Pele E Alma escrita por Lipe


Capítulo 1
Transitamos




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/184826/chapter/1

O observo alisando os cabelos, brigando contra o vento que os bagunça. Finge uma raiva que não existe, forja um bico que logo eu sei que se desmanchará num belo sorriso, o mais lindo que os meus olhos já puderam ver durante toda a vida – e durante a morte também, claro. Essa cena me lembrou perfeitamente o momento em que ele adentrou minha casa- sua nova casa- juntamente com seu irmão mais novo e seus pais; do momento em que ele entrou no meu quarto- seu quarto-, o lugar em que um dia brinquei de carrinho, fui ao espaço como astronauta, fui cowboy e fui herói.

Ele abriu uma de suas duas malas e de lá tirou algumas mudas de roupas colocando-as no meu guarda-roupa velho. Trazia consigo uma feição triste, parecia não querer ter se mudado. Enquanto ajeitava suas roupas, algumas lágrimas brotavam dos olhos, mas assim que sua mãe entrou no quarto, ele sorriu, e limpou o rosto com as mãos: “adorei nossa nova casa mãe, obrigado”. Essa sua capacidade de querer sempre agradar a todos me impressionava. Tudo parecia bem para ele se quem estivesse por perto estivesse bem.

A família dele, os Andrade, tinha organizado uma inspeção geral na casa alguns dias antes. Limparam-na e deixaram-na nova com os pequenos reparos feitos. Alguns móveis foram mantidos, principalmente aqueles feitos de madeira, ainda belos e conservados.

Antes de prosseguir, preciso explicar um fato que, talvez já tenha sido percebido, mas vou aprofundá-lo. Meu nome é Carlos. Numa noite, do ano de 1990, voltávamos mamãe, papai e eu de uma festa. Percebi que meu pai não estava sóbrio... Havia bebido consideravelmente, mas teimava: “to bem”. Mamãe tinha completa aversão ao volante, quanto mais longe melhor e eu, um garoto de apenas 15 anos. Por fim, aconteceu a tragédia nada surpreendente quando se trata de alguém bêbado dirigindo: nosso carro caiu numa ladeira, no caminho de casa. Capotou algumas vezes e acabamos por parar, no dia seguinte, nas páginas dos jornais locais “Tragédia: família perde a vida em grave acidente de automóvel”.

Nós três morremos na hora. Eu ainda estava desnorteado, sentia fortes dores e não sabia, ao certo, o que estava acontecendo, quando percebi meus pais se abraçando e sumindo, aos poucos, envoltos por uma forte luz. Acompanhei a chegada da ambulância e permaneci até nossos corpos terem sido retirados de lá. Senti muito medo, “por que eu não partira com meus pais?”. Não sabia outro lugar para onde ir além daquele em que eu ainda pensava ser o mais cobiçado pelas garotas, o menino popular da escola, o garoto prodígio dos esportes, o bom aluno e o filho querido e amado: para a minha casa.

Às vezes, olhava pela janela do meu quarto, e avistava alguns espíritos transeuntes, andantes sem rumo, esperando a hora de partir de vez, como eu. Também perdi as contas de quantas vezes me questionei sobre o momento em que eu iria para o “lugar melhor, quando um anjo viria me buscar e me levar para mais perto da luz que eu vi envolver meus pais e os transportá-los para longe.

O tempo pesava e eu não fazia idéia de quantos anos se passaram. Tudo parecia um sonho, as imagens passavam lentamente sob meus olhos e eu me sentia triste, com saudades de tudo e, principalmente, de viver.

Durante todos esses anos minha casa havia permanecido fechada. Ninguém nunca mais colocou os pés aqui dentro e, de algum modo, havia uma espécie de campo magnético quase visível que me prendia nos limites desta casa, uma dor muito forte tomava conta do meu corpo quando eu tentava transpô-lo. Por isso, fiquei enfurecido com a chegada dessa nova família, que parecia se ocupar da minha vida – ou ao menos do que eu me lembrava dela.

Fiz muitas coisas das quais me arrependo, hoje, motivado por essa raiva toda. Várias vezes peguei a chave do carro e escondi debaixo do armário da cozinha. Os pais de Mick -ou Mogli, como eu prefiro- viviam discutindo por isso. Quem não se irrita quando está apressado para o trabalho e perde, em cima da hora, a chave que “estava bem ali, em cima da mesa de centro há um minuto!”. Que dizer então, das vezes em que eu fazia caretas para assustar o menino mais novo, irmão de Mogli, que conseguia me ver e começava a chorar no meio da noite? Ou então, quando eu entrava nos sonhos de Mick durante a noite e os transformava em tenebrosos pesadelos? Ele acordava chorando, e isso me fazia rir, muito. Aiai... “Maus-bons” tempos...

No entanto, passou. Desde 2009 eles moram aqui, ou seja, há 2 anos. Eu já me acostumei com a presença deles, não sinto mais graça em assombrá-los. Fico aqui, observando a família perfeita, o garoto perfeito e isso sim é prazeroso, isso sim anima meu espírito a “viver”.

Não sei quando isso aconteceu, esse negócio de me apaixonar por um menino. Eu sempre me divertia com as garotas, sempre tinha todas que eu desejava. Perdi minha virgindade com 13 anos, ela, então, tinha 17- foi bom, muito bom, a ponto de repetirmos diversas vezes. Nunca me interessei por um menino. Meus amigos eram só meus amigos e eu os achava idiotas-assim como eu, convenhamos.

Agora vem esse moleque, 14 anos. Grandes olhos castanhos; a pele lisa de um moreno quente, uma cor que, mesmo que lá fora estivesse frio, só o fato de seu corpo ser coberto por aquele tom bastava para esquentá-lo, muito melhor que qualquer agasalho. Seu cabelo parecia estar na iminência de escorrer pelo rosto, como petróleo de tão liso, tão negro e tão brilhante à luz do sol.

Como gosto de vê-lo assim. Sorrindo e zangado ao mesmo tempo. Ele brinca com o irmão de 4 anos, no gramado verde do quintal. E eu estou aqui, em “nosso” quarto. Algumas vezes ele olha em direção a esta janela, eu sei que pensa em mim, ele sempre me diz, enquanto dorme... Pois bem, assim como um dia eu penetrei em seus sonhos para ‘traquinagens’, hoje, continuo o visitando nos sonhos, só que para amá-lo.




Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Espero, ao menos um pouco, ter aguçado a sua curiosidade de leitor(a)para que continue a acompanhar esta história que eu prometo, passados estes aspectos introdutórios, ficará mais interessante e denso nos próximos capítulos. Prometo algumas risadas, alguns rostos vermelhos, e muitas lágrimas. E aí, está afim?



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Pele E Alma" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.