There And Back Again escrita por Lekkerding


Capítulo 1
Vivendo e... Vivendo




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No horizonte, o sol marcava o fim de mais um dia em Rune Midgard, e se despedia da terra banhando uma mulher, cujo semblante se encontrava áureo, beijado pelo astro-rei. Os longos cabelos negros, ornados por um lindo chapéu de verão enfeitado com uma fita cor de rosa, adquiriam os tons dourados; seus trajes esvoaçantes balançavam ao vento daquele fim de tarde.

Ali, distante de tudo e de todos, na torre Norte do castelo de Astrum, a bela dama apenas pensava em sua vida.

Lembrava-se do dia em que resolveu sair do seio da família e se tornar uma guerreira em Midgard. Era ainda uma garotinha. Tinha apenas 13 anos. O pai, membro da guilda dos sábios de Juno, não queria que a filha se embrutecesse. Era uma menina gentil e delicada. Criada para ser uma estudiosa, no máximo, uma alquimista. Mas lutar? Jamais. Finn Arnesson não queria e não aceitava este destino para a pequena Yanahi. Sua mãe, a senhora Galadriel, admirava a coragem da filha, mas também não aprovava. Temia pela vida da pequena, tão frágil e tão estabanada. Talvez fosse devorada por um poring em treinamento... Quem podia saber destas coisas? Yanahi jamais soube sequer como manejar uma faca para cortar tomates, quiçá para treinar suas habilidades de luta.

Contrariando a todos, ela partiu rumo à cidade de Payon. Encantada pela paisagem bucólica e tranqüila da cidade, logo se inscreveu no curso de arqueiros. Arranjou lugar parar morar, e trabalhava na mercearia da cidade. Uma das mais esforçadas de sua turma, Yanahi crescia a olhos vistos. Já não era mais a pequena princesa de antes; suas mãos agora eram hábeis com qualquer objeto que pudesse ser usado como arma. Era uma exímia combatente. Porém, algo a diferenciava das demais aprendizes: ela não era tão rápida com o arco, e não conseguia nunca se entrosar com os animais da floresta.

Crescendo. Vivendo e aprendendo. A jovem Yanahi era agora uma moça feita. No auge de sua juventude, contemplando a vida aos seus 18 anos. Já não era mais uma aprendiz; trajava agora um belo manto de seda azul, típico da guilda dos Arqueiros; seu Gakkung sempre pendurado no ombro direito, e sua aljave de flechas presa às costas, os longos cabelos negros caindo por cima, enfeitados com uma bela coroa de flores. Seu mestre, o caçador Max, notava que o talento da moça era único. Yanahi era de uma beleza inigualável, fazendo com que todos os homens se rendessem a seus encantos. Era ágil e silenciosa como um gato, conseguindo percorrer grandes distâncias e realizar ataques sem ser percebida. Ela sempre tinha informações sobre tudo e todos. Definitivamente, um talento daqueles era único. E Max começava a pensar sobre o futuro dela, já que seu treinamento como arqueira estava próximo do fim.

De certa feita, Max deu a Yanahi um instrumento peculiar: um chicote. Não era um chicote comum. Era vermelho vivo, e vibrava, como se ardesse em chamas eternas. Assim que pôs as mãos no chicote, Yanahi sentiu algo mudar dentro de si mesma. O poder emanado por aquele instrumento era imenso. Sentia as mãos arderem em chamas, mas também sentia que podia dominá-las. Sem nunca ter visto um arco antes, começou a manuseá-lo, de forma excepcional. A graciosidade e a excelência dos movimentos da arqueira deixaram seu mestre impressionado.

Max, então, soube que ela era a escolhida. Mulheres como ela eram raras. Lendárias. E deviam ter o acompanhamento adequado. Na guilda dos Arqueiros, Yanahi não recebia o suporte necessário para se tornar a deusa que se destinava a ser. Então, Max mandou um mensageiro a Comodo. Numa situação destas, só havia uma pessoa em quem ele poderia confiar. Era arriscado, e não sabia se conseguiria o apoio necessário, mas era mais perigoso não entregar Yanahi a quem de direito, deixá-la morrer nas mãos de aproveitadores...

A lua cheia estava alta no céu, indicando a chegada da madrugada. Uma bela madrugada, com um céu limpo e estrelado. A brisa noturna refrescava não só a face, mas também os pensamentos do velho caçador. Sentado na sacada de sua casa, observando as estrelas e tomando um chá, ele aguardava... E pensava naquela aprendiz tão pequena e tão desengonçada. Qualquer outro teria dispensado a menina. Ela mal sabia brandir uma faca para se defender... Jamais saberia lidar com os arcos. Mas o brilho nos olhos dela... Havia algo naquele brilho. E Max quis saber. Ele quis desvendar o mistério daqueles olhos de oliva. Agora, o mistério acabou. Ele sabia exatamente o que Yanahi tinha. Ele só não sabia se este talento era bom ou ruim para a menina...

-          Meu reino por seus pensamentos.

Uma voz feminina, muito doce e sedutora, acompanhava um sorriso suave. O rosto dela era esplendoroso. A aparência, com certeza, não lhe denunciava a idade e menos ainda a sabedoria... Ele não pôde perceber sua chegada. Elas eram mais silenciosas que gatos. De qualquer forma, era muito bom olhar nos olhos de ébano dela novamente, sentir seu perfume, observar o cabelo negro e liso dançando com o vento.

-          Como você pagaria esta aposta, sem ter reino algum?

-          Hm... Tristan não me resistiria se eu pedisse, meu caro. E você sabe disso!

-          Trapaceira. Faz de tudo para vencer!

Os dois caíram na gargalhada, se entreolhando. Fazia um bom tempo que não se viam, desde a descoberta das rotas para Amatsu. Tanto tempo, e ela continuava linda. Parecia que os anos não podiam envelhecê-la. Só... Embelezar ainda mais.

A mais alta comandante das ninfas e musas. As lendas. As mulheres mais belas e faceiras do mundo subordinavam-se a ela. La Kaliffa. Fazia tanto tempo que se conheciam, e mesmo sendo ela tão importante e poderosa, ele não se abstinha de chamá-la por seu nome, nome pelo qual a conhecia desde criança: Sarah.

Conversaram bastante, pondo as notícias em dia, como velhos amigos que eram. Mas, por mais que o reencontro fosse bom, por mais assuntos que tivessem a tratar... Trabalho era trabalho. E foi Sarah quem trouxe o assunto à tona.

-          Você disse que tinha descoberto uma de nós. Como ela está? Gostaria de examiná-la.

-          Hm... É este o meu problema.

-          Explique seu problema, pois não o compreendo.

-          Ela é filha de acadêmicos, Sarah. Ela tem o sangue de Juno nas veias. Me preocupo se podem usá-la numa invasão...

-          Eu duvido muito que aconteça. Ela tem alguma doutrina da Academia?

-          Não.

-          Já usou magia alguma vez, sem querer?

-          Nunca, Sarah. Ela parece ser uma garota normal. Mas...

-          Nada de “mas”, Max. Se é uma de nós, devo examiná-la e levá-la imediatamente comigo. Tendo sangue de Juno ou não.

-          Sim senhora, dona Sarah...

-          Oras... Não fique deste jeito. É minha obrigação... E você sabe como minha presença aqui é perigosa. Devo ir embora rápido.

Max acenou para a criada, pedindo que fosse buscar Yanahi.

Alguns momentos depois, a arqueira entrava na sala, para encontrar seu mestre taciturno num canto, e uma desconhecida. Ela era maravilhosa, e trazia bondade nos olhos. Mas isso não impedia Yanahi de sentir medo da figura que se aproximava, sorrindo. Lembrava das palavras da mãe, ao sair de casa: “não confie no sorriso de estranhos”. Aquele sorriso era gentil e amável. Mas não era digno de confiança.

-          Está achando que lhe farei algum mal diante de seu mestre, menina? – disse a dama, agora sorrindo cinicamente.

-          Não, senhora, eu...

-          Não precisa se desculpar por não entender o que acontece. Pode perguntar o que quiser.

-          Mestre... – Yanahi não entendia por que seu mestre permanecia impassível, enquanto a mulher a examinava como se olham os mantos nas feiras de Alberta. – O que está acontecendo?

-          Pequena Yanahi... –  Seu mestre estava de pé, e olhava para ela, escolhendo as palavras. Algo terrível estava para ocorrer, e ela não gostava disso... – Você está crescida. Ensinei tudo que podia para que fosse uma boa guerreira. E você aprendeu tudo... Tenho orgulho de ser seu mestre. Mas seus talentos não são para a caça. Você está destinada a algo maior... E esta, é minha grande amiga Sarah.

Sarah abaixou a cabeça, como que reprovando Max. Ele não deveria apresentá-la a uma futura subordinada daquela maneira tão informal. Yanahi percebeu o gesto... E então, começou a recordar histórias de seu mestre. Histórias sobre uma grande mulher, temida e poderosa, que comandava exércitos e derrotava reis com um simples piscar de olhos.

-          L-La Kaliffa?

-          Sim. De agora em diante, ela será sua mestra, e a ajudará a transcender, para alcançar seu destino.

-          Mas... Eu quero ficar aqui! Não quero ir!

-          Você precisa, minha jovem. Você não quer crescer? Evoluir?

-          Mas eu posso crescer aqui e me tornar uma caçadora...

-          Não, meu anjo. Não pode. Seus talentos transcendem a caça. A floresta. Você foi feita para algo maior... E a Kaliffa está aqui para ajudá-la com isso.

-          Não precisa temer, menina. – Sarah agora tinha um sorriso sincero, e seu olhar lembrava o semblante da senhora Galadriel. – Cuidarei de você, conforme Max disse. Sua estrela agora começa a brilhar...

Dito isso, La Kaliffa rapidamente brandiu um instrumento no ar. Yanahi sabia o que era: um chicote, como aquele que queimara em suas mãos há algum tempo atrás. Mas... Como ela manuseava aquilo tão rápido? Então, reparou nas vestes da dama. Suas sandálias cravejadas de safiras. As calças de seda, semitransparentes. O busto coberto por um corpete dourado, que se estendia pelos braços, com longas mangas de seda, mas ainda deixando os ombros à mostra. Os adereços dela eram todos enfeitados com pedras preciosas. E na cintura, ela trazia, enrolado, um lindo chicote azul, cuja ponta parecia brilhar. Hipnotizada por aquela demonstração de poder, Yanahi não percebeu a chegada de mais 5 mulheres ao quarto. Todas elas ricamente vestidas, assim como a Kaliffa.

-          Estamos prontas, minha senhora. – Ao dizer isso, as mulheres se curvaram, num gesto respeitoso.

-          Então... É hora de irmos, menina.

Receosa, Yanahi abraçou seu mestre.

-          Não tema, pequena. Você está em boas mãos. E nos veremos em breve.

**************************************************************

O céu de Comodo era diferente. Yanahi nunca tinha visto aquelas bandas antes... Era noite na cidade. Não era à toa que a chamavam Cidade da Noite Eterna. O céu não era azul; trazia um tom lilás, cortado por nuvens róseas... Como se fossem de algodão doce. As estrelas explodiam em mil cores, como os fogos de artifício de Kunlun, na festa do Dragão. Aquele lugar parecia uma festa permanente, a menina se encantava com tudo que via e ouvia. Várias mulheres desfilavam pela cidade com sorrisos e reverências. Algumas trajavam as mesmas roupas que a Kaliffa. Outras usavam roupas de baile, longos vestidos pomposos... Os rapazes presentes vestiam longas calça negras, com sapatos bicudos. As camisas brancas eram impecáveis, cobertas por coletes cáqui. Eles usavam bufões, algo que assustou Yanahi. Lembrava de seu pai dizendo que homens trajando bufões eram meros rufiões... Mas eles faziam reverências tão bonitas e despretensiosas...

-          Olá, bela jovem. – O desconhecido tomou a mão esquerda de Yanahi e a beijou. – Fico feliz de ser o primeiro a desejar-lhe as boas vindas.

Confusa, ela puxou a mão rapidamente, um pouco encabulada.

-          Celeborn, não faça isso com as novatas. – A voz da Kaliffa soou firme, enquanto repreendia o rapaz. – Ela está nervosa, triste pela partida, assustada com o ambiente novo e você ainda faz gracejos? Oras... Vá declamar poemas na praça, seu fanfarrão.

-          Perdão, senhora. Eu só queria apresentar-me e dar as boas vindas mesmo.

-          Então, faça isso lá dentro. – A Kaliffa apontou para um grande teatro, à frente. Era um prédio enorme, erguido no centro da cidade. Realmente, era um lugar festeiro. A música começava a alegrar Yanahi, que sem perceber, balançava os ombros, ensaiando uma dança.

A Kaliffa fez sinal para que entrassem. Boquiaberta com o interior do prédio, só agora a arqueira percebia que, junto com ela, mais uma moça estava ali para ser treinada. Seus cabelos eram longos, amarrados com um par de lacinhos vermelhos. Eram mais escuros que os dela, ficando azulados na luz. Os olhos da moça eram negros, mas brilhavam muito debaixo dos óculos. Ela permanecia quieta, atenta a tudo que acontecia.

-          Olá... Você também foi selecionada em Payon? Eu nunca a vi por lá...

-          Não... Eu venho de Kunlun. Olá... – Ela parecia ainda mais tímida que Yanahi. A arqueira achou graça naquilo.

-          Qual é o seu nome? Perdão por meus modos... Não a notei antes e sequer apresentei-me! Sou Yanahi. Venho de Payon.

-          Eu sou Laly. Prazer, Yaya.- Agora a moça sorria, estendendo uma das mãos para Yanahi. Apesar de estranhar o apelido e lembrar das palavras da mãe e do sorriso de estranhos, a arqueira sentiu naquela viajante algo diferente. Algo bom. Ela tinha um cheiro bom... Era familiar.

-          Yaya?

-          Desculpe... Eu logo associei.

-          Imagine... Eu gostei.

Sentadas na platéia do teatro, as duas assistiam os ensaios comandados pela Kaliffa. Ali nascia uma grande amizade. Em pouco tempo, elas falavam de si mesmas, da vida que levavam, suas origens, famílias... Elas se entendiam como irmãs. E a companhia era boa. Seguiram rindo e brincando, até que a Kaliffa chamou.

-          Vocês duas! É hora de aprenderem.

As duas correram para junto da Kaliffa, nervosas.

-          Sim senhora!

-          Subam no palco.

-          Mas... – Nenhuma das duas entendia nada. Yanahi tinha medo; não sabia dançar...

-          Nada de “mas”. Hoje começa a nova etapa da vida de vocês.

As duas subiram no palco. Laly parecia calma, mas Yanahi tremia feito vara verde. Tomaram suas posições. Yanahi estava de cabeça baixa. Tinha medo de falhar, desapontar seu mestre e tornar-se uma vergonha para a Kaliffa. Imaginem, uma mulher que não sabe dançar. Perdida nestes pensamentos, Yanahi não percebeu o comando da Kaliffa...

-          VAMOS LÁ! ACIMA!

No susto, a menina começou a pular no tablado, tentando seguir as ordens da Kaliffa. Esta só olhava e abaixava a cabeça, rindo.

“Que menina desengonçada.”

A expressão de zombaria da Kaliffa só fez desanimar Yanahi. Ela estava ali dando seu máximo para seguir as ordens... Talvez o seu máximo não fosse o suficiente para cumprir o seu destino. Parada no centro do palco, prestes a desabar em prantos, a menina encontrou alento de uma das mãos de Laly.

-          Acalme-se, Yaya. Sinta o balanço da música. Eu vi você lá fora, balançando os ombros. Você sabe sim! Não desanime.

-          Eu não consigo...

-          Ah, consegue sim! O poder é seu. Venha, dê-me a sua mão.

Os olhos de Laly ficavam ainda maiores debaixo daqueles óculos...Eles estavam sempre sorrindo, calmos. Não importava o assunto, se ela estava triste, feliz, zangada... Os olhos dela eram sempre serenos. E deram a Yanahi a confiança necessária para continuar. De mãos dadas, as duas deram um show. E a arqueira desengonçada agora deslizava pelo palco, como se o dominasse. Não eram mais passos a executar; era uma melodia a fluir pelo corpo. Ao fim da música, a Kaliffa bateu palmas, satisfeita.

-          Continuem praticando, voltarei daqui a pouco para vê-las.

-          Sim, senhora! – As duas estavam ofegantes, mas felizes.

Continuaram no palco, por algum tempo, tentando aprender as lições de dança dadas pelas tutoras. Celeborn entrou no teatro e começou a observar as duas. Yanahi, ao notar a presença do rapaz, ficou um pouco envergonhada.

-          Oras! Eu toquei músicas para que dançassem este tempo todo. Já vi tudo. Não há por que se envergonhar.

Yanahi deu um grito, completamente envergonhada desta vez. As faces de Laly estavam vermelhas. Então aquele homem tinha visto tudo? Que vergonha!

-          Não precisam se envergonhar de nada. As duas deram um espetáculo e tanto. La Kaliffa ficou impressionada. No nosso tempo, éramos assim. Perdão por meus modos. – Ele dizia, enquanto caminhava para o palco. Num salto, estava ali, no centro, fazendo uma reverência. – Sou Celeborn of Doriath, o menestrel. Trago mais lições de dança às senhoritas.

Celeborn puxou a mão de Laly, beijando levemente. Yanahi não tinha gostado daquele gesto. Talvez um pouco de ciúme...

-          Qual o seu nome, linda dama?

-          É... Laly...

-          Laly, você parece levar jeito para duetos. Gostaria de tentar?

-          Ahn... Sim, mas...

-          Então, comecemos.

Celeborn sacou seu bandolim, e começou a tocar uma música rápida. Era algo novo... A melodia fluía rápida, furiosa, pelos dedos dele, pelo bandolim, e parecia ir diretamente para os pés de Laly, que rodopiava no ar, com movimentos graciosos. Ela acompanhava Celeborn com sua dança, e tornava a música mais harmoniosa... Daquele dueto fantástico, feixes de luz começavam a sair. Uma aura lilás envolvia os dois, como se os protegesse de algo. Então, uma das tutoras tentou usar seu chicote contra Celeborn. Não conseguiu. Ficou paralisada na aura lilás deles... Então, Celeborn interrompeu a música.

-          Parabéns! Você é nata para duetos! Será muito útil para a Kaliffa.

-          Não entendi nada. – Laly se afastou e sussurrou para Yanahi, desconcertada.

-          Ah! Vocês ainda não sabem o que se tornarão aqui?

-          Err... Não... – As duas disseram em coro.

-          Pois bem, deixe-me explicar. Tudo ao redor de nós segue um ritmo, às vezes mudando somente a batida de acordo com a situação. Sem um ritmo para seguir, a ordem se transforma em caos e a vida em morte. O segredo para dançar está na mão de poucos. Os poderes das ninfas estão em interpretar esses ritmos e traduzi-los em lindos movimentos que podem ser tanto construtivos quando destrutivos para sua platéia. Nós, os mestres da música, podemos criar e destruir reis com nossas habilidades. Poderes mágicos? Talvez sejam. Quando a Odalisca começa a dançar, aqueles que a observam são hipnotizados e caem sob seu controle. Treinadas na arte da dança, elas usam seus movimentos para cativar sua platéia. E quando o Menestrel toca, pode fazer milagres ou arrasá-los. Pode tornar sonhos reais, pode trazer memórias de um amor do passado, pode até mesmo trazer a coragem de volta ao coração mais abalado. Não importa o quão desesperadora seja a situação, a nota certa pelas mãos de um menestrel pode trazer a inspiração ao mundo. Existem ainda os duetos. A música de meu bandolim somada ao balanço de Laly trouxe não só a alegria da festa, mas também podem fazer uma oração. Invocar poderes antigos, para nossa proteção. Juntos, Laly, acabamos de fazer o Lamento de Loki. E poderemos fazer muito mais. Basta querer.

As duas estavam boquiabertas com a história de Celeborn. Mas ainda não acreditavam naquilo.

-          Não notaram nada de diferente em vocês mesmas? Percebam... Após o teste de dança, nada aconteceu?

-          Não... Apenas dançamos e continuamos praticando. Nada de diferente... – Laly dizia isso olhando para baixo, quando subitamente reparou que suas vestes de arqueira haviam desaparecido. Olhou para Yanahi. A mesma coisa. A menina ficou assustada, e puxava a manga da nova roupa da amiga.

Eram vestes róseas. Não como as da Kaliffa, cujo tecido parecia precioso; mas eram belas. Feitas de seda. As belas calças vinham acompanhadas com um saiote, preso às costas. As sandálias estavam bem amarradas, e eram lindas. O ventre das duas estava à mostra; diga-se de passagem, não havia motivo para escondê-los. A blusa era dourada no peito, estendendo-se em mangas de seda, ornadas com pedrarias. Num misto de encanto e espanto, as duas se olhavam, tocando as vestes, como se não acreditassem em nada do que ocorria. E buscavam explicação no rosto de Celeborn, que num sorriso, disse:

-          Meus parabéns, senhoritas. Vocês estão se transformando em belas Odaliscas.

-          Mas como assim? E nós andaremos assim nuas pela cidade? Nem pensar! – As duas tinham os olhos arregalados, pois nunca tinham usado tão pouca roupa. Celeborn riu da cena, sacudindo a cabeça.

-          Novatas... Preferiam usar biquínis, como mercenárias? Ou talvez aquelas mini calcinhas das caçadoras! Hahaha...

-          Mas...

-          Nada de “mas”, moçoilas. Bom... Laly, quer aprender mais duetos?

-          Ahn... – Laly buscava os olhos de Yanahi. Algum sinal, alguma coisa que dissesse que estava tudo bem. Era tudo tão estranho...

-          Ora, vamos! – Celeborn puxou Laly pelo braço. – Yanahi, venha. Você também precisa treinar suas danças.

Enquanto Celeborn e Laly treinavam, Yanahi ficou paralisada num canto. Não conseguia processar tanta informação. Pensava na vida, em si mesma, na jornada que tinha feito até ali. Sozinha. Agora ela se sentia a mais solitária das criaturas. Laly estava feliz e gostava das artes; já estava aprendendo um novo dueto. Ondas amarelas emanavam da dança dos dois... E parecia saciar tudo, dar força a quem estava presente no salão. Mas não para ela. Sozinha e esquecida num canto, Yanahi prendia o choro a todo custo. Ela não queria ficar sozinha agora...

Sem que ela percebesse, uma luz esverdeada a cercava. Seus pés se mexiam sozinhos, enquanto ela sussurrava uma música agradável. Mas triste... Uma das tutoras, Lisandra, tentou se aproximar. Ao entrar na área da luz, uma tristeza sem fim invadiu seu coração, fazendo com que parasse... E desabasse em prantos. Yanahi rodopiava, em transe. O tom levemente esverdeado ficava cada vez mais forte, enquanto a música ganhava força em sua voz. Celeborn interrompeu imediatamente o dueto com Laly, estupefato.

“Há tempos não vemos essa dança emanar por aqui...”

-          Bravo! – Celeborn aplaudia. – Bravo, Yanahi! Você invocou as lágrimas do seu coração. Esta dança é chamada de “Não me Abandones”.

-          Err... Obrigada. – Ela estava constrangida. Laly veio abraçá-la, toda feliz.

-          Eu disse que o poder era seu, não disse? – Ela tinha um sorriso aberto. A tristeza se foi, naquele instante.

-          Obrigada, Laly! – As duas se abraçavam forte. Estavam felizes. E começaram a dançar. Incrivelmente, a mesma melodia as cercava. O fluxo de energia delas tornava a atmosfera do teatro rósea, e uma música alegre tocava. Algo que deixava o rosto das duas incrivelmente sedutor. Celeborn apenas assistia, satisfeito. As novatas eram promissoras... Logo no primeiro dia, já tinham manifestado habilidades incríveis.

-          Oh! A Dança Cigana! Veja, Lisandra... Há quanto tempo não vemos odaliscas assim?

-          Faz um bom tempo, meu caro. – A tutora assistia, enquanto comia alguns chocolates.

-          Este é um ótimo dia para a Kaliffa... – Celeborn descia as escadas do palco, dirigindo-se à saída. Meus parabéns, meninas. Algo me diz que vocês ainda serão muito famosas em Midgard.

-          Mas o senhor já vai?

-          Nada de senhor! Chamem-me Cebs. Adeus!

Felizes, as duas continuaram girando pelo palco. Havia muito a aprender. E elas trilhariam esta nova jornada juntas, sempre.

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Havia rumores em Midgard. A rota para a República de Schwartzhald havia sido descoberta. Para as Odaliscas, isto era fato. Afinal, com suas técnicas, elas tinham descoberto as rotas. O mérito era delas; exímias espiãs, tinham conseguido enviar dançarinas a Einbroch.

Yanahi e Laly agora eram mulheres experientes. Dominavam seus chicotes como ninguém. Já conheciam suas técnicas, e as dominavam. Lutavam ao lado da Kaliffa, Juntas. E continuavam irmãs. Elas comandaram a empresa para Schwartzald, com sucesso estrondoso. As vestes mudavam, conforme as duas cresciam e evoluíam na Guilda. No início, eram bem claras; agora, suas roupas tinham um tom forte, quase rubro. Laly era um pouco mais desejada que Yanahi. Ela sempre sorria e flertava com os rapazes, que desejavam beijos seus, como se eles fossem o próprio ar. Era chamada Honeydrop por onde passava, e a ela costumavam oferecer desde rosas até achados raríssimos. Grandes líderes de clãs poderosos chegaram a oferecer seus tronos no Conselho de Midgard em troca de uma dança com Honeydrop, a rainha dos duetos. Ela sempre recusava.

Sentada na varanda da casa em que ela e Laly moravam, Yanahi recordava eventos de dias atrás.

Em missão no Monte Mjolnir, Yanahi se encontrara em apuros. A Abelha Rainha cuidava de seus domínios, e não a deixava passar. Yanahi usava seu chicote como estilingue, para afastar a Senhora das Abelhas, mas não lhe causava dano algum. Estava ferida demais.

“Que dia para esquecer meu arco.”

Cansada e sangrando bastante. Yanahi tentava se esconder e esquivar dos ataques da abelha, quando foi pega de surpresa e arremessada de encontro a um rochedo próximo, caindo quase inconsciente. A Abelha Rainha avançava, furiosa. Talvez, este fosse o fim...

As lâminas rápidas da katar perfuraram o peito da Abelha Rainha. E só pararam de zunir no ar quando ela caiu morta, deixando sua coroa. Talvez um único golpe... Não. Foram vários. Vindos do nada. A Abelha Rainha não teria chance. De pé, um mercenário. Trajava as vestes de sua guilda... Se é que se podia dizer assim. Elas ficavam justas no corpo bem feito do rapaz. Ele tinha cabelos curtos e castanhos, que ficavam claros com o sol. E olhos negros como a noite, furiosos como o vento. As katares ainda em punho, semblante sisudo e imponente. Yanahi não sabia ainda se estava espantada pela beleza do estranho ou pela gentileza de lhe salvar a vida.

-          Fique com ela. – A coroa áurea da abelha jazia no chão, empapada em sangue.. E ainda assim, o mercenário a rejeitava.

-          Moço, espera...

-          Pode ficar, eu não quero e nem preciso. – Ele fazia menção de ir embora, apressado.

-          Não é isso, eu queria agradecer...

-          Também não precisa, não há de quê...

Os olhos dos dois se cruzaram, num instante. Um instante que arrancou um sorriso do rapaz sisudo e corou as faces da moça ferida.

-          Você está bem?

-          Sim... Mas eu gostaria de saber seu nome. Eu me chamo Yanahi.

Ele pegou a coroa do chão, limpou e colocou na cabeça de Yanahi, gentilmente.

-          Prazer. Meu nome é Yoren.

E tão rápido quanto veio, o rapaz sumiu no vento, deixando apenas o rastro do perfume almiscarado.

Em choque, ela terminou sua missão em Al de Baran, e voltou para casa. Não esquecia o estranho desde então. Todos os dias, sentava na varanda da casa, olhando a tarde, e pensava naqueles olhos negros, vastos como o mar...

-          De novo pensando no assassino? – A voz de Laly cortou os devaneios de Yanahi, corada com a pergunta.

-          Laly, você anda muito inconveniente.

-          Só porque perguntei do seu herói? Você está é enamorada, isso sim.

-          Pare com isso! – As faces vermelhas de Yanahi mostravam como ela estava constrangida com a brincadeira. Mas não negavam a verdade nas palavras de Laly. Ela desejava, mais que nunca, encontrar o rapaz novamente... Levantou-se da cadeira, de repente.

-          Onde você vai? – Perguntou Laly, espantada.

-          Vou até Morroc.

-          Ah, não... Você vai nos meter em encrencas!

-          Só eu vou. Só eu estarei encrencada se algo acontecer ou alguém souber...

-          Ah, mas aqui anda muito chato. Quero viajar. Vou junto!

-          Laly!

-          Ah, mas não seja rabugenta! Vou arrumar nossas coisas e vamos.

Laly era teimosa e Yanahi sabia que jamais conseguiria tirar aquela idéia da cabeça dela. Concordou, conformada. As duas tinham um gênio muito parecido; com os anos, amadureceram e aprenderam a conviver com as manias de cada uma, compreender as necessidades e relevar muita coisa. Pequenas coisas irritantes jamais superariam o amor que as amigas tinham uma pela outra.

            Em algumas horas, a funcionária da corporação Kafra esperava as duas para fazer a viagem.

-          Estaremos em Morroc em instantes, senhoras. Queiram armazenar a bagagem, por favor.

Num instante – o tempo da viagem de teletransporte das kafras – estavam em Morroc. Estava anoitecendo. O vento soprava, deixando um gosto de sal no ar e trazendo as areias do deserto aos transeuntes. Mercadores recolhiam seus carrinhos, encerrando as vendas de hoje. As tavernas começavam a receber seus clientes. Era uma cidade pacata, apesar de abrigar as guildas mais perigosas de Rune Midgard: Os assassinos e os rufiões. Era possível ver alguns deles circulando, em direção às tavernas. Suas roupas vermelhas e seu olhar leviano eram inconfundíveis. As duas odaliscas chamavam atenção por onde passavam, atraindo olhares desejosos dos homens da cidade. Laly nunca resistia a distribuir piscadelas, deixando-os paralisados. Yanahi ia mais séria, achando graça na ingenuidade masculina.

“Tolos. Como se ela realmente fosse fazer algo por eles.”

-          Yaya, posso saber pra que estamos gastando as sandálias a esmo? – Laly estava cansada. Queria apenas uma cama macia e um banho relaxante. Numa boa banheira... Com espuma, de preferência. Mas observando a cidade, já estava se conformando em não ter seus luxos. Só a cama macia já estava muito bom...

-          Precisamos encontrar Arankar na taverna dos mercenários.

-          Quem? – O nome não soava nada bom para Laly.

-          É um mercenário famoso, e muito antigo. Ele deve saber sobre...

-          AHÁ! SABIA!

-          O quê? – Yanahi abaixou a cabeça, corada.

-          Você veio MESMO atrás do assassino!

-          Ai, mas não precisa gritar... – A cabeça de Yanahi estava quase colada ao peito, e as bochechas vermelhas como o fogo. Ela não queria admitir pra ninguém, nem mesmo para Laly, o que ocorria em seu coração. Isso seria sinal de fraqueza.

-          Yaya está apaixonada! – Laly zombava, ensaiando passinhos de dança cigana. – Yaya está amando!

-          Pare!

-          Lalala... Eu sabia há muito tempo disso. E você também sabia, mas não queria admitir. Sabia que você amaria alguém primeiro! Haha!

-          Ora, sua...

-          Olha a malcriação, Yaya!

As duas riram um pouco do gracejo. Isso fez Yanahi distrair-se um pouco... Ao ponto de não saber mais o caminho.

Perdidas em Morroc. Agora sim, estavam encrencadas. Ainda bem que seus pertences valiosos estavam ainda armazenados. Mas e se resolvessem levar as roupas...?

-          Yaya, precisamos achar um lugar seguro logo... Essa cidade é muito escura...

-          Eu sei...

O medo começava a tomar conta das duas moças, que vagavam perdidas pelo oásis da cidade. Laly andava observando a paisagem, como sempre. Olhava pra tudo, menos para frente...  Até que se chocou com algo. Ou alguém... O pavor tomou conta dela, que não queria abrir os olhos de jeito algum.

-          Precisam de ajuda, senhoritas? – A voz gentil deixou ambas surpresas. Laly abriu os olhos, medindo a figura de baixo a cima. Yanahi recuou um pouco. As vestes não enganavam, mas como saber a índole daquele homem?

Trajava uma longa capa branca, cujas mangas tinham punhos vermelhos, ornados com fios dourados. As calças eram negras, como as botas. Suas roupas eram bem novas; era um sumo sacerdote muito jovem. Seus cabelos eram curtos e claros, ondulados, caindo em seu rosto. Os olhos eram castanhos e brilhavam, emanando bondade... E ingenuidade também. Laly estava boquiaberta, e sequer disfarçava a atração pelo rapaz.

-          Prazer, senhoritas, meu nome é Aizen. Desculpe se assustei, mas estava aqui no oásis olhando a noite... Pude notar que estão perdidas.

-          É, estamos mesmo. – Yanahi ainda se mantinha séria, apesar de estar mais relaxada.

-          Para onde desejam ir?

-          Eu gostaria de saber onde fica o hotel da cidade... E também visitar um mercenário chamado Arankar. Você por um acaso o conhece? – Yanahi olhava irritada para Laly, que não parava de admirar o sacerdote. Chegou perto dele e lhe deu um tapa leve. Laly deu um berro, contrariada e envergonhada, e se recompôs. Ela tinha uma queda por sacerdotes... Mas aquele realmente havia chamado a atenção.O sumo sacerdote não conseguiu evitar uma risada tímida.

-          O senhor Arankar é um assassino lendário. Muito conhecido por todos... E está na taverna agora, que por acaso tem uma estalagem cujas dependências são melhores e mais confiáveis que as do hotel. Querem vir? Eu lhes mostro o caminho, está bem perto.

O rapaz usou o poder de suas orações para aumentar a velocidade dos passos das duas. Elas não estavam habituadas a isso, e riram bastante quando as pernas começaram a acelerar, sem obedecer a mente ou o resto do corpo. A taverna realmente estava próxima. Diante da porta de madeira ricamente entalhada, as duas dançarinas pararam, esperando por Aizen, que vinha seguindo de perto. Ele abriu a porta, sorrindo para Laly. E as duas entraram no mundo dos mercenários. Alguns bebiam em suas mesas. Outros jogavam sinuca, ou apostavam no pequeno cassino. Mas, numa mesa escondida, um velho mercenário apenas observava o movimento. Aizen apontou para ele, decidido.

-          Aquele é o senhor Arankar, senhoritas. Fico feliz de ter ajudado.

Yanahi agradeceu e seguiu firme, em direção a Arankar. O coração batia forte, como se fosse sair pela boca. Era agora... Agora ela saberia do paradeiro daquele rapaz misterioso, cujos olhos negros não saíam de seu pensamento.

Aizen segurou Laly pelo braço, gentilmente. Um pouco corado, convidou a odalisca para dançar. Sorrindo, ela aceitou. E juntos, dominaram a pista de dança da taverna.

Era a primeira vez que Laly aceitava dançar com alguém. Não era uma missão, não havia oferta milionária em jogo... Era por puro prazer. O rapaz acompanhava os passos dela com esforço. Era visível, ele não sabia dançar. Mas a simples companhia dele a deixava mais feliz que qualquer dueto em batalha.

Enquanto Laly se esbaldava na pista de dança, Yanahi ia ter com Arankar. A longa barba branca do assassino não era motivo para chamá-lo de velho; o corpo parecia o de um rapaz de 20 e tantos anos. Os cabelos, amarrados numa longa trança alva, contrastavam com a pele queimada de sol. O olhar taciturno mostrava que ele não era de conversas.

Yanahi sentou-se à frente do mercenário, decidida. Cruzou as pernas, e acomodou-se na cadeira, olhando fixamente para ele.

-          Boa noite, senhorita. Sou casado e não caio nos encantos de sua classe.

-          Boa noite. Não quero que caia em meus encantos. Se quisesse, eu não estaria do outro lado da mesa.

Duas adagas reluziram debaixo da longa capa púrpura. Ele cruzava os braços; as mãos estavam a poucos centímetros das empunhaduras das adagas. Mercenários eram rápidos. Se ele quisesse, poderia matar Yanahi ali. Ninguém notaria.

-          Diga o que quer, mulher. Não estou para brincadeiras.

-          Quero achar um mercenário.

-          Ah, as dançarinas estão caçando nossa classe, é?

-          Não... Isto é pessoal... – Yanahi abaixou a cabeça, um pouco corada.

-          Ah, percebi. Você está apaixonada.

-          Não, não é... – Ela tentava negar, mas suas faces diziam o contrário, cada vez mais vermelhas.

-          Não adianta negar. Não foram poucas as mulheres de sua classe que vieram a mim procurando homem assim. Eu sei do que se trata, acredite.

Yanahi abaixou novamente a cabeça, calada.

-          Diga o nome dele.

-          Yoren...

-          Ora, ora. Não será difícil encontrá-lo. Ele está ali.

Arankar apontou a mesa de sinuca, onde quatro rapazes jogavam e riam, regados a muito chopp. Um deles tinha o rosto moreno, os olhos negros, o cabelo igualmente negro... O corpo bem feito na roupa justa... Aquele olhar... Yanahi perdeu o fôlego, só de vislumbrar o rapaz.

-          Você deve saber, ele é arredio com mulheres.

-          Como assim?

-          Ele nunca se apega. Tome cuidado, pois se seu coração está aberto, ele pode sangrar.

-          Obrigada... – As palavras de Arankar soaram como sinos fúnebres em seu coração. Ela agora tinha medo. Muito medo. Levantou-se, com as pernas um pouco bambas. Laly, mesmo perdida em devaneios dançantes, não tirava os olhos de Yanahi. E disse, no momento em que cruzaram olhares:

-          Se você cair, eu estarei lá para você, Yaya. Não tenha medo, o poder sempre foi seu, lembra?

Aquelas palavras não surtiam efeito... Não agora. Yanahi estava diante dele. Todas as palavras, todas as danças, todos os sorrisos ensaiados desapareciam de sua mente. E só restava o medo. O medo de se machucar. Ele rodava a mesa, procurando um bom ângulo para sua jogada. Concentrado na mesa de sinuca, não reparou a bela mulher ali parada, olhando fixamente para ele. Um de seus companheiros o chamou.

-          Yoren!

-          Ah, Thiago, diga! – Yoren disse, um pouco nervoso. – Você só fala para tirar a minha concentração!

-          Acho que o jogo acabou para você hoje, amigo... – Thiago, um cavaleiro, apontava a moça atrás de Yoren. Então, ele se virou.

Os dois ficaram sem palavras, apenas olhando um para o outro, por um bom tempo. Até que o assassino quebrou o silêncio, sorrindo.

-          Olá, Yanahi. É bom vê-la bem... – Ele abaixou a cabeça, com um pouco de vergonha.

-          Olá... – Sem saber o que dizer, a dançarina também abaixou a cabeça.

-          Quer conversar lá fora? – Yoren ofereceu o braço a Yanahi, que acedeu ao gesto. E assim, saíram da taverna. Arankar apenas observava, de longe.

No oásis, tendo a abóbada estrelada de Morroc como cenário, os dois sentaram para conversar. Por muito tempo, eles conversaram, como bons amigos. E por fim, o assunto acabou. Yanahi mantinha os olhos baixos, quieta. O coração batia apressado, e se apressou mais ainda ao ver a mão dele sobre a sua.

-          Sabe... Eu não consegui esquecer o seu rosto... – A voz de Yoren sumia, de tanta vergonha.

-          Eu vim até aqui para ver o seu de novo.

Os olhos do assassino brilhavam, e a luz os deixava quase prateados, assim como os olhos de Yanahi. Sob a luz da lua, dois pares de olhos negros se fecharam, unido-se num beijo. Um beijo longo, gravado nos corações dos dois a fogo.

***************************************************************

La Kaliffa convocava suas odaliscas para uma nova e importante missão. Líderes de guildas estavam em polvorosa. As notícias eram catastróficas. Os arautos traziam más notícias: a colisão dos mundos aconteceria em Rune Midgard. Era um só reino, divido em três dimensões paralelas; uma, governada por Loki, a outra, governada por Chaos; e a última, governada por Iris. Estas dimensões não sustentavam mais a coexistência, e portanto Odin tinha decidido colidir todas, tomando-as sob seu domínio. Assim, ele esperava proteger seus filhos humanos das tiranias dos deuses regentes.

 As guildas dos mundos requisitavam agora os serviços das orações e danças de bardos, odaliscas, menestréis e ciganas, para suportar tamanho choque. E com isso, Comodo se tornava um caos.

Yanahi dormia tranqüila, após um turno exaustivo de vigília no templo de Odin, onde a Valquíria perseguia os viajantes e fiéis, quando Laly pulou na cama, toda alegre.

-          Acorde, Yaya! Vamos, vamos, acorde! Preciso contar uma coisa!

“Meu Deus, ela não pára nunca com isso.”

-          O que houve, Laly? – Yanahi levantava, contrariada.

Laly exibia a mão direita, com um sorriso largo. Seus olhos brilhavam. Ela parecia feliz. Na mão direita, um belíssimo anel de diamantes.

-          Laly! Meu Deus, você vai casar!

-          Sim! Eu vou casar!

As duas pulavam abraçadas na cama. As criadas nada entendiam. Elas pulavam e gritavam, felizes. Laly tinha lágrimas nos olhos.

-          Viu? Falou tanto que eu seria a primeira! Você caiu! – Yanahi mostrava a língua para Laly, e ria.

Sentaram-se à mesa para o café. E enquanto comiam, Laly contava detalhes do pedido. Aizen a tinha levado para Amatsu, a pretexto de caçarem o temível Shinobi. E, debaixo de uma cerejeira, ele se ajoelhou, declarando a ela todo o seu amor. Tirou da batina uma caixa de veludo vermelha, que abriu, mostrando o anel riquíssimo, que fora de sua mãe. Laly, chorando, aceitou. E debaixo das cerejeiras, eles se beijaram, ajoelhados, fazendo juras de amor eterno.

Ouvindo isso, Yanahi não deixava de pensar em Yoren. Ele já tinha dito que não gostava desse tipo de coisa. Eles não se casariam na Igreja de Prontera. Viviam juntos há cerca de um ano. Mas não era nada oficial. Ele era um lobo solitário, e ela compreendia isso perfeitamente. Mas mulheres gostam de segurança. De declarações de amor. E isso, ele não fazia. Ele trazia coisas lindas de suas caçadas para ela. Mas ele nunca voltava pedindo beijos. Ela estava sempre tentando atender às necessidades dele. E as dela, quem atendia? Ninguém... Ela o amava mais que tudo no mundo. O cheiro do almíscar em seu travesseiro pela manhã era divino, e a deixava alegre pelo resto do dia. Mas tantas missões, tanta ausência, tanta falta de atenção... Ela se sentia triste com isso. Mas procurava esquecer.

Laly beijou a face de Yaya, e saiu voando pela porta. Queria mostrar a Lisandra, Celeborn, Vandrant e até para a Kaliffa a novidade. E Yanahi se perdeu em devaneios. Em como seria se ele fosse diferente. Carinho, ele dava. Isso era inegável. Ele a amava, e isso também era inegável. Os olhos dele nunca mentiam pra ela, e o sorriso ao vê-la, menos. Mas será que era suficiente? As palavras de Arankar ainda ecoavam em sua mente.

Decidiu sair para Morroc e procurar seu amor. Há tempos não fazia isso. Da última vez, ele tinha brigado tanto... Decidiu nunca mais fazer surpresas. Mas aquela era necessária.

Chegando a Morroc, correu para a taverna. Talvez ele também estivesse de folga, e jogando com os amigos.

Não estava.

Em frente à mercearia, Yanahi testemunhou algo que alma nenhuma poderia suportar.

Ele estava ali. Ele sorria, feliz. Ao seu lado, uma sacerdotisa. Ela tinha cabelos longos e claros. Eles andavam juntos pela praça... E se beijavam, como velhos namorados.

Sem pensar, Yanahi correu para a Kafra mais próxima, rumando a Comodo.

 À noite, Yoren chegou para encontrar uma mulher destruída. Os cabelos desgrenhados, o pijama um pouco sujo. O rosto inchado de tanto chorar.

-          Você pelo menos ama esta mulher?

Yoren ficou em choque pela pergunta.

-          Érika Yensid. Vocês são casados há mais de 3 anos. Isso é verdade?

-          Yaya, não fique assim... Não é o que pensa...

-          Ah não? Então explique.

-          Érika é minha esposa... Só no papel...

-          Então porque estavam juntos hoje, como marido e mulher?

-          Era uma comemoração de família. Veja, este casamento foi arranjado. Não pude recusar o pedido de meus pais... Eu não a amo. Eu amo você, minha querida. Por favor, não fique triste assim.

-          Eu sinto muito... E isso dói demais, mas não podemos mais nos ver. Saia daqui.

-          Yaya, por favor, escute...

-          SAIA DAQUI!

Os gritos de Yanahi acordaram os vizinhos próximos. Yoren se aproximou dela, e lhe deu um beijo.

-          Ela pode me ter no papel... Mas a verdadeira dona é você, é você quem eu amo...

Dizendo isso, partiu rápido, deixando Yanahi ajoelhada no chão, chorando.

***************************************************************

Os sinos da Igreja de Prontera badalavam, chamando a todos. Era um dia feliz. Um dia de união. O casamento de Aizen e Laly. E também marcava a volta de uma das dançarinas mais belas de Rune Midgard: Yanahi Yensid.

Yensid.

Certo dia, Yanahi recebera uma carta. Ela se endereçava à sra. Yanahi Yensid. O sobrenome lhe causava soluços, pois pertencia a alguém que muito lhe fez sofrer.

A carta era de Satya Yensid, irmã de Yoren. Ela rogava para que Yanahi usasse o sobrenome do irmão. Ela tinha todo o direito, e a família havia concordado com aquilo.

E ela atendera ao pedido. Era agora a Srta. Yensid.

Na sacristia, Laly não conseguia conter o nervosismo. Olhava pela cortina, e via Aizen no altar. O rei Tristan III estava lá, apenas aguardando a noiva para realizar a cerimônia.

Yanahi e Laly conversavam. Ela tentava acalmar a noiva. Laly estava linda no vestido. Ela trazia duas flores na cabeça. Simples, e divino. A noiva mais linda que Midgard poderia conhecer.

-          Não quero casar!

-          Ah, mas pare de bobagens...

-          Não é justo! Íamos casar juntas!

-          Pare com isso, Laly. Nem parece a moça valente vinda de Kunlun para ser odalisca.

-          Mas não é justo! Eu deveria casar junto com minha irmãzinha!

-          Eu sei... – Yanahi abaixou a cabeça, escondendo lágrimas teimosas. – Mas hoje é o seu dia. O meu vai demorar mais a chegar. E depois, agora você não divide atenção com ninguém!

-          Yaya, você estará na Igreja. Todos vão olhar para você. E para a Kaliffa, nem se fala. Sequer vão notar o casamento. – Laly parecia muito mau humorada ao dizer isso.

-          A noiva é sempre a noiva, Laly. E todos vão olhar.

-          Você jura?

-          Eu juro, Laly...

“Pobre Aizen... Pelo menos agora ela vai pular só nele.”

As duas se uniram num abraço forte. Apesar dos pesares, Laly era a única amiga de Yanahi em Comodo. Amiga, irmã... Ela era tudo, e com certeza, a pessoa mais amada por Yanahi. A separação era triste. Elas não se veriam todos os dias, não ririam das trapalhadas uma da outra... Só agora Yanahi sentia como seria duro acordar e dormir sem ela.

-          Ah, mas não chore. Esta maquiagem deu muito trabalho, Laly!

-          Ah... Tá bom...

Desfizeram aquele abraço apertado. Recompostas, ambas se dirigiram para o altar. Yanahi entrou primeiro, na qualidade de madrinha.

Celeborn levantou-se, e com ele, muitos outros bardos. Em homenagem a Laly, começaram a tocar uma melodia nova, estranha ao reino. Composição daquela pequena odalisca, que tinha crescido tanto. Laly entrou na igreja, caminhando lentamente para o altar. Cumprimentava a todos os presentes, com um sorriso largo. E estava feliz; Aizen a esperava no altar... E todos olhavam para ela.

Yanahi não conseguiu conter as lágrimas durante a troca de alianças. E enquanto enxugava os olhos com seu lenço, notou um belo rapaz na platéia. Ele tinha vestes orientais. Um quimono amarelo, com detalhes azuis. As roupas escuras apareciam debaixo do quimono, e o chapéu de Mestre Arcano na cabeça lhe escondia os olhos. Mas pelo pouco que podia ver...

Ele estava olhando para ela.

Rapidamente, abaixou os olhos.

Terminada a cerimônia, todos se dirigiram para Comodo.  Ali, a festa durou três dias e três noites. E durante a celebração, todos se esqueceram dos horrores vividos pela colisão de mundos. Por algum tempo, Midgard recuperou a alegria perdida.

Naquela festa, Yanahi conheceu Mizubi.

Um espiritualista, vindo de Amatsu. Era convidado do noivo, e tinha chegado recentemente ao reino de Tristan, a convite de Acow, o líder do clã Innova. Mizubi tinha cabelos escuros, mas seus olhos eram de um azul profundo como o oceano.

Durante a festa, eles não se separaram em momento algum. Conversavam sobre o mundo, sobre sua vida, sua evolução... Sobre tudo. E foi o início de uma grande amizade. Em expedições, estavam sempre juntos; nas guerras travadas entre clãs, também; era muito comum vê-los sentados à beira dos riachos que corriam pela cidade de Al De Baran.

-          Yaya, quer me dizer o que diabos ocorre entre você e Mizu-san? – Laly perguntava, numa das raras ocasiões em que se viam. Agora ela era uma mulher casada, tinha 3 filhos. Estava sempre ocupada. Mas sempre que tinha tempo, corria para ver a irmã.

-          Oras, nada...

-          Nada? Oras, Yaya! Você acha que sou boba?

-          Boba você é, por acreditar na maldade desta gente. Mizu-kun é um bom amigo meu. Ele tem uma esposa, sabia?

-          É mesmo?

-          Sim, ela se chama Akane.

-          A exorcista?

-          Sim, ela mesma... Eles são muito bem casados.

-          Então, por que você vive para cima e para baixo com ele?

-          Pela companhia, Laly... Acredite, é só um amigo. Eu não creio que possa ver alguém com outros olhos novamente.

-          Tá bom... Mas prometa tomar cuidado, tá?

-          Tudo bem, querida... Conte-me de meus lindos afilhados. Por que não os trouxe?

Yanahi aproveitava ao máximo as visitas de Laly. A saudade dela era enorme... Ela e Aizen moravam em Rachel. Era longe demais... Não era toda hora que podiam se ver. Mas Laly fazia falta...

***************************************************************

Naquela hora, o sol se escondia, levando consigo a luz do dia. E Yanahi entregava suas memórias a mais um pôr do sol, como sempre fazia. Dizem que uma vida bem vivida apenas nos traz sorrisos. A vida dela era cheia de aventuras e emoções; era razoável. Ela conseguia sorrir...

Mas aqueles olhos negros traziam uma tristeza sem tamanho ao coração dilacerado da dançarina. Alguém que ela jamais esqueceria. E o nome dele, ela sussurrava no vento... Talvez, um dia, ela pudesse ser feliz, ao lado dele. Mas eram apenas palavras... Memórias ao vento, de uma mulher vivida, alguém que tinha muita história para contar. No sol poente, os olhos dele se refletiam. E ela lembrava todos os momentos que tiveram, em lágrimas.

-          Yaya! – A voz de Mizubi chamava, um pouco alegre. – Venha! Temos uma expedição a fazer!

-          Estou indo, Mizu-san...

Ali, sozinha, enxugou as lágrimas, respirou fundo e sorriu. Poderia até chorar. Mas nunca na vida poderia dizer que não tinha amor. Sabia que ele pensava nela, como ela pensava nele. E talvez um dia, Odin permitisse a união dos dois.

Mas eles já eram unidos. Era um sentimento muito forte, que nada nem ninguém poderia quebrar. Era como se nunca tivessem se separado. Yoren e Yanahi existiam, juntos, no coração dela. E dali, nunca seriam apagados.


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