Bela Mortal escrita por Paul William


Capítulo 1
1.


Notas iniciais do capítulo

Tentar é sempre o começo de vários fracassos e de um grande aprendizado. Autor Desconhecido



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O sol que entrava pela janela fez meus olhos se fecharem rapidamente. Sempre era ensolarado assim em Melbourne? Era difícil levantar àquela hora da manhã depois de meses acordando tarde. E lembrar que seria o primeiro dia de aula em uma nova escola me fazia pensar seriamente em ficar na cama:

__Kaius, você já está atrasado.

Esta é minha mãe. Pontual e trabalhadeira como sempre. Não me pareço nem um pouco com ela. Em compensação, acho que sou meu pai, vinte anos mais novo: preguiçoso, com um sério problema de déficit de atenção e sempre atrasado.

Minha mãe já tinha preparado a mesa como era de costume. As coisas ainda estavam meio desarrumadas por causa da mudança. A casa era um pouco menor do que a anterior, mas acho que caberia tudo ali.

__ Preciso mesmo ir?__ sinceramente, eu ainda tinha esperança.

__ Ficar em casa não ajudaria em nada. Kaius está sendo difícil para mim também, mas temos que superar isso, juntos.

Nos últimos quatro meses aconteceram muitas coisas na minha vida. Meu pai morreu em um acidente de carro em outubro. Foi um choque imenso para minha mãe. Para mim, bem, acho que não tenho palavras. Eu só tinha perdido meu pai, a pessoa em que eu mais me espelhei em toda a vida. Como já falei, eu era muito parecido com ele. Até na aparência tínhamos algo em comum. Eu tinha os mesmos olhos castanhos, a pele clara, o cabelo negro e bagunçado. Gostávamos de Gunse Roses, comer carne mal passada. A tarde ele me levava para ver o sol sumir no horizonte. Perde-lo não foi só difícil para mim. Foi quase insuportável. Mas a minha mãe continuava ali, tirando forças não sei de onde para continuar. Então eu também tinha que prosseguir. Não podia decepcioná-la:

__ Tudo bem mãe, você conseguiu.

A nova escola ficava a alguns minutos de metrô da minha casa. O que me aguardava? Bom eu não estava nem um pouco ansioso para descobrir.

A escola era simplesmente como eu imaginava. Enorme, com um lindo jardim na frente e um prédio bem tradicional. O pátio estava cheio de alunos que aparentavam ter a minha idade, dezesseis anos. Tentei passar despercebido entre todos, mas um rosto novo em uma escola é dificilmente despercebido. Esforcei-me para não ficar vermelho ao perceber que toda uma multidão não tirava os olhos de mim. Um calor que subia e esquentava minha face me fez perceber que minha tentativa havia falhado. Eles me viram. Escutei alguns sussurros, mas identificava algumas palavras como novo, estranho e garoto. Acho que preferia não me esforçar para ouvir tudo. Segui diretamente para a secretaria. Era melhor não dar olhadas rápidas para o lado se eu quisesse evitar pequenos constrangimentos.

A porta da secretaria era a primeira após a entrada no longo corredor de salas da escola. Aguardei em um banco na minúscula sala por cerca de trinta minutos até que uma senhora de aspecto cansado se aproximou. Achei sinceramente que tinham esquecidos de mim:

__Bem vindo a nossa escola Sr. Sullivan.

Boas vindas era o tipo de cortesia que eu preferia que não existisse. Até porque saberia bem o que me aguardava logo após.

Segui a senhora pelos corredores até a penúltima sala da direita. Na porta uma pequena placa indicava história. Bom, pelo menos iniciaria o tormento em minha aula preferida. Após algumas batidas na porta, esta se abriu e logo atrás se revelou uma plateia em algo parecido a um auditório. E os já esperados olhares que me encobriam e me faziam corar e pensar seriamente em correr.

__Você deve ser o Kaius. Entre.

__Com... Com licença!

Foi tudo que consegui dizer antes de disparar para dentro da sala e sentar no primeiro lugar que vi disponível. Escutei o barulho da porta se fechar e o barulho dos passos do professor pela sala. O silêncio se prosseguiu durante os dez segundos que mais pareciam horas.

Então tudo parecia normal. O barulho de conversas descontraídas ecoou pela sala como em qualquer escola do planeta. Preferia achar que o assunto daquelas conversas não era eu. Demorei alguns minutos mais, criando coragem para levantar a cabeça. Até que quando percebi já observava uma grande sala com várias estantes de livros. As mesas dos alunos não eram individuais e sim em duplas. Isso me fez refletir se era sensato olhar para o meu parceiro. Ou parceira.

__Como o tempo não será suficiente, terão que me trazer na próxima aula, um resumo sobre o papel da mitologia na sociedade antiga. Um trabalho em dupla. Até amanhã pessoal.

Aquilo acabara de responder minha pergunta. E isso era decididamente um desafio. Enquanto me esforçava para virar o pescoço senti um toque de leve no meu braço esquerdo:

__Acho que pode me olhar. Não sou a Medusa.

Aquilo sinceramente não melhorou muita coisa. Mas acho que podia olhar.

__Não se tratava disso.

__Tensão de primeiro dia. É bem difícil mesmo, mas para você está parecendo torturante.

__Só tenho que me acostumar um pouco com isso tudo.

__Se precisar de ajuda. Sophie.

__Kaius. E acho que preciso sim. Pode dizer onde fica o banheiro?

__Haha. Só um minuto. Mike! Venha cá!

__Olá Sophie! Problemas?__Um garoto enorme apareceu ao lado dela.

__Não, não. Só preciso que leve este perdido até o banheiro.

__Tudo bem. Vamos!

Foi tudo que eu sonhei para uma primeira conversa em uma nova escola. Rápida e objetiva. Minha dupla era uma garota bonita. Devia ter o meu tamanho, cabelos negros, longos e ondulados. Eu devia dar no ombro de Mike. Seu cabelo castanho e espetado chamava muito mais a atenção do que o meu. Andamos até a ultima porta da esquerda onde havia um símbolo de um boneco com um boné:

__É aqui. Bom, nossa próxima aula é biologia e se não quiser se atrasar é bom se apressar.

__Tudo bem. Valeu pela ajuda.

__Terceiro piso, segunda porta a esquerda.

Conseguir chegar a este lugar sozinho parecia um pouco difícil.

__Bom, acho que o banheiro pode ficar para mais tarde.

Chegar atrasado e ser novamente o centro das atenções não era o que eu queria.

Segui Mike durante toda a subida até o terceiro piso. Entramos na sala de biologia, que não se diferenciava muito da sala de história a não ser pelos potes com animais dentro que substituíam os livros da ultima sala. Sentei duas fileiras atrás da cadeira de Mike. Não queria parecer aqueles novatos grudentos. Odiava isso. A cadeira do meu lado permaneceu vazia por uns trinta segundos até Sophie colocar sua mochila:

__Pode guardar esta cadeira para mim?

Decididamente não entendi se aquilo deveria representar alguma coisa. Simplesmente confirmei com a cabeça. Uma mão balançando algumas cadeiras a frente chamou minha atenção e não deixou que eu continuasse meu raciocínio. Mike me olhou nos olhos, depois olhou para Sophie na porta da sala e piscou. Eu só esperava sinceramente que ele não pensasse o que eu tinha certeza de que ele estava pensando. A aula iria começar e Sophie retornou à cadeira:

__Temos que pensar no que fazer para o trabalho de história.

__A mitologia na sociedade clássica representava mais do que uma religião para eles. Os deuses para eles eram a vida.

Houve alguns segundos de silêncio. Nesse intervalo comecei a pensar que falar aquilo não foi, decididamente, uma boa ideia. Sophie me olhava com uma expressão de espanto, eu acho.

__Tudo bem. Hoje a tarde vai fazer alguma coisa?

__É que acabei de chegar de mudança e ainda tenho que terminar de arrumar algumas coisas com minha mãe. Não poderia ser amanhã?

__Tudo bem então. Você veio de onde?

__Perth.

__Nasceu lá?

__Sim.

__Hum.

Talvez minhas respostas curtas e objetivas tenham a feito pensar que eu não estava a fim de conversar, porque ela não falou mais nada depois disso. A verdade é que eu não queria falar de mim. Talvez poderíamos ter continuado falando de história. Era pedir demais?

O horário de biologia passou tão rápido quanto o primeiro. E o de matemática também. Era bom saber que o relógio estava cooperando.

No refeitório tentei consertar a burrice que tinha feito na aula de biologia. Mas é claro que de uma maneira o mais sutil possível:

__Tem alguém aqui?

__Não. Se quiser, pode sentar.

__Obrigado...__eu precisava criar coragem o bastante para aquilo.__E você nasceu aqui?

__Não. Sou de Sidney, mas meus pais se mudaram para cá quando eu ainda era um bebê. Vivi a minha vida toda aqui.

__Aqui parece ser um lugar divertido.

__Sim.

__Não sou a melhor companhia que alguém pode desejar em ter.

__É, percebi isso.

__Me desculpe. Minha mãe sempre brigou por causa disso.

__É o seu jeito. Alguns gostam de falar, outros de escutar.

__Não tenho coragem o suficiente para falar. E nem toda a experiência necessária para escutar.

__Para falar ou escutar só precisa de uma coisa. Alguém que te fale ou te escute.

__É por isso que prefiro pensar. Assim só dependo de mim mesmo. Eu falo e me escuto. Humanos não são tão confiáveis.

__Talvez não somos perfeitos. Mas cada humano tem seu lado confiável. Basta ele e os outros que estão com ele descobrirem.

Não sei como a nossa conversa tinha chegado àquele assunto. Só sei que alguma coisa me fazia continuar:

__É por tentar confiar tanto em outros que acabamos nos ferindo.

__Então essa pessoa em que confiou não era confiável. Só se trata de saber escolher.

__Saber escolher? Confiança é muito mais do que escolher. É acreditar. E depois descobrir que a pessoa que você acreditava ser confiável, te abandona e nunca mais volta.

Aquela conversa precisava terminar imediatamente. Mas eu tinha que mostrar a ela que estava errada. Mas eu também sabia onde aquilo iria terminar:

__Se você escolher corretamente você poderá acreditar que ela nuca irá embora.

__O problema é que ás vezes não depende só de nós.

__Isso é nossa escolha.

__E quando Nós escolhemos ficar e não podemos?

__E você conhece alguém que pode nos impedir de ficar?

__A morte pode...

Talvez meu tom tenha saído um tanto assustador. E o nome que eu falei e todo o contexto. Talvez tudo tenha contribuído para tamanho espanto de Sophie. Eu não queria ter falado aquilo. A minha conversa com ela que deveria ser o mais sutil possível, tomou rumos diferentes.

__Kaius eu...

Eu não queria escutar o que ela estava prestes a me dizer. Não naquele momento. Eu escutei aquela frase nos últimos quatro meses. Uma frase idiota e sem sentido. Ninguém sente muito. Todos não sentem nada! Só quem sofre uma perda como eu sofri, sente alguma coisa. Às vezes dava vontade de gritar aquilo.

Mas alguma coisa me limitava. Talvez aquela frase me fizesse perceber que os outros estavam ali. Ajudando-me com a minha dor.

Enquanto corria pela escada e seguia direto para a secretaria, percebi como tinha fracassado no meu primeiro dia de aula. Tudo bem, eu estava preparado para aquele fracasso. Mas eu tentei.

Depois de inventar uma grande mentira para a secretária, peguei um ônibus que passava próximo a minha casa.

Sentei na última cadeira do ônibus no lado esquerdo. Gostava de sentar ali quando andava com meu pai na minha infância. Gostávamos de sair para passear em uma praça de Perth. Saíamos de casa no entardecer. Olhávamos o pôr-do-sol de um ponto estratégico que meu pai arrumara. Então ele me contava que o pai dele sempre o levava lá. E que eu levaria meus filhos um dia.

Em muitas coisas eu parecia com meu pai. Gostávamos de coisas parecidas como eu disse. Quando queríamos alguma coisa lutávamos por ela. Mas em uma coisa eu sou perfeitamente idêntico a minha mãe. Detestamos demonstrar fraqueza. Principalmente fraqueza emocional. Não é que tentamos ser forte. Trata-se de não mostrar o que sentimos. Não gostamos de quando os outros se preocupam com a gente. Parece que somos fracos demais. E nos últimos meses isso aconteceu muito.

A morte do meu pai foi arrasador para minha mãe e para mim. Era impossível esconder isso. E quando os outros tentavam nos ajudar, nos sentíamos tão fraco que achávamos que não aguentaríamos. Ainda me pergunto se isso é uma qualidade ou defeito.

Eu sempre fui o mais esquisito da sala e tinha consciência disso. Eu poucas vezes ria ou até mesmo falava com alguém. Eu não era isolado. Era apenas calado. Sempre ando pensando, observando. E isso é estranho hoje em dia. Mas eu sempre preferi assim. Eu tentava fazer previsões pensando. Pensava em fracassos. Vários. Mas depois de pensar um pouco aprendia a solução. E sem ninguém perceber os fracassos. Estava tudo perfeito.

O ônibus virou em uma esquina e entrou em uma rua estreita. Depois de andar alguns metros parou. Algumas pessoas subiram. Um homem, uma menininha segurando a mão da mãe e uma garota. A garotinha puxou a borda do vestido da garota que olhou violentamente para a mãe da menina. A mulher brigou com a filha e pediu desculpa à moça.

Era estranho eu observar tanto alguém. Mas aquela garota por um motivo bem estranho me chamava à atenção. Não sei se ela percebeu, mas sentou a algumas cadeiras de distância e também me olhava.

Ela era bonita. Olhos azuis, a pele branca como a neve. Os cabelos eram a única coisa escura do seu corpo. Seu cabelo era escuro como o céu em uma noite sem estrela. Seus lábios eram claros. Ela vestia um vestido na altura do joelho, branco, o que só realçava ainda mais aquela pessoa que mais parecia uma pintura.

Ninguém prestava muita atenção naquela garota, o que era estranho. Era quase impossível não reparar tamanha beleza. Eu nunca fui o cara certo para lidar com mulheres. Nunca tive o jeito certo para falar com elas, acho. Para falar a verdade eu nunca me interessei em aprender o jeito certo. Mulheres eram talvez a quinta coisa do meu caderno de preocupações. Depender de outros seres humanos não era bem o que eu queria. Talvez fosse este meu maior defeito. Ser desprovido de sentimentos humanos. Fazia-me sentir menos... Humano.

Descemos uma pequena ladeira em uma velocidade elevada. O ônibus fez a curva e eu percebi que estávamos rápidos demais. As pessoas se apavoraram. Um carro apareceu de repente em nossa frente. Na rápida tentativa de desviar, o motorista perdeu o controle do ônibus e saiu da rua entrando em um bosque que existia a beira da pista. Um forte baque, gritos e eu só pude perceber que caiamos em um barranco. O ônibus rolou por algumas vezes. Eu me segurava inutilmente no banco batendo violentamente de um lado para o outro.

Até que parou. O ônibus estava de lado. Tudo estava em silêncio. Parece que ninguém mais estava acordado. Até que o impossível resolveu acontecer.

A garota de vestido branco levantara de sua cadeira sem nenhum arranhão. Seu vestido estava impecavelmente limpo. Ela olhou para os lados, depois pareceu procurar algo no ônibus. Depois de alguns segundos, abaixou-se e tocou em alguém que estava caído. Levantou-se e finalmente me olhou. Por um momento achei que ela viria até mim. Ela caminhou e quando ficou lado a lado com a porta de trás, virou e deu um chute na porta. Ela  mirou-me rapidamente e depois saiu.

Eu quis gritar para ela voltar ou esperar por mim. Algo me impediu de fazer isso. Eu percebi que um liquido viscoso e quente escorria por minha testa. De repente, percebi uma dor em minha cabeça. Relutei comigo mesmo e com a fraqueza de meu corpo quando vi que tudo escurecia. Não queria desmaiar. Saberia aonde iria parar se aquilo acontecesse. Mas minhas tentativas foram inúteis. A última coisa que ouvi foi sons de sirenes e de gritos antes que meus olhos se fechassem por completo e minha consciência mergulhasse em uma escuridão sem fim.


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