(c) o Ciclo das águas escrita por Greyheart


Capítulo 1
Único




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Fazia muito tempo que aqueles pés não tocam as areias brancas, polvilhadas de pequenas rochas marítimas e algumas espécies de seres vivos. Siren cresceu naquele lugar e o tinha como lar até alguns anos atrás. Aprendera a nadar naquela praia, a pescar e dançar também. Cada grão que se agarrava em seus dedos fofos e calcanhares um tanto inchados parecia saudá-la com uma calorosa recepção de boas vindas.

Trajando um vestido de linho leve com bordados coloridos em tons bebê, ela trazia nos braços um grande ramalhete de flores das mais belas e ricas que encontrara assim que desembacara no aeroporto naquela manhã. Sua pele morena contrastava com aquelas primorosas obras da natureza de cores variadas e vibrantes. Pequenos botões, pétalas que escorriam e muito do pólen que voava impulsionado pelo vento.

Seu coração pesava e seus olhos se faziam embaçar em cada passada. Trêmulos, os dedos das mãos alisavam o ramalhete como se com aquela brisa litorânea fosse capaz de desmanchá-lo a qualquer instante. Era o medo que marcava presença.

Chegou no trecho que queria e voltou-se para trás deixando de fitar o mar de ondas esverdeadas e cristalinas. Procurava um ponto no horizonte e assim ficou por alguns minutos. Estreitou os olhos, sentiu as águas correrem matreiras por seus pés e livrá-los da branca areia. Fechou os olhos e neste instante grossas lágrimas rolaram, como se apostassem corrida rumo ao colo de seu seio, lavando-lhe a alma e libertando-a de toda dor.

Ela não estava em condições de se prostrar, deitar na areia e chorar, como tantas vezes no passado fizera. Não arriscaria. Não agora, ela ainda não confiava nele. Novamente o medo dava sinais.

Quando abriu os olhos vislumbrou aquela arquitetura que até mesmo em alto-mar seria capaz de identificar: a do hotel onde trabalhara até 4 anos atrás. Algumas mudanças se fizeram necessárias mas, a estrutura ainda era a mesma. Teria Siren coragem de chegar até lá?

Como se tomada pela consciência de que deixara Duncan no carro e ele certamente já estaria preocupado, ela apressou sua cerimônia pessoal e se voltou mais uma vez para o mar. O som das folhas das palmeiras mais fortes, que resistiram ao desastre, lhe cantava aos ouvidos. Era o anúncio de que em breve o mar ficaria ainda mais bravio pois era a época de maré alta. Devagar, sem se importar com a água que seguia molhando a barra do vestido, depois as canelas, os joelhos e as próprias coxas, ela entrou no mar e ficou admirando o monstro que agora parecia um gigante adormecido.  No fundo sabia que não era apenas ele que ali dormia.

Entoou em sua língua materna uma oração sincera, de resignação, de compreensão, de saudades e agradecimentos. Nesta data, exatamente 4 anos após a tragédia que marcou para sempre a sua vida e de todos que conhecia, ela reunira forças para voltar e saudar seus entes queridos que como muitos foram recolhidos pelo mar e cujo corpos jamais puderam velar.

- O mar dá... o mar mantém... o mar tira... somente para poder tornar a dar...  - ela sussurrou com a voz rouca ao final, enquanto esmiuçava com cuidado o ramalhete e oferecia cada ramo florido em memória de um parente, familiar ou amigo. Logo, o laçarote que o envolvia, branco como o vestido de linho, se jogava arredio de encontro ao mar e ela o fitava com incontido interesse. Sentia-se como aquele laço, acreditava que nunca estaria totalmente apartada daquele paraíso que em poucas horas se tornou o seu maior pesadelo, entretanto, ainda habitava o seu coração.

Sem notar qualquer aproximação, Siren foi envolvida em um abraço terno e aconchegante e recebeu de olhos bem fechados um carinho na nuca desnuda. Com um coque que prendia seus cabelos brilhosos e extremamente negros ela se virou e encontrou o par de olhos que eram sua nova morada, seu porto seguro, o abrigo de seu espírito ferido e magoado. Lá estavam elas, as duas esferas azuis.

Os pais, dois irmãos e a avó de Siren foram sugados para um fim inevitável e desde o momento em que soube que sua vila havia sido reduzida a entulhos e lama não lhe restara à esperança de encontrar nenhum deles nesta vida. Pouco depois ficara muito perto do precipício também. Sem lar, sem amigos, sem família, sem vontade de viver, até que um escocês que dividira com ela o quarto no hotel durante os mais intensos momentos de terror e agonia revelou-lhe que desde o momento em que pusera os olhos nela (semanas antes do desastre) sabia nutrir-lhe o mais puro carinho, afeto e gostaria que ela considerasse lhe namorar.

De imediato ela reconhecia que não o amava e nem esperava que com ele fosse à mesma coisa. Pensava que para ele, até então, ela era apenas a garota que fazia a cama, trocava as toalhas e lhe entregava o café com jornais todas às manhãs. Para Duncan não era muito diferente e ele se preparara com antecedência para ouvir um forte e sonoro não, pois, sabia que para Siren ele podia não passar do turista louro que deixava boas gorjetas ao sair. Depois de muito refletir, ela percebeu que essa poderia ser a chance de recomeçar sua vida e sendo assim permaneceram o tempo suficiente em Aceh (na Indonésia) apenas para a legalização dos passaportes e a definição da rota. Tempos depois foram embora para Edimburgo.

- Fiquei preocupado, achei que estava demorando... - ele disse com os lábios colados em sua orelha e sussurrando ao seu ouvido.

- Apenas fiz o que vim fazer... - Siren respondeu um tanto melancólica, enquanto batia as palmas das mãos, tentando inutilmente livrá-las do pólen.

- Eu... sei... - Duncan assentiu, depositando o queixo quadrado no ombro moreno e descoberto da esposa enquanto com as duas mãos alisava sua barriga bastante arrebitada - Vocês estão bem?

- Sim, estamos. Um dia, ele saberá de tudo e também poderá vir aqui conhecer e honrar seus antepassados - a gestante então se virou para o esposo e deu-lhe um apaixonado beijo antes de começar a arrastá-lo de volta para a areia, de braços entrelaçados.

- E nós viremos com ele... - o marido apenas replicou.

Siren e Duncan fizeram o caminho de volta para o carro em silêncio, compartilhando o solene momento em que se despediam daquela praia paradisíaca e de ondas hercúleas.  Mesmo quando calmo e em condições normais, antes de alcançar a rebentação, a formação daquelas generosas ondas causava certo desconforto ao se olhar. Essa, infelizmente, seria para sempre uma das heranças daquele fatídico dia.

Durante o percurso, por eles passou um grupo de pessoas que trazia incensos, pequeninas coroas floridas e vasilhas com filhotes de tartarugas-marinhas graciosas que pulavam e esbarravam umas nas outras na tentativa de pular direto naquele espumante mar. Com um sorriso único nos lábios, uma das mulheres do grupo encarou o casal e lhes cumprimentou. Ambos pararam para observar o momento em que as eufóricas criaturinhas seguiram espalmando suas nadadeiras de encontro as pequenas ondas que finalmente as conduziriam para o além-mar.

Siren pensou nelas como mensageiras da paz e pediu que ao menos uma delas pudesse voltar ali anos depois e recomeçar o curso natural das coisas. Foi nesse momento em que a ex-moradora de Aceh finalmente encontrou a paz que tanto procurava, não por conformismo mas, por perceber o quanto somos pequeninos diante dos grandes acontecimentos da vida. E o tsunami certamente fora um dos maiores que já existiu.


"A homenagem que lhes faço é como o sorriso desta mulher, puro, sincero e desinteressado. Só agora percebo que o grande gigante se tornou ainda maior, pois, apenas os levou para com ele adormecer..."


...


Até 26 de Dezembro de 2008, Siren procurava informações, acessava sites especializados, pedia respostas ao seu Deus, investigava em livros históricos e nada parecia ser o suficiente para justificar o acontecimento, até que ela percebeu que pode não existir uma única explicação para O Ciclo das Águas... ao menos não entre as que ela pudesse compreender.


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Notas finais do capítulo

:: Independente de qualquer que seja a sua opinião sobre o organograma desta tragédia, lembre-se de fazer a sua parte: colabore para a existência de um planeta saudável e lembre-se que a Terra responde às nossas agressões, cedo ou tarde ::