Argila escrita por Lekkerding


Capítulo 1
Argila




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Um dia como qualquer outro, na vida de todas as pessoas daquela cidade tediosa, cheia de detalhes e pormenores inúteis. Protocolos ordinários, ilusórios... Enquanto fossem seguidos, as pessoas viveriam em suas médias e frágeis cascas de esperança por mais um dia, como ontem, como amanhã. Só mais um dia qualquer. Mas não na vida dela. Aquele dia, ela sabia, era o começo do fim.

Não que tenham percebido; em seus piores dias, ela era excelente. Uma das poucas certezas para quem observava as cenas deprimentes de treinamento era essa. Talvez o fim estivesse próximo, mas ela sempre seria a melhor. A cláusula pétrea do contrato mais cruel já assinado: ela vivia para ser isso. E nada mais.

Não que para ela não houvesse escolha: por alguma ironia dos deuses, ela realmente era extraordinária. Inteligente, hábil, divertida – quando valia a pena rir, coisa que não ocorria muito – e linda. Ela tinha todos os seus atributos a serviço da excelência. Ela gostava bastante, mas eles tinham o preço, a obrigação de estar à altura.

E naquele dia, quando para todos era a heroína riscando os céus de vermelho... Naquele dia, ela soube. Seu fim chegaria, e rápido. Porque ela conhecia o suficiente de si mesma para camuflar, mostrar ao mundo exatamente o que queria, quando queria. Ela sabia criar versões de si mesma como ninguém – e nenhum mestre em Psicologia conseguia dissociar a máscara da realidade. Mas seu fim chegaria no dia em que quisesse ser apenas ela mesma. E ela sabia. Sempre soube.

Já no chão, caminhando pelas pernas do humanóide – com graça, elegância, EXCELÊNCIA, mais do que se podia dizer dos companheiros ao lado, desajeitados e desconectados da realidade que os cercava – seus olhos iam fixos, quase mortos, para o oceano. Águas turvas e turbulentas, que ela agora invejava. Pela liberdade de ser: nada mais, e nada menos. Se ela pudesse apenas ser...

Protocolos. Sempre seguidos à risca. Mostras de desespero, tentar controlar tudo ao redor. Cada passo, cada imagem, cada... Pensamento. Ironicamente, naquela cabine fria, molhada e cheia de tons pastéis – tediosos e humanos – era o melhor lugar para ser livre. Pensar livremente sem ser ouvida pelos tolos que a cercavam. Outra grande ironia, é que naquele dia, com os olhos fixos no mar, quis o ouro dos tolos. Eles tinham a possibilidade. Ela, não. Quase deitada em sua cabine, deixou a mente viajar enquanto as luzes desapareciam. Antes, entrar e sair eram apenas protocolos chatos a serem seguidos. Agora, a entrada era sua válvula de escape – e a saída, uma paixão como aquela vivida na lenda de um livro hebraico, lido na Alemanha.

Portão de desembarque. Setor... Não fazia questão de registrar. Nunca fez. Detalhes mínimos. Desfile de inutilidades que não era destinado à sua grandiosidade. Ia a passos largos; queria um banho, queria janta, queria dormir. Queria não estar mais ali.

- Senhorita, sua identificação, por favor.

Em qualquer outra ocasião, ela gritaria, indignada. Todos sabiam quem ela era. Insulto, ultraje, era pedir que sua excelência confirmasse a existência; alguém pergunta às gaivotas se elas podem voar?

- Soryu Asuka Langley, Segunda Criança, liberada no setor...

Não ouviu. Pegou seu cartão de volta. E não entendeu bem, mas soube. Apenas ser, era o fim. O seu fim. E sorriu.

"What do you know..."

No carro, os dois se olhavam, assustados. Não era típico dela. Não era a pessoa que conheciam. Shinji e Misato estavam visivelmente desconfortáveis. Mas ela não prestava atenção nisso. A rua passava depressa pela janela, como a canção que ela murmurava, sem ritmo, sem ânimo, sem nada.

"The loneliest people..."


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