Choque de Sensibilidade escrita por Candice


Capítulo 1
Choque de sensibilidade




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- Choveu muito.

- Ainda está chovendo.

- Não está.

- Está.

- Não está.

- Está, querida.

- Não está. E tenho dito.

- Está.

- Pare de ler esse livro. Olhe para mim enquanto eu estiver falando com você.

Ele direciona o olhar para ela:

- Está.

- Não está.

- Esse jogo de “estar e não estar” fez-me lembrar da sexta-série do Ensino Fundamental.

- Algum acontecimento especial na escola em um dia chuvoso? Quero dizer, em uma aula que aconteceu DEPOIS de um temporal.

- Não. Uma aula de Português em que a professora insistia que deveríamos decorar os Verbos de Ligação. Como estava difícil, criei um rap para me ajudar a decorar.  

- O nome do rap era “Estar”.  Adivinhei?

- Não. Mas esse verbo, símbolo incontestável da representação da transitoriedade, se fez presente no rap.

-  Cante.

-  “Ser, estar, parecer, continuar, permanecer, ficar, andar, tornar-se”.

- Pensei que tinha sido um rap mais criativo. Menos linear.

- Quem se importa com criatividade em uma aula em que a professora pensa que ensinar é fazer os alunos decorarem verbos descontextualizados?

- Alguém que tenha bom gosto, como eu.

- Ou que seja ácida!

- Não sou ácida.

- É.

- Não sou.

- É. E posso sentir.

- Não sou. E  se fosse, não mudaria o fato de que não está chovendo.

- Está. E eu até arriscaria dizer que estou presenciando o cair de uma chuva ácida.

- Odeio suas piadas.

- Aprendi a conviver com isso.

- Odeio quando discorda de mim.

- Com isso, também.

- Custa concordar comigo uma única vez? Não está chovendo.

- Custa. Porque se eu concordasse com você, seria o mesmo que admitir que não esteja chovendo.  E isso seria uma mentira. Não estou disposto a mentir só para concordar com você.

- Você nunca está disposto a nada.

- É, não estou. Isso quer dizer que essa sua última fala, uma pretensiosa tentativa de me induzir a “discutir a relação”, falhou.

- Assim como a sua tentativa de me convencer de que ainda está chovendo.

- Mas está.

- Não está.

- Ok, querida...

Ele se levanta. Coloca o livro, cuidadosamente, sobre a cadeira em que estivera sentado durante todo o tempo em que dialogavam, ou pelo menos, tentavam dialogar. Dirige-se até ela, que fica imóvel.  Ele abre um meio-sorriso, passa sua mão direita entre os cabelos dela. A pega no colo.  Vai em direção à porta. Com dificuldade, gira a maçaneta, empurra a porta, de uma maneira meio desajeitada. Ela olha assustada, mas não fala nada. Não podia vacilar. Não podia demonstrar fraqueza. Ele dá alguns passos e se aproxima de um banco de madeira que se encontrava no jardim. Olha, mais uma vez, para a mulher, mas, dessa vez, sem sorrir, e a acomoda no banco. Ela ameaça falar algo, ele coloca, carinhosamente, a mão sobre sua boca e diz:

- Fique aí por meia-hora. Depois, entre e me diga se parou de chover.

Antes mesmo que ele possa se virar e seguir em direção à porta, a mulher se levanta, com as roupas respingadas e diz-lhe, com visível desprezo, ou ódio, ou intensidade:

- Grosso!

- Não.

- Sim, você foi um grosso!

- Não, querida.

- Sim. Grosso e insensível!

- Não! Eu só queria te fazer SENTIR a chuva. Você sempre me diz que eu devo tentar sentir suas palavras, suas atitudes, seus sentimentos. Achei que estava fazendo a coisa certa.

- Eu é que farei a coisa certa...  quando sair por aquele portão e nunca mais voltar.

Ele ainda murmura algumas palavras, algo sobre essa atitude, ir embora, demonstrar que ela estava sentindo o relacionamento deles. Mas ela não diz e nem escuta mais nada. Sai. Anda em direção ao banco de madeira. Fica, por alguns minutos, observando a goteira que caí no banco.  Pensa em fazer um gesto com a mão direita, uma tentativa de cortar o curso da água, mas logo desiste. Ela já tinha perdido para aquela goteira uma vez, naquele dia. Em um segundo confronto, seria uma presa mais fácil.  Começa a andar rápido, abre o portão, e em poucos segundos, já está na rua. Logo é acompanhada pelos raios de sol que começam a surgir no céu. Ela está certa. Sempre esteve.  Sorri. Ninguém pode lhe roubar aquele momento de triunfo. Ergue a cabeça, e grita:

- NÃO ESTÁ CHOVENDO!

 

***


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