E Se Ela Não Tivesse... escrita por Arqueiroarcano


Capítulo 1
E se ela não tivesse... - Oneshot


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Aqui vai um segredo pra você: o destino, a vida, o tempo, como queira chama-lo não são lineares. Não é como sempre nos falaram. Seu futuro não está escrito nas estrelas e ninguém sabe o que pode acontecer com você.

O tempo não é como um rio que segue sempre em frente.

Não, o tempo é uma bacia hidrográfica, cheia de ramificações, o delta de um rio. E uma vez que se toma um novo braço do rio não se sabe onde ele vai levá-lo.


Era uma noite fria e assassina, a chuva caia em dolorosas gotas de luz, sob os faróis impiedosos dos carros e as fachadas iluminadas dos prédios. Cada pingo reluzindo como uma joia de indiferença. Pessoas e automóveis chapinhavam nas calçadas e ruas alagadiças.

E poderia ter sido assim.


– E tudo que nós passamos?

Foi tudo quanto perguntou Paulo.

Paulo e Helena estavam sentados na mureta na parte externa, mas protegida, de um restaurante italiano. Cantina di Módena. Um lugarzinho encantador e saboroso. A chuva caia verticalmente, ocasionalmente respingando os dois. A iluminação amarelada do restaurante banhava ambos igualmente. Metade luz amarela, metade escuridão noturna.

O retrato de seus corações.

O som das conversas animadas no restaurante, de uma música ambiente suave, da chuva onipresente, tudo morria na seriedade da respiração de Paulo e Helena.

O jovem tinha cabelos levemente encaracolados emoldurando um rosto magro. Os olhos castanhos, duros, encaravam Helena.

– E tudo que nós vivemos, hã? – repetiu ele – Não valeu nada? Não tem nada pelo que você ache que valha apena lutar?

A jovem olhava para baixo, sem conseguir encarar o outro. Os cabelos negros caiam sobre o seu rosto, ocultando os olhos.

Ele estava com uma perna de cada lado da mureta, metade dentro, metade fora. Uma perna do jeans preto de Paulo razoavelmente molhada de chuva. Naquele momento isso não importava muito. Helena estava de lado para ele. As costas voltadas para a noite lá fora. Um casaco lhe protegia do frio. A cor cinzenta do casado parecia adequada demais à ocasião.

– Desculpa, mas, você já me magoou demais – foi a resposta . Havia emoção demais na voz dela.

– Você não respondeu minha pergunta.

Era sua última chance. Ele sabia que era agora ou nunca. O coração de Paulo se apertou com essa idéia. Helena não olhava para ele, mas podia sentir a umidade das lágrimas que deviam estar se acumulando nos olhos dela. Paulo fitava-a insistente.

– Se houve algo de bom entre nós dois, se teve um – ele segurou a mão dela. Helena não resistiu ao toque – um momento que seja, uma lembrança boa pela qual vale a pena lutar...

Ele desviou os olhos para a escuridão molhada mais além. Uma brisa trazia os salpicos da chuva, molhando suavemente o cabelo dele. Os pingos frios queimando seu rosto febril. A mão de Helena estava fria contra a dele.

– Eu sei que nós dois erramos um com o outro. – continuou ele – Cada um tem sua parcela de culpa. Talvez eu mais do que você – olhou de esguelha para o mundo animado e cheio de cor dentro do restaurante. Será que haveria a possibilidade de ele voltar a pertencer àquele mundo? Será que seu coração poderia ganhar cores novamente, aquela noite mesmo? – Eu sei que não tenho o direito de te pedir mais uma chance, mas, se você... se houve um momento, um só momento especial, algo que você ainda tenha dentro do peito que faça com que você ache que valha a pena arriscar mais uma tentativa... Então... me dá outra chance.

Paulo sentiu a mão gelada e macia de Helena estremecer. Sentiu que devia continuar a falar, que devia mostrar por A mais B que estava sendo sincero, que se continuasse ainda havia esperança, que se ele pudesse concluir seu raciocínio, expressar tudo que sentia e pensava, então, talvez, tudo ficasse bem. Tinha que continuar, mesmo que fosse só para adiar a decisão. Pois ele temia o momento da definição. Pois quando tudo fosse dito, então tudo seria diferente. Terrivelmente diferente, para melhor ou para pior.

Mas a culpa o engolfou. Já haviam feito mal demais um ao outro, será que deviam continuar se magoando indefinidamente?

E o momento passou. Tudo o que Paulo ainda disse foi:

– Será que há algo que ainda faça você querer lutar por nós?

Helena ergueu os olhos. O nariz levemente vermelho e olhos molhados. A brisa prontamente desarrumou alguns fios de cabelo. Ela olhou nos olhos duros de Paulo. E conseguiu ver através daquela dureza, toda a boa vontade dele. A bondade, gentileza, cavalheirismo. Tudo pelo que ela se apaixonara. E seu coração derreteu.

Estava pronta a entregar seu coração. Erguer a bandeira branca e depor armas...

Mas olhou aquele rosto dividido entre a luz amarela e a sombra e percebeu que as coisas talvez melhorassem por um mês, dois... e depois?

Ela amava Paulo demais... e um dos dois precisava ter coragem.

Se ele não tinha... que fosse ela então.

Helena engoliu um soluço. Olhou nos olhos dele. E mentiu suavemente.

– Não.

O coração de Paulo se estilhaçou. Sua mão soltou a dela.

Ficou olhando para Helena por um minuto. Tentou tocar o rosto dela, mas desistiu. Trocaram um olhar de muda compreensão e ele se levantou.

Helena ficou olhando o jovem magro de cabelos encaracolados andar decidido para fora do restaurante, para a chuva, a noite, as trevas.

E seu coração se contraiu tanto que ela achou que fosse morrer ali mesmo. E um impulso forte lhe veio: corra atrás dele! Impeça-o!

Mas ela não o fez.

Paulo saiu para a noite. Surdo. Pois sua cabeça ecoava com o sonoro “não” de Helena. O mundo estava silencioso. Assim que cruzou a soleira banhada de amarelo da Cantina de Módena ele sentiu a chuva fria atingi-lo, escarnecendo dele. Seus pés chapinhando na calçada cheia de poças.

O jovem olhou para a faixada do restaurante, as luzes indiferentes, formando as letras do nome em vermelho, verde e amarelo.

A noite estava silenciosa. O sinal de pedestres piscou verde. Paulo avançou, esbarrando em um homem de guarda-chuva, que deixou cair um pacote.

E Paulo não ouviu nada. Apenas o “não” de Helena ecoando.

Por isso não ouviu o carro se aproximando. Veloz, inexorável.

E quando o motorista imprudente avançou o farol, Paulo não fez mais do que se virar, lento demais.

Helena levantou os olhos, quando ouviu os freios cantando, a água se levantando dos lados do automóvel, enquanto os faróis homicidas focavam sua vítima.

O impacto. Um som surdo que lhe parou o coração. Seus pulmões estavam vazios.

Ela viu um corpo descrever uma parábola no ar, arremessado, os membros agitados ao vento, como uma boneca de pano atirada para o lado. E então a queda. Pesada. Molhada. Espirrando água.

Então o grito.

Helena correu, e quando seus pulmões se encheram novamente, foi para proferir um grito que feriu os ouvidos e calou todos no restaurante.

A chuva apunhalou-a quando ela se lançou para a rua. O homem do guarda-chuva olhava estático para a cena. O homem no carro ainda não descera.

O casaco cinzento de Helena logo se encharcou e ficou pesado, enquanto ela chapinhava pela rua, molhando suas meias, até o ponto onde estava o corpo jogado de Paulo.

As lágrimas se misturavam às gotas de chuva e Helena se jogou de joelhos no asfalto, espirrando água e ralando sua pele debaixo do jeans. Um desespero inominável atropelou seu espírito, enquanto a chuva grudava seus cabelos à sua face.

E lá estava Paulo. Numa poça d’água, manchada do sangue que ia fluindo lentamente de seu crânio fraturado e se diluindo nas gotas ritmadas da chuva. Os olhos castanhos agora estavam opacos.

As mãos de Helena tocavam a testa ensanguentada e as costelas destruídas do corpo a sua frente. O sangue dos seus joelhos se misturava ao de Paulo e se desfazia na água abundante, enquanto a lamúria de desespero dela subia pelo ar e era afogada pela chuva. As pessoas começaram a se juntar em volta, consternadas.

Mas para Helena só havia ela ali. Pois a outra pessoa que estava com ela, acabara de partir.


Poderia ter sido assim.

Aquela noite, fria e assassina, poderia ter dado este fim à história de Paulo.

Mas não foi assim.


Helena ergueu os olhos. Apenas um pouco. Afastou os cabelos do rosto e fitou os olhos duros e castanhos de Paulo. A brisa prontamente desarrumou alguns fios de cabelo, voltando eles para o rosto dela. Helena conseguiu ver através daquela dureza, toda a boa vontade dele. A bondade, gentileza, cavalheirismo. Tudo pelo que ela se apaixonara. E seu coração derreteu.

Estava pronta a entregar seu coração. Erguer a bandeira branca e depor armas...

Mas olhou aquele rosto dividido entre a luz amarela e a sombra e percebeu que as coisas talvez melhorassem por um mês, dois... e depois?

Ela amava Paulo demais... e um dos dois precisava ter coragem.

Se ele não tinha... que fosse ela então.

Paulo sentiu um arrepio agourento.

Helena engoliu um soluço. Umedeceu os lábios. Olhou nos olhos dele. E mentiu suavemente.

– Não.

O coração de Paulo se estilhaçou. Sua mão soltou a dela.

Ficou olhando para Helena por um minuto. Tentou tocar o rosto dela, mas desistiu. A mão à meio caminho da face pela qual uma lágrima escorria. Trocaram um olhar de muda compreensão e ele se levantou.

Helena ficou olhando o jovem magro de cabelos encaracolados andar decidido para fora do restaurante, para a chuva, a noite, as trevas.

E seu coração se contraiu tanto que ela achou que fosse morrer ali mesmo. E um impulso forte lhe veio: corra atrás dele! Impeça-o!

Não deixe ele ir...

Impeça-o...


E ela correu.

Helena saltou da mureta e correu, o som da própria respiração e do coração contrito em seus ouvidos. Paulo estava quase na saída da Cantina di Módena. Helena apertou o passo, esbarrou num garçom e continuou, sem pedir desculpas.

Paulo saiu à chuva, olhou para cima uma vez, para o letreiro luminoso, que banhou o rosto dele de três cores diferentes, enquanto Helena corria, num desespero surdo.

O jovem se virou para rua. Seu pé bateu numa poça d’água, o farol de automóveis ficou amarelo, o dos pedestres logo ia abrir e ele deixaria Helena para sempre.

Então uma mão agarrou o cotovelo dele com força e o fez virar-se.

Helena puxou o jovem para si, com desespero e beijou-o, apertando ele entre os braços, para que ele não pudesse fugir. Beijou-o com súplica, perdão, dor e ansiedade nos lábios.

– Sim! – gritou ela em meio à chuva, enquanto os cabelos molhados se misturavam nos rostos dos dois – eu quero lutar pelo nosso amor, eu quero lutar pra continuarmos juntos, não vou deixar você partir!

E se abraçaram.

Foi um abraço molhado, de água e lágrimas. Foi quente e dolorido. Foi maravilhoso.

Enquanto isso, um carro avançou o sinal e deu um banho em um homem que levava um guarda-chuva e um pacote. O homem xingou profusamente, enquanto olhava as calças e camisa molhadas.

Paulo fez algum comentário sobre a falta de consideração das pessoas, com o qual Helena concordou brevemente. Não era hora para falar disso.

Tinham uma nova chance. E não a iriam desperdiçar.

Os dois entraram, molhados e sorridentes, eles entraram de mãos dadas pela porta da Cantina dí Módena.

Paulo beijou os lábios de Helena, enquanto uma amiga dos dois ia buscar uma toalha em algum lugar para eles, o jovem se perguntou, brevemente, em seu coração o que teria acontecido se Helena o tivesse deixado partir.

“E se ela... não tivesse segurado meu cotovelo?”


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