Ertrankt escrita por petit_desir


Capítulo 8
Capítulo 8 - Angelique du Coudray (1ª parte)




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/17610/chapter/8

1980.

23h12min. Tokyo,

Oceano Pacifico, região do Japão.

 

 

- Levará algumas horas até que o barco chegue à propriedade, senhor.

- Sem problemas, tenho algo para me entreter. Fico grato.

- Sim, quando estivermos perto, eu o aviso, hai.

- Obrigado.

- Senhor, o que fará lá? Não tem nada naquela ilha...

- Há sim algo, uma casa. Minha nova propriedade. Obrigada, irei me deitar.

- Certo.

 

E ele se dirigiu à pequena cabine, com sua maleta em uma das mãos. Ao entrar, logo trancou a portas e abriu a janela, que não dava ao convés. Tirou um pequeno caderno de capa de couro de dentro da maleta, e o tomou entre as duas mãos, mas logo o colocando de lado, em cima de um pequeno banco ao lado da cama. Retirou então um cd da maleta, qual colocou no pequeno rádio. Sonata Op. 27 n. 2, 1° movimento. Sim, Moonlight Sonata. Raphaël a adorava, com todas as forças. Quando finalmente se sentou, novamente tomou o caderno nas mãos e abriu, na primeira página.

 

- - -

 

 

 

A festa continuava do lado de dentro – na qual não fiquei nem cinco minutos. O jardim onde estava, havia vigas de bronze fundido, com cerca de quatro metros de altura, elas seguravam as toras de bronze que fazia o “teto” daquela estrutura. Pelas vigas cresciam várias primaveras nas tonalidades rosa e vermelha; mas uma delas era diferente. Ela ficava bem na viga central, crescia contornando-a, formando um caracol. Ela era grossa e antiga, sua folhagem era em um tom de verde musgo, uma cor fusca demais. Mas o que mais chamava atenção nela, não era sua cor ou seu esplendoroso tamanho, e sim suas flores. Eram brancas pérola; quase transparentes, e na luz do luar pareciam cintilantes.

O chão daquele local era de mármore preto. E envolta daquele local com piso, havia um cercado com grades de bronze trabalhado, todos em arcos góticos – isso entrega um pouco a idade desses adoráveis ferros roubados de alguma mansão do interior do país. As venezianas iam do chão ao teto, no estilo francês - mas isso era óbvio, pois aquele prédio era do começo dos tempos de Revolução Francesa... -, apesar de ter passado por uma restauração e uma reforma recentemente. Seus vidros eram todos talhados com arcos góticos também, e aonde se encontravam os desenhos, eram mais lisos do que o resto, que se tornavam fusco para que a imagem fosse valorizada desse modo. Pequenos querubins brincavam entre aquelas janelas, saltitantes e vivos, fazendo com que nós, quem os via, realmente achássemos que eles saíram pulando daquelas janelas e viessem brincar em torno de nós.

Em volta desse pequeno terraço, havia grandes árvores verdes e a Primavera que era muito generosa naquele ambiente. Entre as árvores, havia uma fonte redonda, na qual o chafariz saía do centro da bacia e a água jorrava rapidamente para cima assim caindo suavemente no restante da grande bacia. Havia também algumas carpas douradas e alaranjadas. Tinham um tom metálico que de longe dava para se ver os reflexos luminosos. Eram gordas e bem alimentadas, também. Normalmente, crianças mais novas que vinham até minha casa costumavam dar migalhas à elas, como forma de entretenimento.

Perto da fonte, havia um banco de metal, como também havia bem no centro do terraço, um grande e confortável sofá e uma poltrona grande também, de madeira com enormes e confortáveis almofadas. Eram feitas sobre medida, pretas com finas e delicadas listras brancas cintilantes. Algumas almofadas também se espalhavam pelo chão, onde normalmente, como éramos em muitos na hora do chá, alguns se sentavam no chão, envolta da mesa de centro. Infindáveis conversas foram perdidas entre aquelas almofadas. Esse foi o último lugar que estive em minha casa, antes daquela noite. Sua imagem dentro da minha cabeça era clara, único. Por mais que tivesse sido o lugar onde eu cresci, o lugar onde passei a maior parte da minha vida, era como se eu olhasse um retrato e o descrevesse...

 

 

A lua hoje brilhava forte, apesar das densas nuvens. As estrelas sumiram, mas, a lua jamais seria apagada do céu tão facilmente. Eu estava de pé ao lado da fonte, olhando para as gordas carpas que se assustavam comigo. Nadavam para longe do meu olhar, tinham medo de mim, pareciam confusas e desajeitadas. Um vento frio era constante e sempre levantando meu vestido. Era apenas apertado no busto, fazendo com que o resto fosse solto, à moda antiga. Ele deixara meus ombros e minhas costas nuas. O tom era apagado, entretanto, como a maioria das coisas que eu sempre usara. Jamais fui adapta de cores vivas ou deslumbrantes. Não condiziam com meu espírito de alma.

Minha atenção ainda estava voltada para as carpas, aos poucos elas se aproximavam de mim e das migalhas que eu jogava na fonte. Eu estava entediada. Era como se fosse uma regra. Tudo em volta de mim, conforme eu crescia, se tornavam um retrato fiel ao tédio. Perdida em pensamentos como estes, foi quando eu senti uma mão pousando em meu ombro. Naturalmente, o gelado dela não me foi estranho, uma vez que aquela noite fazia frio, muito frio. Os dedos finos me lembraram os de meu pai, e foi quem eu imaginei que fosse. Coloquei minha mão sobre a que estava em meu ombro e me virei gentilmente.

Surpresa.

Era uma face completamente estranha. Jamais havia a visto, entretanto, me senti atraída por ela. Branca como o mais puro mármore, as maças em seu rosto era retas, quase sem movimento. Tinha um ar duro, frio. Era como se fosse de metal. Sua testa não palpitara, sua garganta não se movimentara e nem o peito arfara. E o que mais me assustava, não era isso, eram seus olhos azuis e profundos. Não passavam nada, entretanto, não tinha o ar turvo, confuso. Perturbado. Eram apenas olhos azuis, como nunca eu havia visto. O arco de sua boca era redondo, muito bem feito. Seu cabelo era loiro e liso, estava penteado para trás. Seu rosto era angelical, por mais que ele passasse frieza. Parecia um anjo enviado dos céus. E eu talvez já soubesse disso, que ele era um anjo caído. Um renegado. Meus olhos pendiam em seus lábios e logo eles se movimentaram e ele começara a falar:

- Estava sozinha aqui...– Os lábios pouco se movimentaram, fazendo com que sua voz fosse baixa demais, sedutora por conseqüência... -, você está bem Angelique?

Então, como uma carga energética, eu consegui voltar ao normal... Meu olhar se tornara de indiferença, como normalmente era. Mas ele, ah, ele continuava com aquele olhar tão indiferente quanto o meu, gelado quanto o meu... Mas, era sedutor também, deste aquele no início. A sedução exercida por ele, não era apenas por que esse homem era muito bonito, mas, o gelo nos prendia. Ele percebeu que eu não iria responder, bem provavelmente, e logo voltou a falar:

- Você acha mesmo meu olhar sedutor? – E um pequeno sorriso nasceu, mas, logo desapareceu. E por um momento, me pareceu que ele não se permitira sorrir. Voltei meus olhos para o chão, me sentindo cansada de repente; sem forças para encara-lo tão diretamente. Foi então que me dei conta que ele pareceu ler meus pensamentos, voltei a encara-lo e eu pude ver no reflexo dos seus próprios olhos, a fúria nos meus.

- O que posso dizer, como sabe isso? – Uma voz fria surgiu dentre meus lábios. Eu esperara que fosse certeira, que o intimidasse, mas, nada em sua expressão mudou. Ele finalmente tirou sua mão de meu ombro, uma vez que eu a havia esquecido. Colocou dentro do smoking que usava e voltou-se para o céu, encarando a lua.
- Eu? Eu leio pensamentos, minha querida – Sua face era nítida, pelo pouco que pude ver, sendo tão mais alto que eu e mesmo com a ajuda de meus saltos, não podia olha-lo perfeitamente desse anglo. Quando se voltou para mim, estava com sorriso ingênuo, como de uma criança –, estou brincando, a maioria das pessoas acham isso, apenas concluí que você também pensasse assim.
- Me ofende ouvir que o senhor me acha como a maioria das pessoas – Seu sorriso desapareceu, como se estivesse com repensando no que dizia, e recomecei -, mas se o senhor me acha como a “maioria das pessoas” vá conversa com as pessoas lá dentro, as quais vivem de aparência. Talvez não tenham cérebro o suficiente para perceber a profundidade de suas palavras, meu senhor, e tão pouco, o deboche em suas palavras – dei uma pausa, e retornei a falar -, deixei-me em paz com meus pensamentos, por favor.

Ele me fitou por alguns minutos, com sua face inexpressiva. Disse devagar, com um sorriso novamente pequeno e em um tom alegre:
- Perdoe-me se a ofendi, Angelique, não era minha intenção – Esperou alguns segundos antes de recomeçar -, me conte mais sobre esses seus pensamentos, acabou por me deixar curioso...

- Eles não vêem ao caso, creio eu, que o senhor não está aqui para isso, não é? – Disse eu com um tom de indiferença - O que quer, afinal?
- A festa está relativamente cansativa – Um sorriso sem graça surgiu em sua face, mas, eu não soube dizer se era comigo ou com o que acabara de dizer -, estava atrás de um bom entretenimento, afinal, o circo lá de dentro me incomodava um pouco com suas palhaçadas sem fim – E apontou para cinco mulheres que estavam diante da porta nos fitando, com certa curiosidade – As conhece?
- Infelizmente – Respondi, rispidamente -, são minha primas e minhas irmãs.
- Perdoe-me – Sua face continuou fechada, como se não tivesse dito nada -, de maneira alguma quis ofender você ou sua família.
- Não ofendeu. Também não as suporto. – Voltei-me para fonte, lugar que jamais devia ter desviado os olhos. Esmigalhei mais um pouco de pão, entre os dedos e continuei: - Tenho asco por cada uma. Quando estou com elas, é como se me sentisse sozinha. Ninguém está lá, são apenas corpos.
- É claro. – concordou ele, postando-se ao meu lado.

 

Todas elas eram morenas, com seus cabelos lisos nas raízes e encaracolados nas pontas. Tinham olhos verdes, superficiais demais. Eram sim bonitas; seus rostos eram ovais, seus corpos altos e magros, seus seios eram fartos, e tinham curvas bem definidas, entretanto. Tinham todas portes atléticos. E enquanto eu, ah, eu era “o patinho feio”. Era baixa perto delas – ou de qualquer um -, meu cabelo era encaracolado das raízes a ponta, e era longo... Batia no meio das costas. Loiro, quase dourado, meio cinza. Meu olho era uma outra variação do verde, ele era puxado para o mel, e às vezes para o castanho. Não tinha seios fartos, tão pouco, curvas bem feitas; não era quase igual à elas. Não havia muitas semelhanças entre nós. Eu era apenas a caçula dos Du Coudray, a boneca.

Graças à Deus, nossas cabeças eram totalmente diferentes também. Eram fúteis e burras. Conversar com elas era o mesmo que falar com portas – apesar, de eu suspeitar que portas seriam mais inteligentes que elas. Falavam apenas de suas corridas de cavalos, chás no parque, e de como viviam atrás de um homem com porte, belo, rico para se casar. Eram mulheres para se casar – ou achavam que eram.

Reprimiam-me por que eu estudava, passava horas fissurada em livros, estudava de noite e de dia. Costumavam dizer que eu nunca casaria desse jeito, que burra era eu, que não ia atrás de homens para forma uma família, para ter uma vida boa, ter filhos.

Costumava rir delas e isso as enfurecia, mas não me importava. Eu estava bem assim.

Era eu a mais nova da família; tinha apenas catorze anos. Todas elas já estavam com dezenove e vinte anos e se achavam velhas. Em noites que meus livros não me satisfaziam, costumava ouvir-las conversando por trás da porta para dar risada - isso era um bom passatempo para alguém como eu...

Alguém como eu. Pensamentos como este vivam dentro da minha cabeça, como alguém como eu poderia ser tão diferente? Tínhamos o mesmo sangue, a mesma criação, tudo igual e ainda assim, éramos completamente diferentes.

 

Meus pensamentos foram finalmente cortados por uma vontade incontrolável de falar, uma vez que reparei que este homem, qual eu ainda não sabia o nome, continuara ao meu lado.

 

- O que lhe disseram? – Perguntei, quebrando o silêncio.
- Perguntaram qual era a minha família, de onde eu vinha, afinal, meu sotaque não era parisiense, tão pouco francês. – Eu prestara atenção em seus lábios, mas, era como se eles pouco se movessem. Sua voz ainda era baixa, parecia um sussurro. Com meus olhos presos nele, percebi como sua pele ficara mais clara quando a lua apareceu finalmente por trás de algumas nuvens. – Se importa se eu as provocar?

Soaram novamente baixas e eu não entendera as suas palavras, mas antes que pudesse se quer começar a compreender, ele passara um dos braços em volta de minha cintura e com o outro tomara meu pescoço, de uma forma cordial, me juntou a ele. Era quase cinematográfico. Nossos corpos ficaram colados, juntos um ao outro, sem que houvesse qualquer espaço entre eles. Pudera sentir o gelado de sua pele, mesmo por baixo da camisa que usava. Era firme, duro. Como uma estátua. Nunca havia visto alguém assim, e de alguma maneira isso me espetava. Seu corpo era forte e elegante, com porte de um perfeito príncipe. Não devia ter mais que ter vinte e cinco anos. Seu rosto era jovem, mas tinha certa maturidade enrustida. Não parecia um adolescente, mas, também não parecia um homem vivido. Era muito preservado, caso fosse. Pela maneira que havia colocado a roupa, entretanto, mostrara que era um perfeito boêmio e mesmo pelas coisas que dissera, era o que aparentava... Entretanto, caso o fosse, não estaria como estava agora, intocável. O único vestígio que entregava o estilo de vida, além da roupa, era as olheiras que pouco se aprofundavam em seu rosto reto. Tudo isso me deixara confusa, não sabia o que pensar e naquele momento, eu só sentia seus braços firmes em meu corpo, me enlaçando.

 

Ele se inclinara para frente com os olhos abertos, vidrados nos meus. Me beijara, como se fosse algo fácil, como se fosse experiente... Primeiro apenas pousou os lábios sobre meus lábios e logo depois, colocou sua língua delicadamente em minha boca. Era como se ele estivesse tirando minha virgindade. Era lento, sem pressa. Me deixara pronta, era isto que me pareceu. Senti certo receio, principalmente quando a minha “fome” aumentara. Era como se ele apenas abrisse o caminho para algo mais... Ele parara quando percebeu que eu estava com medo e sussurrara em meu ouvido “sem medo”. E a mordendo delicadamente, fizera com que me fizesse soltar um suspiro longo e profundo.

Lembro de como beijara meu pescoço, devagar e suave. Eu apenas sentira seus beijos, sem me mover... Mas, minha expressão deveria entregar o estado de êxtase que ele me proporcionara. Os lábios frios causavam-me leves arrepios, que eu pouco conseguia conter os suspiros ofegantes que inconseqüentemente minha pouco tendia a deixar escapar.

Quando finalmente voltara a beijar minha boca, lentamente, passando a língua entre meus lábios – e como ela era incrivelmente gelada também! -, ele me lembrara dos ensinamentos bíblicos... Adão e Eva, como ela o tentaram com o fruto proibido... mas, como resistir a tal doçura, uma vez provada? Suas mãos acariciavam minhas costas levemente, mas logo ele parara de beijar minha boca. Ele me olhou bem fundo e eu sabia que na verdade, era seus braços que me deixara de pé, pois conseguia sentir minhas pernas bambas por cima dos saltos altos. Minha boca não se fechava e eu respirava lentamente, meus olhos cheios de molhados, e eu, levei a mão a boca, limpando as beiradas do lábio. Ele a tomou diante de mim, e colocou um dos dedos em sua boca, mordendo-o com seu canino... Isso me fizera sangrar, mas ele lambeu o ferimento e, depois levou minha própria mão a minha boca, pude sentir o pouco de sangue que restara, mas, não soube dizer como isto lhe proporcionaria qualquer tipo de prazer... entretanto, o momento...  Talvez isso lhe desse prazer, por ser o mais selvagem que poderia fazer em uma situação como a nossa...

Ele recomeçara a me beijar. Eram profundos e deliciosos, eles transmitiam um fogo forte e saboroso, principalmente por que pareciam de alguém experiente, de alguém que sabia o que fazia.

Não me lembrara entretanto, quanto tempo fiquei hipnotizada por ele... Deve ter durado por volta de quinze minutos, ou mais ou menos. Não soube ao certo. Quando parara de me beijar, olhei para a veneziana aberta e vi cada uma das cinco olhando para nós com uma cara de espanto. Ao voltar meus olhos para aquele incrível anjo loiro, não soube dizer se realmente fizera o que fizera para provoca-las ou para estar comigo. Seus olhos me deixaram confusa. Durante todo o nosso momento, ele não os fechara. Apenas me observara e eu talvez soubesse que para sempre eu seria observada por aqueles olhos.

Engoli a seco, me soltando de seus braços. Novamente, limpei minha boca e sentei-me na beirada da fonte, olhando-as com certo desprezo. Era isso que elas queriam. E eu havia conseguido. Por alguns segundos me senti-me radiante. Lembro-me bem daquela sensação. Triunfo. Sorrira para elas, com deboche.

 

- Qual é o seu nome? – Perguntei, estranhando minha voz que saíra meio mole.

- Raphaël – E sorriu, sentando-me ao meu lado – bem, agora consigo olha-la sem me curvar.

- Há-há – Olhei-o com certo desprezo, odiava que fizessem piadas da minha altura.

- Perdoe-me, esqueci que é sensível.

 

E sorriu, como se não fosse nada. Insensível. Suspirei, tentando recobrar as forças. Então, o vi se levantar e me levantara junto à ele, tentando o acompanhar. Ele segurou minha mão, e andou, como se nada pudesse o impedir... Ao passarmos por elas, suas faces demonstraram completo horror e mesmo desprezo por mim.

Ele passara calmamente, sem se preocupar com elas. Ele parecia não se preocupar com nada, nunca. Um boêmio, um completo e real libertino. Ele finalmente disse o que pretendia e eu, sorrira para ele, sem perceber que o mal estava a espreita. Eu apenas conseguira o seguir, hipnotizada por seus encantos... Também não suportara ficar mais lá, queria apenas fugir e ele seria meu salvador.

 

- Logo que conseguimos sair de lá, ele apenas soltara a minha mão e continuara a caminhar, olhando sempre fixamente para frente.
- Raphaël, onde estamos indo? – perguntei, uma vez que me dava conta que eu não conhecera tão bem assim as ruas que ele tomava.

- Para qualquer lugar – disse ele, com um sorriso travesso no rosto, como era belo... Fora a primeira vez que eu o notara realmente belo, não frio ou sem movimento e sim, belo... – Já foi para qualquer lugar antes, Angelique?

Não... Jamais... – Disse tímida, fui pega de surpresa naquele momento. – Eu jamais sai desacompanhada antes...
- Algo que diz, que você logo fará muitas aventuras.

- Do que fala? – Perguntei, mantendo os olhos no chão...

- Irá ver – Ele respondera, mas eu não entendera nada que dissera naquele momento. Simplesmente o seguia. – Aonde quer ir?

- Qualquer lugar – respondi com um sorriso em meu rosto.

- Ora, ora. Veja quem está sorrindo!

 

Ele apenas riu e seguiu em frente. A caminhada se tornara silenciosa e longa. Passamos por um grande cemitério e logo estávamos na frente de uma grande casa e foi quando ele recomeçou a falar:
- Está é minha casa.

Era impressionante. Grande e majestosa, e talvez, fossem pouco esses adjetivos para descreve-la. Ele começara a subir os degraus até a sua porta, mas eu fiquei parada, a analisando. Tinha essa enorme escada de mármore cinza, em um tom bem escuro. Entre o começo dela, e o final, havia muitas árvores grandes com cerca de metros de alturas e tampavam o céu totalmente, como também tampava a maioria das janelas da casa.No topo da tal escada, a porta de madeira era proporcional ao resto da casa, calculei mais de dois metros e meio mas parecia mais... e a madeira, eu não soube dizer de qual madeira se tratava. Os adornos de ferro a davam um ar medieval e para dizer a verdade, toda a fachada parecia ser do século X. Era como um castelo português. Em cada lado daquela porta, havia grandes vigas de pedra, também em tom escuros e por ela cresciam pequenas plantas, trepadeiras, presumo. Sendo a casa era inteira de pedra, tinha certo aspecto de abandono. Era como aqueles castelos de história de terror que nos contavam, quando éramos menor. Ela era muito sombria, realmente.

As janelas eram também venezianas com as do salão, mas apenas a do andar térreo. Por elas podíamos ver que havia velas acessas do lado de dentro, afinal, não pareciam lâmpadas, uma vez que a luz parecia fraca demais. Em algumas, havia uma grande cortina de renda preta cobrindo-as, mas não eram em todas.

Foi quando finalmente percebi que Raphaël cansara de me esperar e já se encontrava diante daquela porta. Subi as escadas dando pequenos saltinhos. As suas risadas me fizeram parar e encara-lo e eu recomecei a subir. Nós entramos naquele imenso salão. O vazio fazia com que nossos passos ecoassem conforme andássemos. Olhei em volta e apenas havia um piano de calda preto, com pouquíssimos detalhes em dourado no canto leste. Não haviam quadros, apenas grandes arcos de pedra. Nada na casa mostrava um toque pessoal, nada mostrava que havia pessoas morando lá. E nada me tirava da cabeça de como a casa parecia um castelo medieval, sem dúvida nenhuma.
Eu voltei-me para o piano, uma vez que era a única coisa que poderia me prender a atenção naquela sala. Logo atrás dele, havia uma parede aberta dando para outra sala. Raphaël seguira por ela, e eu o acompanhei.

Essa por sua vez, era maior, com uma mesa de jantar longa e larga. Suas cadeiras eram estofadas de veludo vermelho e pregadas com ferro. A sala também era em pedra, mas ao contrário da outra, haviam grandes tapeçarias com imagens de Botticelli pelas paredes.

Passamos do lado esquerdo da mesa e entramos por outra parede aberta, em uma sala menor desta vez. Havia uma mesa pequena e larga. Se encontrava virada para o resto da sala e atrás dela, uma estante que dava para o resto da sala inteira, contornando as paredes, uma à uma. Elas iam do chão ao teto. Meus olhos se afogaram diante de tantos livros, tantos que eu poderia passar minha vida lendo-os... ah, êxtase. Olhei para Raphaël, finalmente...

 

- - -

 

O caderno foi fechado, quando Raphaël ouviu alguns toques na porta. Se levantou da cama, indo até a porta. Era o Capitão.

 

- Chegamos?

- Não, ainda não. Mas, em menos de uma hora estaremos lá. Apenas queria avisa-lo, hai.

-  Certo.

 

Ao voltar para cama, Raphaël pôs de lado o diário de Angelique e pegou o seu, abrindo-o na página que havia parado, a algum tempo atrás.

 

- - -

 

Quando finalmente deixei Berlim, rumei para Paris. A França apesar de destruída, estava alegre comemorando a vitória. A cidade em si não fora destruída como o resto do país, hoje em dia alguns historiadores chamam isso de uma vaidade de Hitler, e talvez fosse mesmo.

Não importava para mim, vaidade ou não, lá seria meu novo lar.

Gostaria que entendessem uma coisa, não nutro raiva por franceses ou por russos muito menos americanos – apesar de não gostar muito do tipo yankees -, não vejo diferenças entre povos ou nações e caso visse seria que nem os nazistas, não seria? Nada me tornaria diferente deles, então, não poderia afirmar fielmente que eu lutei por uma causa que não me condizia, entretanto, minha visão é completamente outra.

O que os americanos fazem hoje impondo sua superioridade? É engraçado pensar isso, eles fazem o mesmo de forma indireta. E mesmo os russos, nessa ridícula guerra que travam para ver quem é mais forte. Acho ridículo eles recriminarem Hitler e os alemães por terem tido coragem de defender o que acreditavam de maneira aberta – não digo que concordo, entretanto... -, ao contrário de “nós” eles que ficam por baixo dos panos. Eles usaram cidades como cobaia para bombas, isso é saudável? Criar algo tão exterminável quanto uma bomba? Loucos, sim, eu acredito que sejam. Mas não estou falando que estávamos certo, porque realmente eu não acredito nisso.

Nada vale uma vida.

Mas também me irrita o que esse país de merda fez, o que todos esses países fazem... Ah, lá vou eu me perdendo em questões políticas que não me condizem... entretanto, ao ver tanta baixeza, como aquele golpe em Jerusalém, ah! Preciso aprender a me conter, afinal, criticar Tio Sam hoje em dia se torna cada vez mais perigoso.

Como ia dizendo, uma nacionalidade, cidadania, não faz o homem. Ele trilha seu caminho por si só. Tenho raiva dos soldados daquele batalhão que matou minha família, isso sim. Mas como ter ódio de uma criança que nem estava viva quando todo aquele martírio aconteceu? Ou um homem que viveu há 200 anos atrás? Não tem lógica, não é? Os homens não podem ser apenas feitos de passado ou futuro e sim, do presente. Condenar uma nação inteira não seria certo ou diplomático.
Quando me destinei a ir para Paris, não tinha noção do que esperar. Estava desiludido com o mundo dos homens. Eu não sabia se queria fazer parte dele, mas, ir para a floresta, viver no meio das árvores também não me dizia muito.

Em Paris, comprei uma grande propriedade no centro da cidade, graças aos “meus poderes vampirescos”. Os vampiros têm um poder de persuasão incrível. Seduzimos apenas com o olhar, plantando pequenas sugestões dentro de suas cabeças, quais jamais saberão da onde vieram. Com isso consegui comprar essa mansão em pleno centro por quase nada. Confesso que usei do meu dom sem me importar realmente, afinal, eu o tinha, por quê não usa-lo?
A minha vida nas primeiras noites foi bem agitada, de fato. Em pouco tempo fazia parte da sociedade e ninguém me odiava por ser alemão – um pouco do encanto me ajudava também -, o que era um bom começo. Mas não gosto de mentiras – outra mentira -, porém naqueles tempos eram necessárias.

Deixe-me contar do Raphaël que eu mesmo criara: Meu pai havia me enviado para estudar em lugar bem distante, na Ásia, em um mosteiro de requinte, onde todos os filhos da sociedade que meu pai participava freqüentavam. Era um lugar onde a mistura de costumes europeus e asiáticos havia se tornado normal, uma vez que a instituição em questão existia a mais de mil anos. Apenas as pessoas da tal sociedade poderiam freqüentar o lugar e, é claro, sua localização era um segredo. Jamais poderia ser revelada. Eu apenas comentara que a freqüentava, por que afinal, nunca fui um bom mentiroso. O segredo, entretanto, estaria bem guardado. Eu passara toda minha adolescência por lá, quase 10 anos estudando tudo à que eu tinha direito, foi quando finalmente, com muito atraso, soubemos da Guerra. Todos saímos de lá e fomos procurar nossas famílias, abandonando o local. Quando voltei para minha casa, em Berlim, minha família havia sido morta e essa era a minha história. Ninguém poderia condenar um estudante, poderia? Ninguém poderia me condenar, eu nem ao menos soubera o que aconteceu e eu havia perdido minha família. Ninguém poderia tocar no assunto de Guerra, nos Alemães, afinal, minha família havia sido morta. Sim, havia se tornado uma mentira perfeita.


Então, quando uma família bem influente na cidade acabou por me convidar para uma festa e eu, naturalmente, aceitei.


A festa tinha todos da Socialite. Empresários novos, velhos. Grandes famílias, nobres. As mocinhas que andavam para cá e para lá me rodeado; observavam meus gestos, meu corpo, meu rosto. Me analisando. E eu admito, que realmente estava começando a me irritar... Nunca gostei de muitas pessoas encima de mim, tão pouco da maneira que estas estavam. Todas eram realmente lindas, até que me sentei para conversar com uma. Conversamos sobre banalidades e de como ela esperava se casar e ter filhos um dia. Era uma menina bem novinha, devia ter seis anos, acredito. Era loira e tinha um sorriso encantador, as mãos eram pequeninas e tentaram segurar as minhas.

Ela me olhava com aqueles olhos imensos e pediu que quando ela crescesse para que eu me casasse com ela.

Sorri-lhe e disse que quando ela crescesse, eu voltaria. Bem, e dessa vez eu não estava mentido.


Poucos anos mais para frente, acabei reencontrando-a em uma festa. Estava sozinha na frente da fonte do salão, remoendo dentro de si como era diferente de suas irmãs e como se sentia mal por isso, apesar de não admitir. Era orgulhosa demais para isso. Nem percebeu minha aproximação, estava tão presa em seus sentimentos sombrios que acabou ficando distraída.


- Estava sozinha aqui.  Você está bem, Angelique? – Eu lhe perguntara, mesmo sabendo a resposta e de como maquiaria o que diria. Talvez ela fosse me fuzilar a qualquer momento, era muito amargurada e se sentia ameaçada, uma vez que se sentisse que estavam invadindo a intimidade. Ela tinha uma mente muita aberta, por conseqüência, era fácil de ler. Qualquer um que fosse “atormentado”, confuso, pouco sabia como se proteger. Era uma presa fácil. Confundi-lo se tornava quase um jogo e Angelique, por estar nesta situação, era um bom divertimento.
-
Você acha mesmo meu olhar sedutor? – Perguntei, tentando faze-la falar. Sua face demonstrava medo e logo voltou a ficar séria, indiferente, como se aquilo pouco importasse, mas, logo uma fúria a tomou fazendo-a me encarar.

- O que posso dizer, como sabe isso? – Perguntou-me um pouco desconfiada, entretanto, logo perceberia que não tinha motivos “reais”para isto.

- Eu? Eu leio pensamentos, minha querida – Apenas sorria para ela, o que mais poderia fazer? – Estou brincando, a maioria das pessoas acham isso, apenas concluí que você também pensasse assim.

Falara dessa maneira, apenas para alfineta-la. O que seria mais divertido do que isto?
- Me ofende ouvir que o senhor me acha como a maioria das pessoas – Retirei o sorriso da face, se não, seria uma frota deliberada à ela. Mantive a minha atenção, o pouco que conseguia, nela e deixei que terminasse -, mas se o senhor me acha como a “maioria das pessoas” vá conversa com as pessoas lá dentro, as quais vivem de aparência. Talvez não tenham cérebro o suficiente para perceber a profundidade de suas palavras, meu senhor, e tão pouco, o deboche em suas palavras –Seu discurso continuaria, para minha infelicidade... Ou não -, deixei-me em paz com meus pensamentos, por favor.
Ela era muito... Estou tentando procurar a palavra certa ainda, rabugenta. Era uma pessoa difícil para conversar, e de fato, ninguém gostava de chegar perto dela. Parecia um baiacu, se me permitem. Seus espinhos poderiam ser fatais, entretanto, comigo ela ainda (ainda) não tentara envenenar-me.
- Perdoe-me se a ofendi, Angelique, não era minha intenção –Repensava em tudo que lhe diria, uma vez, que algo pudesse ser usado contra mim -, me conte mais sobre esses seus pensamentos, acabou por me deixar curioso...

Ah, doce mentira.
- Eles não vêem ao caso, creio eu, que o senhor não está aqui para isso, não é? O que quer, afinal?
- A festa está relativamente cansativa – Disse entediado, por um momento. Meus olhos desviavam dos seus, talvez, eu escolhera a noite errada -, estava atrás de um bom entretenimento, afinal, o circo lá de dentro me incomodava um pouco com suas palhaçadas sem fim – E apontei para a porta, onde todas aquelas mulheres se encontravam... - As conhece?
- Infelizmente – Respondeu, rispidamente -, são minha primas e minhas irmãs.
- Perdoe-me – Um pouco cortês... -, de maneira alguma quis ofender você ou sua família.
- Não ofendeu. Também não as suporto. – Fugiu de mim ou mesmo dos próprios demônios. Angelique era nova demais ainda, não sabia que não dá pra fugir do que há dentro dela e enquanto ela não enfrentasse, não teria paz... mas, não seria eu que diria. Não por hora.- Tenho asco por cada uma. Quando estou com elas, é como se me sentisse sozinha. Ninguém está lá, são apenas corpos.
- É claro. – Concordei, querendo cortar o assunto definitivamente. Pouco me interessava...

Agora ela divagava e pensava sobre a família dela. De como se sentia superior a todas aquelas meninas na porta.
- O que lhe disseram? – Perguntou finalmente, sentindo-se pouco à vontade com o silêncio.

- Perguntaram qual era a minha família, de onde eu vinha, afinal, meu sotaque não era parisiense, tão pouco francês.- Sorri. Bem, era algo bem notável, uma vez que um alemão tentara falar francês, sempre ira soa diferente de um francês, haha – Se importa se eu as provocar?


Ela não entendeu do que eu falava, até que poucos segundos depois eu a beijei como ela nunca havia sonhado. Uma saborosa criança de 14 anos. Por mais que seus lábios fossem puros, em seu coração havia um pingo de perversidade que tira minha culpa em partes. Era engraçado no que havia se transformado. Ela não se lembrava de quem eu era e qual fora o seu pedido há 6 anos atrás, mas logo a faria se lembrar.


Então, finalmente decidi sair daquela festa. Estava me deixando enjoado tantas pessoas me olharem, nunca gostei desse assédio todo.

Ao rumarmos para minha casa, conversamos mais um pouco. Ela ficara encantada com tudo nela, tudo durante o caminho. Era como um pássaro recém libertado da gaiola. Analisar suas expressões me divertia... entretanto, logo elas mudaram do êxtase para o horror.

 

- - -

 

- Senhor?

- Sim?

- Chegamos.

- Certo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Ertrankt" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.