Ertrankt escrita por petit_desir


Capítulo 7
Capítulo 7 - O Reencontro.




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Desnorteio. Foi isso que eu senti, nos primeiros dias. Curiosidade, repulsa, dificuldade, mas, principalmente, desnorteio. Quando achamos que estamos perdidos, talvez, seja o único momento em que pensamos e nos vemos mais do que nunca sãos. É preciso estar são, para passar por tudo que eu passei. É preciso ter coragem, estômago, força. E não basta que tudo isso seja em grande quantidade, tem que ser descomunal. Você tem que descobrir o real significado da palavra “força”, se não, tudo que você sente, só lhe trará para baixo.

Eu perdi a noção do tempo nos primeiros tempos da minha transformação. Dias se passavam, coisas aconteciam, e eu? Eu não fazia mais parte desse mundo. Eu caminhava, às vezes assistia pessoas serem mortas, e, eu talvez fosse a causa da morte delas. Minha vida estava alheia ao mundo. Nada significava para mim, simplesmente porque eu não queria que significasse. Eu apenas queria ser um mero espectador. Eu quis observar o mundo, como se fosse Deus. O sangue era mais vermelho, a lua mais clara, as estrelas maiores. Tudo havia tomado tons diferentes. O ouro havia se tornado mais dourado, a prata mais prateada. O mundo era um lugar novo e até que eu perceber que eu fazia parte dele, e não, era Deus, levou algum tempo.

Foi quando eu me dei conta. Precisava ver desesperadamente meus pais e minhas irmãs. Saber se estavam bem, se precisavam de algo. Eu precisava deles.

Mas, antes disso tomar conta da minha consciência... Muito tempo havia se passado. Mal sabia como chegar em casa, como seguir a direção certa. Onde eu estava? Eu já não sabia. Eu já não sabia de muitas coisas até então...


Cheguei em Berlim depois de muito tempo depois... Era tempo demais, um ano, dois... Bem, para humanos. Eu não havia percebido que eu jamais me preocuparia com esse tipo de coisas.

A Segunda Guerra havia sido declarada finalizada. O Exército Vermelho havia invadido Berlim, devastando tudo que podiam, como os alemães haviam feito em seu país, mas, eu não tinha noção do que estava acontecendo, então, tampouco, pode constar o destino da minha família.

Naqueles momentos, apenas um medo me afligia: Estava com medo caso eles percebessem o que tinha acontecido comigo. Minha pele tão mais clara, feito mármore. Minha falta de vida. Os olhos que pareciam dois cristais... Os dentes tão mais brancos. O hábito gelado. O toque gelado... As unhas, que pareciam vidro... O que diriam? Eles perceberiam? Conseguiriam enxergar a fome...? Mas esse medo todo era mínimo comparado com a minha vontade de vê-los.

Então, a cidade. Berlim. Conforme eu tomava o rumo da minha casa, eu havia notando que algo estava estranho. Algo havia mudado drasticamente. Parece ser estranho alguém falar assim... Mas, em 1944, sendo alemão como eu sou, percebendo que a sua nação estava em pedaços, bem... Era como o desmoronar do mundo. O medo havia surgido mais forte que nunca, machucando-me por dentro, remoendo minhas entranhas... Me fazendo pequeno. Os passos aceleravam e a dor crescia. Casas arrombadas, soldados por todos os lados. Ter cuidado em horas como esta era difícil, mas, eu tive que me esforçar... Nada mais eu poderia fazer, se não, eles me impediriam de ver quem eu mais amava no mundo...

As ruas já não eram mais as mesmas, nem as pessoas. O mundo, o meu mundo, já não era mais o mesmo.


Quando cheguei em minha casa. As estavam portas arrombadas, vidros quebrados. Logo a frente, quarteirões adiante, alguém berrava que Hitler, sua amante e seu braço direito, haviam se suicidado.

Algo gelado percorreu minha espinha. O que pensar, em uma situação dessas? Alemão, eu, que havia ido à Guerra, mesmo de mau gosto, vendo o Líder, que moveu toda sua nação... Morto?

Temia pelo que estava por vir.

Então, quando entrei dentro de casa, vi as duas, minhas duas pequenas jogadas no chão... O choque foi instantâneo. Cai no chão junto à ela, e a observei com os vestidinhos rasgados, quase em trapos... As marcas em seus corpos... Quase roxas, ou verdes. Os cabelos arrancados pela brutalidade pela qual haviam passado... Elas naviam sido violadas por soldados russos. Nada mais que vingança... Mas, o que esperar...? Ah, Deus... Meus olhos marejaram em lágrimas... As manchas de sangue me encheram a vista além disso.. E, no chão... Ou entre as pernas delas... O branco. O vermelho e o branco. E eu fiquei enjoado... E vomitando todo o sangue que eu havia bebido naquela noite, tentei andar para procurar os corpos de meus pais. Não havia mais esperanças que estivessem vivos... A dor era demais.

Meus passos eram certeiros, meu olfato também... Os corpos havia sido deixados no chão da cozinha. Mortos a tiros. O seu sangue pintava o chão e logo, o meu, porque as náuseas não passariam tão cedo.

É algo indescritível. Imagine: Suas irmãs mortas, cobertas de sangue e sêmen, seus pais com os rostos irreconhecíveis pelos tiros que levaram. Imagine como é ver isto. Apenas imagine.


- - -

Troquei primeiro as roupas das minhas irmãs. Tirei as que usavam, e logo, coloquei as novas com cuidado. Observei cada marquinha no corpo delas, limpei cada fluído corporal que cobria seus corpos... E levei-as para fora. Fiz o mesmo procedimento com meus pais, entretanto, enfaixando seus rostos com uma seda vermelha.

Os enterrei no jardim de casa.

Não era digno. Nunca será. Mas, era tudo que eu conseguiria fazer. Tudo que eu podia dar. Tudo que eu conseguia...

 

Depois disso, depois de tê-los enterrado, apenas fui ao quarto antigo dos meus pais. Coloquei roupas comuns de meu pai, roupas de inverno - não muito pesado. Sai vestido de preto daquela casa, e, depois disso... Não sei, mas, nenhuma outra cor me vestiu tão bem quanto essa.

Preto. Tudo acaba nisso, não acha?

 

- - -

1980.

19h15min. Tókio - Japão.

 

- Alô? Por favor, eu gostaria de falar com o Sr. Vigée-Lebrun.

- É ele. Boa Noite, Bormannhan. Conseguiu o que eu pedi?

- Sim, Sr. A casa ainda existe, mas, está o aspecto de abandono. Aparentemente, depois que seu avô morou aqui, ninguém mais a utilizou, se não vândalos ou vagabundos. Os vidros são inexistentes, os jardins cheios de lixo ou plantas, ervas daninhas. As paredes estão pichadas e pelo que eu percebi, a casa está inabitável.

- Não há nenhum dono, então?

- O Governo, a casa foi embargada como patrimônio histórico.

- Hm. Eu a quero. Dinheiro não é problema, bem sabe, não sabe?

- Sim, Sr. Logo ela será sua novamente.

- Ótimo.

 




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Notas finais do capítulo

Continua.



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