A herdeira de Gotan
Prólogo
A garota alta de longos cabelos loiros e lisos está dançando, movendo-se sem parar e sem se dar conta de seus movimentos. Não importa como está dançando, ela só quer dançar e expulsar de dentro de si seus piores demônios.
Carrega um peso grande, carrega uma dor maior ainda, mas ninguém se importa, ninguém dá a mínima. Tudo o que querem é que ela beba mais um gole de bebida porque assim fica bem mais fácil levá-la para a cama. Levar aquele corpo belo, alto, esguio, deitá-lo numa superfície lisa e macia e fazer o que quiser com ela – porque vai estar bêbada demais para reclamar ou porque eles não vão dar a mínima para as reclamações dela.
Ninguém se importa com a dor que sente. Eles não querem saber o tamanho da ferida que ela carrega em seu coração ou se o câncer que carrega é maligno ou benigno. Ninguém dá a mínima, é só pelo corpo. É só por aquelas pernas, por aqueles seios e por aqueles lábios finos que não conseguem se contrair num sorriso.
É um sorriso nervoso, meio torto, meio descontrolado, mas nunca esteve tão bonita quanto está agora – e provavelmente vai estar ainda mais bonita no dia seguinte; ela herdou os genes da beleza. O vestido verde sem alças, ela fica puxando-o para cima o tempo todo. Como eles queriam que ela não fizesse isso... não se importariam que ela dançasse nua no meio de todas aquelas pessoas. Não, eles ligam e ela também não ligaria, não se bebesse mais um copo. Então eles chamam o garçom, fazem-na beber mais daquele líquido branco, tão branco quanto seus brincos de argola em ouro branco puro e tão branco quanto sua pele. Falta de pigmento, um deles aprendeu uma vez na escola. O albinismo é definido pelo alelo do cromossomo A, que não produz pigmento.
Mas quem se importa? Falta pigmento, falta decência, falta puxá-la para um canto qualquer e beijá-la, morder os lábios dela sem se importar se vai doer ou não. Ela não reclamou, deixou-se ser beijada, deixou que ele a tocasse onde e como quisesse. Tudo o que queria era que levasse a dor embora. Por mais que bebesse, por mais que dançasse, por mais que ocupasse a sua mente, a dor não ia embora nunca.
Dor maldita, maldita, maldita.
Xingava em voz alta e o homem achou que era por causa dele, mas sorriu e continuou dando estocadas enquanto ela agarrava o cabelo em sua nuca. Estava começando a doer, mas ele também estava começando a sentir prazer e foi irônico que quando estava prestes a gozar os dedos dela se afundaram sobre o crânio dele. Ele não sabia, não tinha como saber. Ela era forte, muito forte. Por mais que a dor a tornasse fraca, ainda era forte. Podia quebrar um carro e seria como quebrar uma avelã. Quebrar um crânio humano, mais fácil ainda, era como um palito de dente.
Mas quando se deu conta de que as estocadas haviam parado e que seu vestido branco estava todo sujo de sangue, era tarde demais. Estava sentindo prazer e o gesto de apertar o crânio dele não tinha sido de propósito, fora involuntário.
Empurrou o corpo dele para longe de si, sentindo nojo de mais para sentir pena também. As pessoas continuaram a dançar, não se deram conta do homem que jazia morto no chão. Nenhum deles percebeu a menina chorando, abraçada a si mesma, que tentava se consolar e que estava sozinha num bairro estranho com pessoas estranhas. Além disso, sozinho é sempre mais perigoso.
Ela estava compulsiva demais para perceber quando ele se aproximou, quando ele viu o corpo do homem no chão e fez uma careta de nojo, depois viu a calcinha dela rasgada e entendeu tudo. Sentou-se ao lado dela, não se importando com o sangue do homem espalhado e puxou-a para si, deitando a cabeça loira dela em seu peito. Ela imediatamente reconheceu aquele cheiro.
- Eu sinto muito, Adam.
- Eu também, Lara.
Continuaram abraçados, ela soluçando e ele afagando seus cabelos. Tirou a peruca e colocou-a de lado, e então pôde acariciar os cabelos pretos e curtos. Era como se estivessem de volta àqueles dias.