Emoticontos escrita por Palas


Capítulo 4
Árvore Genealógica da Sua Desgraça




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O primeiro casamento da Vida, como se sabe, foi com o Amor. A ideia fora, obviamente, dela. Formavam um casal muito completo e tiveram vários filhos. Alguns famosos, como a Ilusão, o Egoísmo – “É a cara do pai ”, comentavam os circunstantes no chá de bebê – e a Esperança. De outros, porém, você provavelmente só ouviu falar aqui e ali – tipo a Felicidade e o Fã de U2.

Como em todo casamento, contudo, havia um problema. O Amor era um marido distante, dificilmente chegava em casa antes das onze. Ele argumentava que isso se devia às frequentes horas extras no serviço para botar comida na mesa, porque o Cuidado – moeda da época – que haviam ajuntado ainda era pouco para comprar carro do ano que a mulher queria. A Vida sabia, no entanto, que na verdade o esposo não suportava mais ficar em casa porque não se dava bem com sua mãe (sogra dele – maldito Português), a Realidade, e desde que esta se mudara para a casa deles, as brigas eram repetidas. Onde um estivesse, o outro andava longe.

Aconteceu que o Amor, por ser muito filosófico e confuso, teve uma crise de meia-idade e achou que tinha se perdido no mundo, desandando a se procurar por aí para “tentar se identificar nas coisas”. Era, claro, só um pretexto pra ficar ainda mais longe de casa e por mais tempo, só que dessa vez fazendo coisas extremamente ilícitas. Quando a mulher ficou sabendo, ficou furiosa e quis se divorciar, quebrando coisas pela casa e assustando os filhotes. Claro que o marido percebeu o relaxo que dera, especialmente depois que o missionário Peso na Consciência bateu à sua porta para transmitir a palavra da Religião num Domingo de manhã.

“Cara ” – Disse Amor – “A probabilidade de eu escutar o que você tem a dizer não é inversamente proporcional à hora em que você me tira da cama. Também não é proporcional, por falar nisso.”

“Esse mau humor pode ser curado por Deus!” – Disse o interlocutor – “O Senhor alivia todas as dores, pegue aqui esse folheto, ele explica tudo. 

“Ele cura erros passados? ” – Perguntou homem, a aflição estampada nas bochechas.

“Problemas no casamento? 

“É 

“Você pode estar me dando o privilégio de saber o que houve, para que Deus possa estar te ajudando com mais eficiência? 

“É que –”

“Entendo. Olha, amigo, traição é um negócio complicado. Você pode estar comparecendo aos nossos cultos de Terça e Sexta, às oito. Lá vamos estar explicando melhor, mas o que posso estar adiantando é que você tem que pedir desculpas formais para ela. Coisas formais são legais, fazem as pessoas se sentirem importantes.”

Amor hesitou, pensou por alguns segundos.

“Não tenho tempo para isso, mas obrigado. ” – Respondeu finalmente – “O que você tem de formal aí?”

Peso na Consciência vasculhou os bolsos, apalpou as próprias calças várias vezes e se desculpou – “Tenho nada, não, fera ” –, mas depois se lembrou de abrir a mochila que trazia nas costas.

“Olha, moço, o máximo que eu vou estar tendo é esse cartãozinho de ‘Deus do perdão ahuhauahuahauhauahau, perdoe você também’ do Smilinguido. 

“Serve. Quanto pagou nele?”

“50 centavos.”

“Te dou 50 centavos nisso aí, pra cobrir seus gastos. 

“Mas aí eu vou estar tendo que estar vendendo por mais, pra fazer um lucrozinho, né? ” – Respondeu habilmente o missionário – “Faço por 2 reais.”

“Jamais ” – Admirou-se Amor – “Um real e estamos conversados.”

“Um e setenta e cinco ou nada feito. 

Pausa.

“Tem vinte e cinco aí? 

Amor e Vida se separaram três dias depois.

Nossa heroína, desolada com o fracasso de seu matrimônio, passou a se dedicar a outras coisas para tentar afogar às mágoas. Resolveu restabelecer contatos espirituais, por exemplo, passando a frequentar mais cultos e conhecendo melhor a organizadora deles – a Religião. Esta fora uma criança linda e todos achavam que seria a mulher mais apetitosa de toda a região, mas obviamente envelheceu mal e sua carreira de modelo foi pro saco, tendo ela apenas conseguido um emprego como gerente de uma das empresas do Sr. Dinheiro.

“Mas… então… ” – Disse Vida em uma conversa mais aberta, quando viraram amigas próximas. – “Me conta mais sobre o seu chefe…”

Religião sabia que o interesse de Vida envolvia pura carência. Ela só estava precisando desesperadamente de um cobertor de orelha e um cara rico era, obviamente, a melhor opção. De tanto insistir, porém, Vida acabou conhecendo Dinheiro num evento corporativo, se apresentando como eminente empreendedora com ideias geniais, e foi amor à primeira vista. O homem gostava muito de gente esperta, que se assemelhasse à sua mãe – a Inteligência – e, porque Vida fosse muito altiva, esperta e cozinhava bem, ficaram logo bastante íntimos. Tiveram até um filho fora do casamento, a Especulação, coisa que Religião achou absurda e que quase foi motivo para as duas pararem de se falar. Depois regularizaram a situação, no entanto, tendo então mais filhos – Vida era uma mulher extremamente fértil, tinha um ciclo menstrual a cada duas semanas! O que isso significa é óbvio, mas todos aprenderam a lidar com o temperamento dela na marra. Entre eles, a belíssima e tímida Sorte, o muito popular Azar, o eloquente Interesse e a fugaz Corrupção.

A última das filhas veio quando Vida já estava perto da menopausa e, portanto, cheia de problemas na gestação e na criação. Miséria era uma garota feinha, tonta, sem amigos e exageradamente magra. Dava dó, sério . Nunca se aproximava de ninguém e ninguém se aproximava dela.

Aconteceu que, quando esta tinha uns 15 pra 16 anos, chamaram a infeliz garota para, em virtude de um aniversário qualquer aí, ir numa balada dessas que têm consumação - água a 4 reais e energético a 8. Ela pediu timidamente aos pais e estes, achando que de fato era hora da garota de soltar um pouquinho, permitiram sob a condição de que ela não iria nem voltaria sozinha. Ela cumpriu essa demanda, até porque foi numa van junto com o resto da molecagem, onde ela inclusive conseguiu se soltar e até respondia quando puxavam papo. Na verdade, ela estava extremamente nervosa e nem sabia o que era uma balada. Prazer, o garoto mais bolado da escola, percebeu a fraqueza.

“Então... você finalmente resolveu sair com a galera do rolê . Vamos nos divertir bastante, tenha certeza.” - Ele disse enquanto a puxava para um canto, atravessando a barreira dos risinhos alheios.

“Bem…” – ela retrucou, tímida – “eu nem sei o que se faz nessas festas, então vou só ver como é.”

“Não sabe, é? ” – Tentou refrear a alegria – “Se não se importa, posso ser seu guia. Vou te mostrar tudo, como é o lugar e tal, porque já fui lá várias vezes e conheço até os cantos mais escuros. Posso até te levar pra um deles.”

Miséria sorriu, constrangida. Abaixou a cabeça, vermelha, e se encolheu. Prazer tomou aquilo como bom sinal e só voltou a falar com a garota depois, quando chegaram. De fato, ele até mesmo gastou com ela – pagou-lhe duas bebidas e chamou-a pra dançar. Vez por outra, olhava de soslaio para ela – era um tanto mais alto – e esse gesto automaticamente a fazia rir baixo e se encolher de novo. “Meu Deus”, pensou ele, “como garotas tímidas são fáceis”. Ainda demorou um pouco para que ela cedesse às pressões crescentes dele, mas no fim acabou pegando. Pegando de jeito, pode-se dizer, porque realmente levou para um canto escuro e…

Antes de continuar, é preciso esclarecer, dar spoilers pro sofrido que tá lendo aqui. Prazer era filho do segundo casamento de Amor, que se apaixonara pela meiga e espevitada Curiosidade anos antes. O filho herdara todas as características dos pais – experimentava de tudo e gostava de tudo que experimentava. Por isso, sentia uma vontade desgraçada de saber como seria rechear o rocambole da garota mais zoada da escola, não importando o que os amigos dissessem. Miséria jamais poderia resistir ao charme e aos encantos do garoto, que tinha um discurso cativante, quase viciante. Nunca que ela imaginaria o cara mais popular da escola se aproximando dela, embora secretamente havia uma minúscula esperança disso que fora o único motivo para ela querer ir na balada.

Bem, onde eu parei? Ah, sim.

Parabéns, papai. 

Isso mesmo. Meses depois do incidente, Miséria começou a ter enjôos matinais e essas coisas todas de grávida sobre as quais eu não manjo e teria que procurar na Wikipedia para explicar melhor. Mas você sabe, gravidez na adolescência é um problema. Escândalos na escola, depressão profunda, esconderam dos pais até a última hora – “Filha, desculpa falar, mas acho que tá na hora de você ir num nutricionista ” – e todas essas coisas dignas de enredo bastante dramático.

A descoberta do problema por parte dos quatro avós teve reações distintas. Vida, depois de acordar do desmaio, disse “Me dá esse telefone que eu vou ligar pra família desse cafajeste ”. Dinheiro, pelo contrário, disse à filha que tudo daria certo e ele a protegeria do perigo e do caos. Da mesma forma, enquanto Curiosidade estava extasiada com a possibilidade de ser avó, Amor ficou furioso e disse “Me dá aqui esse telefone que eu vou ligar pra família dessa vadia 

“Alô? 

“Quem que tá falando? Seja rápido, tenho que fazer uma ligação!”

“Não, senhora! Você vai é me ouvir! Onde já se viu uma garota dessa idade estourar a camisinha do MEU filho só pra engravidá-lo?”

“Ora! ” – Exasperou-se Vida – “Pois quem foi o safado aqui foi SEU filho! Não é ele quem vai sofrer as dores do parto!”

“Mas é ele quem vai sustentar essa família falida! Eu não vou ajudar com um Cuidado sequer!”

“Assuma suas responsabilidades! Nem meu ex-marido era tão frouxo assim!”

“…Vida? 

Os dois desligaram o telefone no mesmo instante e comunicaram aos filhos que eles estavam deserdados. Eles teriam que se virar como punição por se meterem com a outra família. Tanto Vida como Amor nunca chegaram a ver o neto, pois proibiram que ele pusesse os pés dentro de casa. Com isso, os filhos irresponsáveis aprenderiam uma lição e voltariam chorando para o colo deles, implorando por uma nova chance.

Isso eles achavam, porque Dinheiro e Curiosidade continuaram defendendo a legitimidade do casal e os tomaram por tutelados. Dinheiro ofereceu um bom emprego a Prazer em uma de suas companhias, onde ele eventualmente se destacou e se tornou chefe. Curiosidade foi a principal educadora da criança, ensinando tudo que a garotinha Humanidade sabe até hoje.

O que faz bastante sentido.


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