado avisos e lições que recebera durante toda a sua vida em Azarath. Tinha jogado fora todos aqueles anos, todo aquele sofrimento, todo aquele esforço, em alguns poucos segundos. Ela quase podia sentir os olhares de desaprovação fixos nela. E era extremamente incômodo ter que passar por algo assim.

            A inveja era outro problema. A empata, por mais que tivesse aceitado o fato de não poder sentir, se ressentia de nunca ter tido uma escolha. Além disso, podendo ou não, o fato é que ela vinha passando por uma angústia cada vez maior, por não conseguir se impedir de sentir coisas com mais e mais intensidade nos últimos meses; estava cheia de dúvidas e inseguranças, e sofria com isso. E, a cada vez que via como seu amigo verde, o grande responsável por tudo isso, estava calmo e contente, como se a vida fosse uma diversão constante, ela não conseguia evitar as ferroadas da inveja. Ravena, porém, sabia que esse sentimento era baixo e mesquinho, o que lhe trazia ainda mais culpa.

            E, além de tudo isso, havia a razão pela qual a empata estava ali. Algo que ela ainda era incapaz de identificar, mas sabia ser o motivo pelo qual ela não chutara Mutano para fora de seu quarto dois dias atrás. Pelo qual não notara o gato verde deitado em seu colo, naquela mesma noite. A razão que a fizera suportar o maior interrogatório que sua amiga tamaraneana jamais havia feito. A razão pela qual ela fora forçada a desistir do chá com mel que tinha planejado para a manhã deste mesmo dia. Às vezes, tinha a sensação de que a resposta para esse enigma estava batendo às portas de sua mente, mas, mesmo assim, Ravena não sabia o que poderia ser. Era como se não tivesse escolha. Como se essa... vontade, essa... compulsão, fosse mais forte do que ela.

            E a sobrecarga empática com que estava lidando não facilitava as coisas nem um pouco. Este local estava lotado de pessoas, todas emitindo emoções. Há muito que Ravena já tinha aprendido a bloquear os sentimentos alheios, mas era sempre difícil quando haviam tantas pessoas por perto. Sem falar que ela não estava na sua melhor forma: se não era capaz de suprimir os seus próprios sentimentos, o que dizer dos de todas aquelas pessoas? O esforço estava deixando-a com dor de cabeça.

            Todas essas dificuldades, juntas, já eram um peso bastante grande para qualquer um, mas eram piores ainda para a empata. Ela nunca tinha passado por algo parecido, não tinha nenhuma idéia do que fazer, e isso a frustrava terrivelmente. O incômodo, somado a esta frustração, estavam deixando-a com mais e mais raiva. Mas raiva de quê? Mesmo que estivesse em condições de pensar claramente, Ravena não saberia dizer. Na verdade, ela nem estava percebendo sua irritação aumentando gradativamente.

            Quanto a Mutano, este estava prestes a entrar em pânico. Podia ver muito bem que a grande noite que tinha planejado estava basicamente arruinada: nem precisava de instinto ou percepção superior para entender que a garota à sua frente estava nervosa e hostil. Sabia que era bem provável levar uma surra dentro de alguns minutos, mas não era medo o que estava sentindo. Estava mais preocupado em entender por que Ravena estava assim. Ele nunca a tinha visto desse jeito antes.

- Cara, o que foi que aconteceu? – pensou ele, lembrando da manhã deste dia, e de como a empata estava se comportando naquele momento. – Eu não fiz nada para deixar ela zangada assim!

            Sim, ele já tinha compreendido que, ao deixá-la sozinha para falar com as fãs (ainda que tenha meramente dispensado-as), cometera um erro. Mas tinha absoluta certeza que isso não era tão grave assim. Pelo menos, não o bastante para deixá-la a ponto de agredir alguém, como parecia agora.

            De qualquer forma, Mutano sabia que não podia continuar ali, parado, sem fazer nada. Precisava fazer alguma coisa. Qualquer coisa.

- Huh, Ravena? Se lembra daquele filme que a gente assistiu na última vez? Os Filhos de Duna? – Ele perguntou cautelosamente, com medo de irritá-la ainda mais.

            Só que a empata não respondeu. Ao invés disso, permaneceu imóvel, na mesmíssima posição em que estava. Sem saber se a estava acalmando, ou cavando a própria sepultura, o Titã verde continuou.

- Bem, você sabe... eu achei que aquele filme tinha muito a ver com você. – disse ele. – Aquele lance, se lembra...? Da regente e os dois sobrinhos?

            Estas palavras fizeram Ravena fixa um olhar fuzilante em seu colega. Ela tinha uma boa idéia do que ele iria dizer, e isso não a agradava nem um pouco. No entanto, Mutano não percebeu a forma como ela o estava olhando, porque continuou a falar.

- Aquela mulher do filme me fez pensar em você. – repetiu o metamorfo. – Ela ficava lutando contra aquele poder dela, aquelas memórias, aquelas... vozes do passado ou coisa assim. Igualzinho ao que você faz com suas emoções, não acha?

            A empata não respondeu nada. Não conseguiria falar de qualquer jeito, não enquanto estivesse rangendo os dentes do jeito como estava. - De novo. – Pensou ela. Mais uma vez, alguém vinha usar a fábula daquele filme para lhe dizer como lidar com seus poderes. É verdade que ela tinha gostado daquele filme, mas essa parte a que Estelar, e agora Mutano, estavam se referindo, a incomodava, e muito. Além disso, ter que agüentar MAIS UMA pessoa esfregando essa teoria maluca na sua cara... era realmente ofensivo.

- E, no final das contas, a regente acabou se dando mal, né? – continuou Mutano, ainda sem perceber como a empata estava furiosa. – Aí, por que você não tenta fazer mais ou menos igual àqueles dois gêmeos? Se você parar de suprimir suas emoções, quem sabe...

- Cala a boca! – Ravena interrompeu-o, aos gritos. – CALA A BOCA!!!

            E foi isso o que o metamorfo fez, chocado. Chocado e sentido. O que diabos estava acontecendo? Por que Ravena estava agindo assim? O que ele tinha feito para merecer isso?

- Você acha que é fácil ter que lidar com meus poderes? Acha que é fácil ser eu? Ter que passar pelo que eu passei? – a empata sibilou, com a respiração acelerada, os punhos cerrados, e uma expressão de fúria em seu rosto. – Acha que é fácil viver com o risco de explodir tudo à sua volta? Você acha?

- Não, Rae, Claro que não! - Respondeu Mutano, olhando para todos os lados, como quem procura uma rota de fuga. Podia ver os galhos das árvores balançando freneticamente, apesar de não haver vento algum. – Eu SEI que você precisa controlar suas emoções. Mas não precisa fazer o que você está fazendo! Escuta, se você pelo menos aceitar...

- Me escuta VOCÊ, Mutano! – disse Ravena bem alto, interrompendo-o mais uma vez. – Eu NÃO passei por tudo o que eu passei por nada! Não agüentei todo aquele treino, não gastei a vida toda em Azarath por nada! E as coisas que Azar e os monges me ensinaram lá NÃO são inúteis!

- Cara! Do que é que ela tá falando? Eu nem toquei nesse assunto! – Pensou o metamorfo, que não fazia a menor idéia de onde ela tinha tirado tudo isso.

- Ravena, eu não disse isso! Sei que sua infância não foi lá essas coisas! – ele disse, lutando contra o impulso de sair correndo de medo. – Mas olha, a tal da Azar fez uma coisa errada, se ela não...

            Quanto ouviu isso, a empata não pôde mais se conter. Primeiro, esse tapado verde vinha lhe dizer que sua vida toda, que todos os seus esforços para manter o controle, foram um erro. Agora, estava insultando Azar, a pessoa que lhe ensinara tudo o que sabia. A pessoa que praticamente a criara. Sem ao menos pensar, envolveu a boca, os pulsos e os tornozelos do Titã verde, suspendendo-o de cabeça para baixo no ar. Viu os olhos dele se arregalando de medo e surpresa, à medida que ouvia as palavras que ela estava praticamente rosnando para ele.

- Nunca. Mais. Fale. De. Azar. Desse. Jeito! Foi ela que me acolheu sob sua tutela! Que me preparou para o dia da profecia! E eu não vou deixar que você a insulte! Entendeu?

- Entendeu? Pelamordedeus, Rae, do que você tá falando? Eu não insultei ninguém! Cara, o que é que deu em você? – Esse pensamento foi a única reação que Mutano teve, frente à pergunta da empata.

            Ele também teria falado alguma coisa, se não estivesse amordaçado e imobilizado, de cabeça para baixo em pleno ar. Podia ver que as pessoas estavam fazendo uma roda em torno de ambos, observando tudo a uma distância relativamente segura. Relativamente, porque os poderes de Ravena estavam escapando com mais intensidade agora: além das árvores do parque, uma lata de lixo acabara de ser afetada, expelindo seu conteúdo como se fosse um chafariz grotesco.

            Mas o metamorfo não teve muito tempo para observar nada disso, pois, de repente, sentiu a gravidade agindo novamente sobre seu corpo, trazendo-o de volta para o chão. Engolindo a dor, por ter caído de cara no chão a quase um metro e meio de altura, Mutano levantou-se, apenas para ver algo que ele definitivamente não estava esperando.

            Ravena continuava no mesmo lugar, mas sua expressão e postura estavam radicalmente diferentes. Ela estava com a cabeça meio jogada para trás, com o rosto escondido pelas duas mãos, e respirando ofegante, como se estivesse exausta. Onde antes o metamorfo estava vendo raiva cega, agora enxergava algo parecido com desespero. De fato, a garota à sua frente parecia a um passo de começar a chorar.

- Por que, Mutano? Por que você está fazendo isso comigo? – Perguntou a empata, ainda escondendo o rosto com as mãos.

            Se o metamorfo estava confuso antes, agora ele estava completamente perdido. Tinha visto Ravena louca de raiva por razão alguma, e agora, mais uma vez sem razão alguma, ela parecia à beira das lágrimas. Para variar, ele não tinha a mínima idéia do porquê de tudo isso, se tinha feito alguma coisa errada ou não. Estava confuso demais para saber o que a linguagem corporal dela tinha a revelar, e sua cabeça, latejando como um sino de igreja devido à queda, também não ajudava em nada. Mas, mesmo assim, se a empata parecia estar sofrendo, ele não tinha outra atitude a tomar, senão tentar confortá-la. Ainda que, lá no fundo, o metamorfo tivesse uma crescente sensação de que iria se arrepender por tomar essa decisão.

- Rae... Ravena... – disse ele, tentando se aproximar. – Eu só estou tentando ajudar. Você sempre quis...

- Eu sempre quis que você ME DEIXASSE EM PAZ! – ela estava gritando novamente, fazendo uma lâmpada de poste se arrebentar. – Por que você não consegue fazer uma coisa tão simples, Mutano? Você está sempre em todo lugar, perturbando todo mundo, todo dia, toda hora! Você nunca deu um minuto de paz a ninguém naquela maldita Torre!

            O Titã verde deu um passo para trás ao ouvir, quase tropeçando em uma rachadura que tinha se aberto no chão. A agressividade da empata já estava deixando-o com raiva também. Segurando a própria boca com sua mão direita, ele controlou o ímpeto de começar a gritar de volta. Não porque achasse que estaria agindo mal se o fizesse, mas porque, depois de todos aqueles meses de aulas junto ao Sr. Smith, a reação de simplesmente gritar, trocando insultos na praça, lhe parecia infantil. Infantil e inútil.

            Mas a verdade é que não foi muito difícil para o metamorfo se controlar, porque o insulto despertou outra sensação, que rapidamente substituiu a raiva. Algo que fez seu coração afundar dentro do peito, levando a irritação junto.

- Então... é isso o que ela pensa de mim? – Ele se questionou mentalmente, arrasado. E o fato de Ravena, durante praticamente todo o período em que se conheceram, se esforçar para mantê-lo à distância, fazia com que, tudo aquilo que ela tinha acabado de dizer... parecesse verdade.

- Você só me causa problemas! Nunca pensa antes de agir! Você quase matou Ciborgue quando colocou aquele vírus nele! E aquela larva que você deu a Estelar quase comeu a Torre inteira! Tudo o que você faz é aprontar um desastre atrás do outro, e nós é que temos que limpar a bagunça!

            Essas palavras forçaram Mutano a desviar o olhar. Ele não conseguia mais continuar olhando para o rosto da empata. E sentiu-se como se, dentro dele, alguma coisa estivesse se partindo, enquanto controlava a vontade de dizer algumas coisas muito indelicadas, a respeito da primeira vez em que ele tinha levado um filme de terror para todos assistirem juntos. Assim como manteve uma pergunta presa dentro da boca. Uma pergunta a respeito de um dragão que tinha arrebentado todo o telhado da Torre.

            Mas, maior que a revolta por toda essa agressão gratuita, mais intensa que a raiva pelos insultos, era a mágoa. O metamorfo não compreendia o porquê de tudo isso, e, dentre os milhares de pensamentos que cruzaram sua mente naquele momento, apenas uma pergunta estava presente:

- Por quê?

            Essa era uma pergunta muito justa. Por que, final de contas, Ravena estava agindo dessa maneira?

            A resposta era uma só. Ravena estava passando por uma crise nervosa. O acúmulo de todos os problemas emocionais pelos quais ela passara na vida, as dificuldades mais recentes como frustração, dúvidas, os sentimentos que ela vinha experimentando com mais e mais intensidade, a culpa por ela não conseguir permanecer indiferente, assim como a inabilidade da empata em lidar com esses tipos de situação, tinham finalmente sobrepujado a resistência dela. E, naqueles minutos em que esteve sob os efeitos dessa crise, ela só queria uma coisa: descontar todas as suas mágoas e frustrações na primeira pessoa que podia ver à sua frente. No caso, Mutano.

            E o irônico é que, mesmo a resposta sendo óbvia, nem a empata e nem o metamorfo tinham qualquer possibilidade de saber disso. Ele não entendia nada de psicologia, e, mesmo que entendesse, jamais poderia ter se preparado para ver Ravena, de todas as pessoas, do jeito que estava agora. E ela, por sua vez, não estava nem pensando: sua única ação era gritar todas as coisas que lhe vinham à cabeça, sem se importar com o que isso tudo podia estar fazendo com o local onde estava. Ou o garoto parado à sua frente.

            Um observador atento poderia dizer que nada daquilo que estava acontecendo naquela praça era importante. Poderia dizer, com razão, que passar por uma crise nervosa é uma coisa normal. Uma coisa humana. Estaria cem por cento correto, se dissesse que ninguém pode passar a vida sem encarar seu lado ruim, fingindo que ele não existe. Poderia, com toda a certeza, dizer que, se Ravena não tivesse essa crise hoje, acabaria tendo outra, muito pior, em outro dia qualquer. Estaria certo se lembrasse que Mutano, ao começar a agir para conquistar o coração de sua colega, inevitavelmente a faria lidar com uma intensidade emocional maior, aumentando as chances de tudo isso acontecer.

            Sim, um observador distante poderia dizer todas essas verdades. Mas, para os dois adolescentes, nenhuma delas fazia a menor diferença, pois ambos estavam concentrados em fazer uma, e apenas uma coisa:

            Ela, em infligir dor.

            E ele, em suportá-la.

 

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            Nove horas da noite.

            Ciborgue observou, satisfeito, a marcação no relógio de parede, enquanto carregava seis caixas de pizza e uma sacola de salgadinhos, com a metade de seu tamanho, direto para o sofá da sala.

            Faltavam exatamente cinco minutos para começar a exibição de uma série de comédias na TV, e ele não pretendia perder num um segundo. Hoje, ele ia ficar de papo para o ar até altas horas da madrugada.

- Pizza, positivo. Salgadinhos, positivo. Refrigerante... positivo. – O jovem metálico enumerou mentalmente, fazendo uma relação dos suprimentos indispensáveis para as boas horas que tinha pela frente.

            Satisfeito com o que estava vendo, Ciborgue acessou os alto-falantes da Torre, convocando seus colegas para se reunirem e assistir tudo juntos.

            Instantes depois, viu a porta da sala comum abrir-se, revelando Robin. Ele parecia estar curado da dor-de-barriga, ou qualquer que fosse o mal que tivesse acometido naquela manhã.

- Estelar não vai poder assistir TV com a gente Hoje, Ciborgue. Ela está dando banho em Silkie e depois vai escovar os dentes dele. Acho que ele está na muda de novo. – Disse o líder dos Titãs, assumindo um lugar no sofá e pegando uma fatia de pizza. – A propósito, onde estão Mutano e Ravena?

- Estou bem aqui. – a voz da empata soou por trás deles (ela tinha acabado de se materializar naquela sala). – O que vocês querem?

- Tem três comédias da pesada começando, Ravena. – explicou Ciborgue. – Tá a fim?

- Passo. Eu vou para o meu quarto agora. – Respondeu a empata, laconicamente.

            O garoto-prodígio e o adolescente cibernético deram de ombros, indiferentes. Não esperavam mesmo que Ravena fosse perder tempo com comédias pastelão. Apenas quando os créditos de abertura terminaram foi que Robin lembrou-se que apenas metade da sua pergunta tinha sido respondida.

- Ei, Ciborgue? Cadê o Mutano?

- Saiu.

- Saiu? Mas para onde?

- Perguntei a mesma coisa para ele quando saiu, uma hora e meia atrás. O verdinho foi ao cinema. Disse que era uma estréia, e que não podia perder de jeito nenhum.

- Mas por que ele não falou nada com a gente? Poderíamos ir todos juntos... – Robin questionou, surpreso. Seu colega mais novo sempre preferia fazer atividades em grupo.

- Mutano disse que tinha descoberto o horário meia hora antes de sair. Eu disse que podia avisar todo mundo em cinco minutos, mas ele recusou. – Respondeu Ciborgue, despreocupado.

- E ele fez mais alguma coisa diferente hoje? – Perguntou o menino-prodígio, bancando o detetive.

- Hmmm. – o Titã metálico pensou por alguns instantes, agora parecendo intrigado. – Nada... a não ser que você conte o fato de que ele colocou uma roupa diferente para sair.

- O quê?!? Você está me dizendo que o Mutano saiu da Torre... em trajes civis?

- Isso mesmo.

- Ciborgue, isso é muito estranho! – admirou-se Robin. – Você está dizendo que Mutano, o NOSSO colega Mutano, decidiu que queria ir ao cinema SOZINHO, e que se ARRUMOU para fazer isso?

- Mano, foi isso o que ele fez.

- Mas qual poderia ser a razão para ele agir dessa forma? – Perguntou o líder dos Titãs.

            Os dois adolescentes pensaram por alguns minutos, olhando para o alto. Até que, em dado momento, uma lâmpada acesa surgiu sobre a cabeça de cada um.

- Ciborgue. – perguntou Robin, olhando para seu colega. – Está pensando o mesmo que eu?

- O cabeça-de-alface? – respondeu o Titã de metal, com um ar de incredulidade estampado em seu rosto. – Será mesmo que ele...?

            Os dois colegas se olharam por um bom tempo, intrigados. Só podia haver uma razão para Mutano querer sair sem nenhum deles junto, e se arrumar, ainda por cima. Para aqueles dois, sentados no sofá da Torre, apenas um motivo poderia inspirar o comportamento de seu colega mais jovem.

- Naaaaaaahhhhhhh. – Disseram os dois ao mesmo tempo, devolvendo sua atenção para a tela da TV.

 

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            Dez horas e trinta e cinco minutos.

            Em um corredor iluminado, com piso de granito cinza, uma porta dupla se abre. Uma multidão passa por ela, deixando a sala escura onde estiveram pelas duas últimas horas. Há pelo menos uma centena de pessoas, de todas as idades, sendo que a maioria é composta por crianças e jovens com menos de 20 anos. Todos parecem entretidos, discutindo animadamente as cenas que viram na telona. Todos parecem despreocupados, enquanto dirigem-se para suas casas, ou para um lanche extra. Em suma, todos parecem felizes.

            Isto é, todos, com exceção de um rapaz de altura média, que saiu por último da sala de cinema. Ele provavelmente passaria completamente despercebido, não fosse por dois detalhes marcantes: em primeiro lugar, ele tinha a pele, cabelo e olhos verdes. Segundo, diferente de todos os outros que deixaram a sala antes dele, ele não parecia feliz. Nem um pouco.

            Mutano não conseguia se lembrar de nada do filme. Tinha entrado na sala quinze minutos após o começo do longa, mas não fora capaz de prestar atenção. A lembrança do que tinha acontecido, pouco mais de uma hora e meia antes, ainda estava vívida em sua memória. E a memória daqueles momentos fatídicos era basicamente tudo o que havia na cabeça do metamorfo.

            E era nisso que ele estava pensando agora, enquanto andava, vagarosamente, em direção à saída. Mas especificamente, estava relembrando os últimos minutos com Ravena. Infelizmente para ele, a imagem mental desse evento ainda estava sólida como o chão em que estava pisando.

            Ravena parecia finalmente ter terminado de dizer o que pretendia. Ou talvez só estivesse precisando de fôlego. O metamorfo jamais teria imaginado que iria ter que ouvir sobre coisas que tinha feito na primeira semana após os Titãs se reunirem, e menos ainda que seu gosto vegetariano pudesse ter qualquer relação com punições azarathianas. Não que isso tornasse mais fácil ouvir as palavras inflamadas da empata: a descrição mais gentil que ele recebera, naquela hora, tinha as palavras “passarinho”, “cérebro” e “comparável”, embora não necessariamente nessa ordem. Por sorte, sua mente tinha feito o favor de não registrar as outras coisas ditas por ela. As muitas outras coisas.

            Foi nessa hora que Mutano decidiu falar. Ignorando a ardência nos olhos, forçando o peito rígido a se expandir para permitir a entrada de ar, ele fez a pergunta que estava queimando em seu cérebro:

- Rae... o que eu fiz para merecer isso?

            Ela tinha lhe virado as costas ao se calar. E foi sem se virar, e sem demonstrar qualquer sinal de hesitação, que a empata respondeu, antes de levantar vôo e desaparecer na escuridão da noite.

- Você existe.

            Esse... desastre tinha acontecido há pouco mais de uma hora e meia atrás. Mutano se lembrava de ter ficado ali mesmo, parado, sem conseguir se mexer, por um bom tempo, até finalmente se recostar em um poste próximo. Ele lembrava que, com a cabeça baixa, viu o bilhete amassado em sua mão. E que decidira assistir o filme sozinho mesmo. Qualquer coisa para apagar essa noite da cabeça.

            Inspirando o ar noturno, o metamorfo suspirou desanimado. O bilhete, agora inutilizado, ainda estava em sua mão. Que irônico. O mesmo objeto, que antes ele considerava o atalho para o que seria uma das melhores noites de sua vida, acabou se revelando como a porta de entrada para... ah, ele preferia mil vezes esquecer tudo isso! Esquecer este fiasco de uma vez por todas!

            Mas não dava para esquecer. Mutano jamais fora o tipo de pessoas que guarda rancores ou mágoas, ou, pelo menos, não mais que uns poucos minutos, só que tudo aquilo... doía. Doía demais. Ravena já tinha pegado pesado com ele, mas nunca, nunca antes ela tinha dito coisas tão... terríveis. Coisas que... ele não conseguia definir.

            E o fato de não ter feito nada, pelo menos, nada que justificasse um... tratamento desses, era tão ruim quanto o próprio. Talvez pior.

            Respirando fundo mais uma vez, o metamorfo lutou para controlar a poderosa sensação que irrompeu em seu peito. Não foi nem um pouco fácil, mas ele conseguiu manter a postura digna. Por pouco, mas conseguiu.

- Agüenta firme, cara. Se segura. Homem... não... chora. – Ele comandou-se mentalmente.

- Oi, tudo bem? – Uma voz soou ao lado dele, aparentemente surgida do nada.

            Em situações como essa, o comportamento normal de Mutano seria se assustar, caindo de bunda no chão ou gritando de uma forma bem pouco máscula. Agora, no entanto, foi bem diferente. Sua orelha esquerda levantou-se, captando aquele som. Mas foi apenas vários segundos depois, que sua face se virou lentamente, de modo encarar a origem daquela voz.

            Era uma menina baixinha, de uns 14 ou 15 anos de idade. Tinha o cabelo castanho e olhos da mesma cor. Tinha mais umas vinte pessoas junto a ela, a maioria composta por adolescentes da mesma faixa etária. O Titã verde percebeu que era a líder do fã-clube, com quem tinha falado pouco mais de duas horas antes.

- Nós vimos o que aconteceu. – disse ela um pouco tímida, encostando as pontas de seus dedos indicadores umas nas outras. – E, bem, achamos que você não estava mais por conta de uma só pessoa, né?

            O metamorfo respondeu com um sorriso, que esperava não parecer doentio demais. Ele gostava tanto de dar quanto de receber atenção de fãs, mas estava deprimido demais para sorrir sem se forçar a fazer isso.

- Você não precisava ter ouvido nada do que aquela garota te disse. – declarou a presidente do fã-clube. – Queria saber qual é o problema dela.

- Eu também... – Pensou Mutano, inspirando fundo e olhando para o alto.

- É, que menina mais grossa! – Exclamou uma das fãs, uma moça de cabelos pretos.

- Você não fez nada para merecer aquilo. – Ecoou uma terceira voz feminina, concordando.

- Não mesmo. – Raciocinou o metamorfo ao ouvir essas palavras.

            Todas as jovens continuaram ali, falado ao mesmo tempo. Se não estivesse desanimado e triste, Mutano teria sido capaz de entender o que elas diziam. No entanto, ele não estava se importando com nada naquele momento. Só queria uma coisa: voltar para casa, dormir, e esquecer tudo aquilo.

            Foram dois pares de mãos que despertaram o garoto verde de seu torpor. Ele viu que estava sendo puxado pelas garotas do fã-clube. Para onde, ele não fazia idéia.

- Para onde...? – Perguntou ele, surpreso, fazendo apenas uma débil tentativa de resistir.

- Você precisa se animar um pouco. – Disse a líder do fã-clube.

- É, não estamos mais agüentando ver você desse jeito. – Concordou outra menina.

- Tem uma festa lá na casa da Larissa. – anunciou uma moça que parecia ter a mesma idade que o metamorfo, ou seja, 16 ou 17 anos. – Vem com a gente.

            Mutano hesitou.

- Eu... não sei se posso ir. – ele protestou, indeciso. – Tenho que voltar para casa. Tenho treino amanhã cedo.

            Isso era verdade, ou, pelo menos, razoavelmente verdadeiro. Sim, ele tinha treino para fazer na manhã seguinte, e o garoto-rodízio provavelmente lhe daria um sermão se ele voltasse muito tarde. Só que o Titã mais novo nunca tinha dado atenção ou importância para essas coisas antes. A razão pela qual ele não queria ir, a VERDADEIRA razão, é que ele não estava se sentindo animado para ir a lugar algum.

- Ah, deixa disso! Vai ser legal! – falou uma pessoa atrás dele.

- É, vai sim.

- Vamos lá, você vai gostar!

            Tinha alguma coisa na insistência do fã-clube, ou talvez Mutano estivesse deprimido demais para oferecer uma recusa mais enérgica. O fato é que ele acabou indo, meio que empurrado e puxado pela multidão.

- Está bem, está bem, eu vou. Mas só posso ficar um pouquinho. – Aceitou ele, oferecendo a todas um sorriso opaco.

            Opaco, mas não tanto quanto há poucos minutos atrás.


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