Histeria escrita por Maxine Evelin


Capítulo 1
Capítulo Único




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"Só vai ser uma picadinha." Isso foi o que aquela enfermeira gorda havia lhe dito antes de enfiar o cateter em seu braço. Sua carne coçava e suas veias ardiam como fogo.

Já fazia três meses desde que começara o tratamento de quimioterapia, suas veias estavam começando a ficar afinadas e fracas, pelo menos isso era o que a enfermeira dizia ao tirar o cateter de seu braço pela quarta vez, alegando que estava difícil arranjar uma veia que não rompesse. Carina olhou para seu braço perfurado, curativos de algodão e stop-bleeding eram meros pontos brancos em meio a carne desbotada de roxo.

Coçava e como coçava, seu braço parecia estar sendo consumido por formigas vermelhas, dessas que ela costumava levar mordidas quando pisava em um formigueiro, enquanto brincava de pega-pega no sitio onde passara boa parte de sua infância.Carina levanta a cabeça e olha ao seu redor. Pessoas correndo para lá e para cá falando em seus celulares, alguns mendigos conversando escorados numa arvore e de olho nos pedestres. A praça de Sé aquele horário costumava ser mais vazia no final de semana, mas não na véspera de natal, como de costume. Tossiu forte e roucamente, sentindo o fleuma corrompido de seus pulmões deslizar pela sua garganta e parar na boca.

Era assim, simples. Câncer de pulmão. Seu médico alegou que fora devido aos seus 20 anos de fumante assíduo, mas ela pensava que era a porra da vida lhe dando um chute por não ter desperdiçado sua vida trabalhando como uma workaholic, sem ter filhos, sem se preocupar com o meio ambiente. Sem preocupar com porra nenhuma, a não ser com o bolso.

Câncer. O diagnóstico que por um momento, parecia ter durado a eternidade. O médico simpático, de bigode francês, olhando para ela com aqueles olhos azuis frios de uma pessoa que já está acostumada com morte, analisando sua reação, esperando algum esboço de tormenta mental, de histeria.

– Quanto tempo doutor? - era a simples frase que seu cérebro em choque conseguia processar no momento, por mais clichê que fosse, era o mais próximo que ela podia dizer de compreensível.

O doutor piscou duas vezes e ao perceber que não haveria escândalo, reclinou-se em sua cadeira e suspirou. "O maldito suspirou como se tivesse pena de mim".

– O câncer já se espalhou pelo sistema, possivelmente você deveria estar pensando que era uma crise de asma forte, já está atacando o fígado que pelos exames estava num estágio, bem exaurido. As contabilidades de quanto bebia passou pela sua cabeça, enquanto o médico falava de sua condição.

"Um hi-fi de manhã, dois copos de gim com vodka após o café da manhã, um bloody mary no almoço, cinco chopes durante a tarde, e um quarto de uma garrafa de vodka para dormir a noite."

– ... estamos falando de uma metástase complicada aqui senhora Wöggel. Posso lhe... -

A mente de Carina estava anestesiada, sua cabeça acenava para o médico e sua boca fazia perguntas esperançosas, mas seu cérebro estava travado. Terminal. Eu tenho um câncer terminal. Eu estou morta.

Estava ficando engraçado encarar a situação. Ela estava praticamente uma morta-viva e o médico falava de quimioterapia como forma de prolongar a vida, pelo menos por alguns meses a mais e alguns métodos de aliviar a pressão da dor que ainda viria.

Isso foi a três meses atrás.

Agora ela se encontrava sentada em um dos inúmeros degraus de escada, que estão espalhados pela Praça da Sé. Olhando as pessoas passarem com seus ares complicados, correndo atrás do tempo para comprar seu presente de natal, algumas dessas pessoas indo para o trabalho, outras com seus ternos e gravatas e lembrou que até três meses atrás era uma dessas pessoas. Ela queria chorar, queria gritar, espernear igual uma criança birrenta. Mas no fundo, só conseguia rir. Estava num ataque de nervos, seus olhos ardiam de noites mal dormidas, seu corpo tremia da falta da nicotina. Sua garganta estava seca pela falta da bebida. Desatou a rir. Depois de morta, a consciência fala ao seu ouvido para zelar o tempo que lhe restava para a prudência.

Um homem de meia-idade, na pressa do fim de semana, jogou um cigarro aceso quase inteiro no chão a sua frente. Carina olhou devagar para aquela brasa alaranjada que consumia vagarosamente o papel e o tabaco e sentiu aquele impulso forte dos fumantes. Tossiu mais vezes, sentindo os pulmões reverberando e chiando. Olhou para suas mãos que levara ao rosto quando tossira, e notara que o sangue que as manchava estavam mais frequentes e em mais quantidade.

– Quero mais que se foda! - gritou, ignorando os olhares dos transeuntes que passavam ao seu lado e o afastamento dos outros, por talvez achar que deveria ser um acesso de crise de uso crack. Estava bem vestida, maquiada, mas mesmo assim na Praça da Sé. Qualquer um podia se passar por usuário de crack. - Já estou morta mesmo.

Levantou-se devagar aprumando a saia curta e agachou-se para pegar o cigarro. Pessoas que passavam, olhavam-na com pena em seus olhos.

Carina tragou o cigarro com aquele êxtase de poder sentir a nicotina invadir seu organismo, de sentir o carbono queimando seus pulmões cancerígenos, de se sentir novamente escrava do cigarro. Mas o êxtase trouxe enjoo e tosses, ela largou o cigarro no chão e desatou a tossir, sentia o ar sair ríspido pela garganta, o barulho de um ronronar de um felino velho ao tentar inspirar, Escarrou e viu o fleuma sangrento misturado a gordura escorrer pela superfície de uma mureta de canteiro. Aquela coisa preta escorrendo, aquilo lhe causou um choque, aquilo era ela, ou pelo menos fazia parte dela. Ela estava se tornando aquela coisa preta. E desatou a rir. Ria como se lembrasse da piada mais engraçada do mundo, que os outros jamais entenderiam.

Uma piada que só fazia sentido para ela.

Desceu as escadarias do metrô devagar, escorando todo o peso de seu corpo no corrimão de alumínio, os olhos enchiam-se de lágrimas, mas a garganta não parava de gorgolejar aquela risada pneumática em meio a tossidas altas e convulsivas. Quando ela chegou ao solo, e olhou para cima, todos pareciam observá-la. Ninguém entendia o motivo das risadas. Olhavam-na com nojo, repulsa e com medo. Deveriam estar pensando que raios essa doida está fazendo, duas mães pegaram seus filhos e puxaram para mais perto de seus corpos. Carina caminhava devagar sua visão avermelhando suavemente a cada passe, a piada estava ficando mais forte e a histeria tomava conta de seu corpo agora. Gritou, espirrando sangue e fazendo filetes de saliva escorrer de sua boca. Ninguém entendia a piada. E era a mais engraçada do mundo, tinha que contar aos outros ela.

Dois seguranças, passando a catraca vieram em direção a Carina. Nenhum deles parecia entender a piada, tanto que um deles, um rapaz de no máximo vinte cinco anos e porte atlético, aproximou-se e perguntou de forma casual, se estava tudo bem.

"Nenhum deles realmente se importa comigo, eu já estou morta mesmo."

Carina saltou em seu pescoço e enfiou o dedo indicador dentro do olho do segurança. Este berrou de dor e deu uma cotovelada na costela esquerda de Carina, que ao cair no chão girou o corpo como num parafuso e ficou de quatro. O outro segurança, um homem velho de cabelos grisalhos, ainda sem compreender o que acontecia levou a mão para o coldre, Carina percebendo o movimento se jogou para frente, pisando com os dois pés no peito do rapaz caolho e saltou em direção ao rosto do segurança.

– Ahahahahahahah! - Carina dava uma risada grotesca e esganiçada, enquanto arrancava os lábios do segurança com uma mordida. O rapaz tremia, o buraco onde ficava seu olho direito jorrava sangue e seu corpo estava tremendo em choque anafilático. Ele assistiu a mulher esmurrar a cabeça do companheiro de trabalho no chão, e ouvir o barulho deste rachando com o impacto. Assistiu a brutalidade com que a mulher matava o homem com a visão começando a escurecer, observou as pessoas correndo do local gritando, enquanto a mulher ria enquanto esmagava a cabeça contra o chão. A coisa preta escorrendo de sua boca e olhos. Ouvia o gorgolejar da risada pneumática dela. O mundo perdia sua intensidade, sua cor era igual ao monocromismo da coisa preta que escorria pelo chão e pela roupa da mulher como piche.

Sua mente divagava com a dor e a urina quente escorrendo pelas suas calças era a única sensação que sentia. Viu um policial militar descer correndo as escadarias empunhando seu revólver, sentiu a visão embaçar e viu a mulher correr em sua direção, rindo histericamente. Piscou e quando voltou a abrir o olho, a mulher já jazia espichada no chão do metrô. Um buraco de bala um pouco acima do olho direito e seu corpo contorcido com a coluna arqueada para trás como a menina do exorcista. Viu que seus olhos estavam acinzentados e de sua boca escorria uma coisa preta. E antes de fechar os olhos, havia um sorriso em seu rosto e uma lágrima escura escorreu por sua face, já que também entendera a ironia da piada.


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Notas finais do capítulo

Obrigado, vocês leitores fiéis por lerem novamente um conto meu após um hiato tão grande.

Prentendo voltar a continuar postando contos com uma frequência maior.

Agradeço por tudo =]

Até mais.



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