Os Sapatos Das 6:40 escrita por pirucatomica


Capítulo 1
Os sapatos das 6:40


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Todos os dias, exatamente às 6:40, ouço o barulho de sapatos na escada. Sapatos barulhentos que estalam contra o concreto dos degraus. E sempre às 6:40, nem um minuto a mais, nem a menos, ela desce tranqüila e elegantemente, como se planejasse cada passo que dá.


Eu nunca vi seu rosto, nem tampouco sei se é uma mulher. Suponho que seja por achar que são sapatos de salto alto, mas hoje em dia vivemos tempos de mudanças. Seria interessante descobrir que em vez da mulher jovem que imagino, de camisa branca e calça preta, com um lenço de poás branco e preto amarrado no pescoço, de cabelos compridos e bem escovados, de sapatos de salto preto básicos, que nunca saem de moda, eu encontre um senhor barrigudinho, que apenas tem os sapatos barulhentos.


Incrível como consegui criar uma imagem mental de uma pessoa que nunca senti nem sequer o cheiro apenas por ouvir o barulho de seus sapatos. Sempre que ouço os passos, imagino essa moça descendo devagar, com pastas em um dos braços e segurando o corrimão com a outra mão. É assim que a vejo.


Mas, o que importa, é que esta pessoa que desce as escadas do prédio que dividimos sai de seu apartamento exatamente às 6:40. E isso me informa que é hora de eu me apressar, pois dali 5 minutos é minha hora de sair para o trabalho.


Estes sapatos das 6:40 já me avisaram muitas vezes que estava atrasada. Repreenderam-me mentalmente como se dissessem: “Corra, é hora de ir trabalhar.” E também já me salvaram de sair atrasada por displicentemente achar que é mais cedo e estender meu café da manhã. Mas não, os sapatos estavam ali para me mostrar que é hora de largar a xícara, correr escovar os dentes e dar uma última olhada no espelho antes de sair.


Fico pensando se essa pessoa – dona dos sapatos –  é do tipo metódica, com Transtorno Obsessivo Compulsivo, o popular TOC ( que aliás combina perfeitamente com o som de seus sapatos), e faz as coisas exatamente do mesmo jeito e na mesma hora todos os dias. Divago entre pensamentos de que ela acorda às 6:00 em ponto. Levanta às 6:01 e toma seu banho em 10 minutos, depois veste-se em 10 minutos. Até aí já são 6:21. Aí, me pergunto se ela senta pra tomar café. Se ela mesma prepara ou já tem a mesa deliciosamente posta e pronta. Ou talvez nem tome café, não gosta de comer pela manhã, ela vai é se maquiar. Nessa empreitada do café ou de maquiagem, consome mais 15 minutos, marcando 6:36 no relógio. Corre, escova os dentes, ou, no caso da maquiagem, dá os últimos retoques e sai exatamente às 6:40.


Ou talvez sejam apenas devaneios meus e tudo não passe de uma simples e feliz coincidência. Não a conheço, não sei de seus gostos, o que gosta de ver na TV, nem se gosta de TV, se lê o jornal antes de sair ou se sai pra comprar o jornal, enfim, não tenho a mínima ideia de onde vai e o que vai fazer. E isso nem é da minha conta.


Talvez um dia eu saia mais cedo para encontrá-la nas escadas, perguntar seu nome e fazer amizade, quem sabe.                                                                                     

Dizer: “Oi, você não me conhece, mas eu te conheço há dois anos, quer dizer, na verdade, eu conheço seus sapatos, ou melhor, conheço o barulho de seus sapatos há mais de dois anos. Que tal se você fosse até meu apartamento e tomarmos uma xícara de café, aquela que você sem querer me faz largar todos os dias? Podemos conversar sobre sapatos, ou solas de sapatos que não fazem barulho... Bem, não, sobre isso não, afinal, foi o barulho das solas dos seus sapatos que me ajudaram a sair na hora certa todos esses meses.”


Aí ela me diria: “Claro, será um prazer tomar uma xícara de café com você, aquela que sem querer eu te faço largar todos os dias, mas, antes, tenho uma pergunta: Porque você simplesmente não olha o relógio?”


Ops, situação difícil. Verdade, porque simplesmente não olho o relógio? Pra ser sincera, nem eu sei. Ou talvez saiba. Tenho a hipótese que me acostumei com o barulho dos sapatos e adeqüei minha rotina a eles, afinal, faça chuva ou faça sol, eles nunca falharam. Sempre desceram na hora exata, todos os dias, de segunda à sexta. Durante o café eu explicaria a história toda.


Sim, talvez eu faça isso mesmo, preciso conhecer meus vizinhos. Moramos no mesmo prédio há mais de dois anos e eu nunca nem sequer vi seu rosto e muito menos a marca de seus sapatos. Essa é a vida moderna. Vivemos tão perto e ao mesmo tempo tão longe.


Não sei absolutamente nada sobre essa pessoa.


Sei apenas que é a pessoa dos sapatos das 6:40, aquela que me avisa que é hora de correr. 



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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado. Mas, mesmo que não, gostaria de saber a opinião de quem ler. Obrigada!