Disseram-nos que éramos monstros,

Pecadores sem fim,

Comedores de crianças,

Promíscuos,

Cultuadores da morte;

Disseram-nos que éramos maus,

Pragas,

Pestes,

Tempestades,

Destruição;

Disseram-nos que éramos feios,

Detestáveis,

Fétidos,

Sujos,

De alma impura;

Disseram-nos que éramos indesejáveis,

Não nos queriam,

Não nos amaram,

Não nos acolheram,

Só saquearam.

O que se espera de alguém que foi subjugado e tratado como lixo desde que nasceu?

O que se espera que esta pessoa tenha pela qual te subjugou?

O que se espera da amargura de ser torturado e maltratado por palavras rudes?

A roda gira e o mundo continua, os que antes foram subjugados agora ganham força. Os que estavam embaixo agora tendem para cima. A linha tênue entre o bem e o mal se desfaz, gerando assim a mistura não antes percebida por outros, mas que sempre existira.

Os subjugados agora procuram vingança. Por tanto ouvirem perjúrios e desaforos, cresceram acreditando que eram realmente monstros e assim continuaram a viver.

Viraram monstros

Pecadores sem fim,

Comedores de crianças,

Promíscuos,

Cultuadores da morte;

Ficaram maus,

Pragas,

Pestes,

Tempestades,

Destruição;

Viraram feios,

Detestáveis,

Fétidos,

Sujos,

De alma impura;

Viravam mártires,

Não nos queriam,

Não nos amaram,

Não nos acolheram,

Agora eles que saqueiam...

Cabelos lisos

Corte reto na altura da bunda

Franja recém cortada

Lábios carmins

Olhos castanho-avermelhados

Usava um vestido preto colado ao corpo, o que muito difere de minha época terrena, mas reluz na era demoníaca. Aparência pecaminosa e infantil, uma Lolita completamente rastejante pelo pecado carnal e rainha das orgias. Sentada de fronte à uma extensa mesa transparente mais parecendo negra ao deixar passar a cor do ônix profundo que era feito o chão, revelava-se não estando apoiada em nada, simplesmente flutuante. Pratos branquíssimos com víceras de anjo queimadas, uma iguaria sem limites de cara. Na taça translúcida o sangue velho se revelava ruim.

O inferno era assim.

Ao menos uma parte dele.

Agora estou sentada na cadeira central da mesa, todas as almas de demônios que nos serviam com os olhos parados encima de mim. Sentindo a presença austera de Lilith que tanto os banhavam em surpresa e esperança de um novo dia. Do lado direito Utsukushisa, quase vomitando ao ver as vísceras de seus partidários encima de um prato. Do lado esquerdo Lucis que bebericava o sangue e comia normalmente aquela carne que tanto causava repulsa em seu companheiro.

Do outro lado, à minha frente, Denachi que se deliciava ao sabor do sangue antes provado por sua língua áspera e descontrolada. Lys ao seu lado sem entender o que estava bebendo e comendo, e mais uma vez se sentindo mal por estar no inferno.

Nagai a uma ponta e Sora à outra se olhando a cada segundo que passava. Cada vez eu via uma coisa. Sora com seus olhos sobre meu vistoso e gigantesco decote no vestido e Nagai lhe olhando fulminante, ciumenta. Ambos trocando olhares maliciosos e outras vezes amorosos... Esse traidor não tem a mínima idéia da idade de minha avó, ou tem?

– Então, o que o senhor veio fazer aqui Sora? – Perguntei indo direto ao assunto. Utsukushisa ao meu lado se remexeu, estava intrigado com a presença de Sora aqui, provavelmente já havia o visto pelo castelo celestial.

– Bem, eu matei a sua irmã correspondente, então acho que deveria ter um pouco mais de gratidão por mim... – Disse o meticuloso traidor. Senti a raiva de meu Chevalier ao meu lado. Sora o olhou de esguelha, mas não se importou, sabia que ele era um cão domado. – Mas você já deve saber do plano da Mandala Invertida não é mesmo?

– Sim, em parte, eu sei que vocês querem matar celestiais pra atingir o equilíbrio, mas isso não será tão fácil... Vocês são ervas daninhas! – Exasperei a última parte tencionando minha testa e criando rugas de preocupação. A única que já os havia matado em grande número fui eu, e sei o que é sentir o cansaço. Contudo, o que eu matei não foi nada comparado ao número de soldados que eles têm.

– Isso é verdade, além de que somos muito fortes. Mas, e se cortássemos a base do poder celestial? – Bebericou o sangue e comeu um pedaço da carne. – Digo, os celestiais têm plenos poderes porque os mortais acreditam neles e os veneram, além de fazerem tudo para agradá-los, como não cometer pecados. O que deixa vocês, demônios, quase indefesos; O que estou dizendo é que, precisamos enfraquecer essa veneração dos humanos e fazê-los cometerem pecados, para que os celestiais percam poder e vocês ganhem.

– Boa idéia, como nunca pensei nisso antes em Katsugo? – Comentou Lilith em minha mente.

– Isto é? O que vocês pretendem fazer exatamente? – Perguntei comendo um pedaço da carne.

– Vamos iniciar uma guerra, na verdade duas, pretendemos que sejam enormes guerras para abalar com a fé humana.

– Mas para isso minha querida – Interrompeu Nagai. – Precisamos de um novo Satanás, um anjo caído que é a encarnação do mal. Esse Satanás, será incubado no corpo de um mortal e iniciará a segunda guerra.

– E esse segundo Satanás será o Sora... Que vai substituir o Samael certo? – Perguntei assustada.

– Sim serei eu. – Completou o traidor comendo um pedaço da carne. – Mas não substituirei o Samael. Serei o Satanás na terra e ele aqui no inferno.

Utsukushisa ao meu lado quase entalava com a própria saliva. Antes de conseguir falar qualquer coisa eu tranquei a sua boca para que ela nem se abrisse, e assim alguns sussurros abafados foram ouvidos dele, mas nada se fez.

– Mas, vocês não acham que se iniciarmos uma guerra os humanos vão começar a rezar para deus a favor de suas vidas? O tal deus será a sua salvação... Eles vão simplesmente rezar cada vez mais... – Pela primeira vez vi Denachi falar alguma coisa com lógica e sentido. Todos olhamos assustados para ela.

– Você pensa? – Perguntei assustada. Pode-se dizer que ela quase me matou, mas então depois de alguns minutos de discussão, conseguimos voltar ao mesmo semblante pesado de antes. – Nagai, é verdade o que ela disse... Acho que este plano não vai dar certo. Aliás, precisamos da ajuda do Mandala.

– Minha querida, no começo os celestiais vão realmente se fortalecer. Mas essa guerra será algo nunca antes visto pela humanidade. Serão horrores jamais antes presenciados, e durante muito tempo. As pessoas perderão a fé em Deus e assim conseguiremos inserir o pecado em suas mentes. – Disse calmamente minha avó. Dando uma pausa para respirar continuou. – Quanto ao Mandala, a morte e a vida já estão vindo para cá, por isso gostaria que passassem a noite nos aposentos infernais, acho que amanhã já estarão aqui. E não se preocupem nessa dimensão do inferno o tempo passa tão rápido quanto na terra.

Após o longo jantar rumei para meu quarto, junto com os meus dois Chevaliers que dormiriam na mesma cama que eu. Lucis estava normal enquanto Utsukushisa se sentia mal, ele ainda estava puro, suas asas ainda não haviam caído, ele ainda era um celestial puro.

Quando chegamos ao quarto Utsukushisa abriu suas asas alegando dor e logo pude ver que a última delas estava caindo, os ossos da antiga asa estavam quebrando naturalmente, suas penas ao entrarem em contato com o chão liberavam uma fumaça branca.

Utsukushisa gritava de dor quando se jogava encima da cama. Enquanto a asa saía pude perceber que o sangue que circulava por ela era prateado, as asas celestiais têm um próprio coração e por isso seu sangue é muito mais puro do que o do resto do corpo. Em contato com toda essa maldade as asas estavam se esfacelando, caindo sozinhas. As asas de um anjo não precisavam ser arrancadas, elas simplesmente caíam quando em contato com a maldade do coração ou em sua volta.

Não pude fazer nada quanto a dor de Kushi, apenas dar-lhe minha mão e afagar seus cabelos molhados de suor e lágrimas.

– Santo Akasha! O que é isso? Que dor é essa? AAAAAAAAAAAAHHHGR!!

– A sua dor é triplicada, porque você é um serafim e perde duas asas de cada vez, é a lei do três vezes três. Além de que você está perdendo o seu sangue puro e deixando a maldade entrar, isso irá doer bastante. – Expliquei-lhe tentando lhe reconfortar, o que apenas o deixou mais inconsolável.

– Não têm com ele calar essa boca e parar de bancar o bebê chorão? Eu sei que dói, mas cacete! Eu quero dormir! – Começou a reclamar Lucis. Um chorando em meu ouvido e outro brigando com o que berrava, era muita coisa para mim.

Com um estalar de dedos pus Lucis em um sono profundo enquanto continuava a consolar meu lindo serafim.