O Filho dos Mares escrita por Lieh


Capítulo 9
O Escapista - Parte I


Notas iniciais do capítulo

N/A: Olá leitores, como vão? Aproveitando o domingão para deixar as fics em dia. Sei que estou devendo capítulo novo há meses, mas aqui está aqui para quem se interessar ainda.
Em se tratando deste capítulo foi uma verdadeira novela mexicana para escrevê-lo (e reescrevê-lo), sem mencionar a crise de criatividade para continuar essa long. Espero que esteja satisfatório, pelo menos.
RELEMBRANDO: No capítulo anterior - Bobos da Corte - Annabeth brigou com Clarisse e Grover, sendo abandonada pelos dois amigos no porto de Tortuga. Ela vê o Queen Anne's Revenge chegando como havia previsto no seu sonho.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/171994/chapter/9

Percy

As formações da madeira eram muito interessantes de analisar depois de horas e horas confinado naquele quarto. Eu enxergava vários padrões – olhos, formas animais, monstros – mas até isso me cansava. Fazia um calor dos diabos, e eu estava enjoado daquele vai e vem constante.

Ah sim, eu estou preso na droga de um navio há dias. Já perdi as contas de quanto tempo eu estava aqui, desde o dia que meu amigo Grover enlouqueceu. Pobre Grover, ele realmente precisa consultar um psiquiatra depois daquela história maluca sobre um acampamento, monstros e deuses gregos. Não que eu vá dizer isso para ele, porque isso seria muita mancada da minha parte, sabe...

Olha você quer saber de uma coisa? Eu não sei de nada. Nada. Desde o dia do ataque daquela... Coisa, as coisas simplesmente perderam totalmente o controle. Eu só consigo me lembrar de borrões, flashes – A Coisa nos atacando no parque, eu de alguma forma completamente anormal destruo a Coisa, depois o professor Brummer aparece, fala alguma coisa para Grover que eu não entendo, aí nós vamos para minha casa...

Eu realmente estou tentando entender o que aconteceu, pois do nada minha mãe, Sally, me mete dentro de um táxi junto com Grover e partimos de casa. A única coisa que eu realmente me lembro é do rosto triste dela, quase chorando. Eu gritava para ela para me explicar o que diabos estava acontecendo, mas tudo o que ela dizia é “Você vai ficar seguro lá, querido eu prometo”.

Eu não podia deixar minha mãe sozinha, se virando como podia. Assim que acabassem as aulas, até mesmo antes, eu iria arranjar um emprego para ajudá-la nas despesas de casa, pois o que ela ganhava na Doceria América mal dava para pagar as contas de luz e água.

Desde o dia que Gabe Cheiroso se acidentou com o carro depois de beber até cair, há mais ou menos dois anos, as coisas só vem andando de mal a pior. O imbecil morreu deixando como herança dívidas tremendas, a maioria delas com gente que não se brinca. Quase dois meses depois do enterro, perdi as contas de quantas pessoas mal encaradas bateram lá em casa, exigindo pagamento, alguns até com ameaças. E você acha que eles querem saber que o devedor está morto sem deixar um centavo para minha mãe? Você acha que eles se importam que nós não tivéssemos como pagar todo aquele montante de dólares, sendo que mal tínhamos para uma refeição decente?

Não. Ninguém nessa droga de mundo se importa se você e sua mãe estão passando fome. Não há nenhum parente vivo dela para ajudar, ela só tem a mim.

Meu pai? Ha! Que piada! Ele nos deixou antes mesmo de eu aprender a falar! Minha mãe quase nunca fala dele, mas quando eu o menciono ela parece fazer força para não chorar, sempre dizendo que ele desapareceu. No mar.

Urgh! Minha cabeça dói a ponto de explodir! Ficar deitado nessa cama dura por horas não ajuda em nada. Meu déficit de atenção ataca duas vezes pior, e vira e mexe eu estou andando em círculos pela cabine. No fim das contas, eu canso e deito novamente. Sem contar as dores nas costas depois de eu ter levado uma surra alguns dias atrás.

Se você está achando que eu sou tratado como um astro de cinema, pode esquecer. Eu tenho que trabalhar como os... Marinheiros, e ajudar na manutenção do navio se eu quiser continuar vivendo por mais tempo.

Só uma coisa, quero dizer, uma pessoa que torna a minha estadia menos insuportável: Mary Read.

Era uma mulher bonita, eu admito. Tem cabelos cor de chocolate, lisos sempre usando uma bandana na cabeça, e uma pele bronzeada. Era a única mulher no mundo que conseguia ficar bonita em roupas masculinas.

Veja bem, nós não nos tornamos amigos assim, num piscar de olhos. Enquanto eu estou enclausurado, é ela que me traz comida duas vezes ao dia (O que eu considero muito pouco sabe... Eu como em média quatro vezes ao dia, sem contar os lanchinhos e doces) Entrava e saia sem dizer uma palavra, mas sempre sem expressão.

É curioso que numa embarcação cheia de homens rudes, ela estava lá no meio deles, dando ordens. Pelo pequeno buraco da porta que eu ajudei a aumentar quando fui preso, eu a via gritar e repreender aquele bando de abutres.

Porque aquilo não eram seres humanos, eram verdadeiros monstros, que durante a noite viravam monstros de verdade. O estranho ainda era que todos a obedeciam, mesmo que a contragosto. Eu ouvia ainda alguns resmungar sobre “mulheres a bordo dá muito azar, o que diabos o chefe está pensando?”, além de outras afirmações mais constrangedoras e obscenas sobre ela.

No entanto, Mary não se importava com nada, pois na verdade ela não demonstrava nenhuma emoção. Era sem expressão nenhuma, quase entalhada em pedra. Em todos esses dias, eu nunca a vi zangada, triste ou qualquer outro sentimento perceptível. Ela só falava quando era necessário durante os trabalhos do dia, depois ela se recolhia na sua própria cabine – ela é a imediata do navio – e não saía de lá até de manhã.

Esse mistério todo pode parecer bobo, ou você pode pensar que eu sou bisbilhoteiro, mas quando você fica desesperado para conversar com alguém que seja normal é compreensível. Porque conversar com o dono do navio deixa qualquer um com os nervos à flor da pele...

Aconteceu, porém um fato que mudou completamente minha rotina na embarcação.

A parte boa: eu e Mary viramos amigos.

A parte ruim: Eu me fudi. E levei-a junto comigo.

Eu me lembro daquele dia onde eu estava trabalhando nas roldanas do navio. O sol estava a pino empapando minhas roupas de suor, enquanto eu junto com mais dois caras puxavam as cordas para içar as velas e dar mais impulso para a navegação. Mary observava o horizonte com um binóculo. Ela parecia muito preocupada, - o que era uma mudança muito significativa - pois franzia a testa e apertava os punhos. Eu me perguntei por quanto tempo ela não fazia esses pequenos gestos.

Eu me distrai e a culpa foi toda minha.

Eu deixei a corda se soltar fazendo com que uma das velas quase caísse em cima de um marinheiro que estava há alguns metros de distância de mim, se ele não tivesse se jogado para fora do caminho. Depois disso, a confusão e a gritaria de pragas foi tanta que eu quase não me recordo de nada. Mary gritava com o marinheiro caído, enquanto ele gesticulava para mim com raiva nos olhos. A barulheira só foi interrompida com a chegada do capitão.

Barba Negra abriu calmamente a porta. O silêncio se instaurou como se alguém de repente apertasse o botão de desligar de um rádio. O homem que estava gritando comigo se virou bruscamente, mudo. Todos que estavam fazendo alguma coisa – seja participando da confusão ou não – pararam, fitando o capitão. Raramente Barba Negra saia de sua cabine. Já fazia dias que ele não dava as caras. Eu só o tinha visto apenas uma vez – e acredite em mim eu não quero repetir a experiência.

Ele desceu as escadas que levava a Ponto de Comando até o convés. O único barulho era a madeira rangendo.

– Então, o que está acontecendo?

Por um milésimo de segundo, entre o pânico, eu percebi uma espécie de esparadrapo bem sujo na mão direita. Barba Negra escondeu-a no bolso do casaco quando percebeu que eu o observava.

A voz do pirata ecoou pelo navio em silêncio. O vento rugia, balançando o casco. Barba Negra fitava Mary. Ela calmamente respondeu, acentuada pelo sotaque espanhol:

– A vela caiu mi capitán. Um acidente.

– O garoto estúpido derrubou a vela! – gritou o marinheiro que eu quase tinha matado. Mais uma vez o caos foi instaurado, rapidamente voltando ao silêncio com o olhar gélido que Barba Negra dirigiu a mim.

Eu deveria sentir medo, certo? Errado. A verdade era que eu estava com muita raiva. Fala sério, eu sou um prisioneiro, um marinheiro de primeira viagem – apesar de eu gostar de navegar... – E o cara ainda quer que eu faça todo o serviço direitinho?

Lembro que eu falei um palavrão bem feio, baixo o suficiente para ninguém ouvir. O capitão desviou o olhar, e numa aceno de mão chamou um tripulante.

– Contramestre!

Rapidamente um homem alto, de pele morena cheia de cicatrizes horríveis se aproximou. Os outros marinheiros começaram a dar risadinhas. Mary empalideceu, olhando de relance para mim.

Eu não estava entendendo o que diabos estava acontecendo quando vi o contramestre se aproximar de Mary com um chicote nas mãos. Por um momento terrível eu pensei que ele iria bater nela, mas ele simplesmente entregou o chicote para ela, gesticulando para mim num sorriso medonho.

As risadas foram audíveis quando Mary, com as mãos trêmulas olhou para mim. Senti o estômago afundar numa sensação que todo o meu almoço iria voltar pela boca.

Barba Negra estalou a língua, ora olhando para mim, ora para Mary.

– Dez chibatadas minha cara, é o que basta. Essas – Ele abriu os braços falando mais alto do que o seu tom normal como se fosse um apresentador de circo. – São as regras.

Todos os marinheiros urraram de expectativa, enquanto eu tentava não entrar em pânico na perspectiva de levar um super surra. Alguns feiosos me agarraram rapidamente, despindo minha camiseta suada e esfarrapada, amarrando-me num mastro pelos pulsos.

Meu coração acelerava. Minha respiração estava descompassada. Não to nem aí se você me chamar de covarde, quero ver se você estivesse no meu lugar. Ainda sim eu não queria demonstrar medo, apertando os olhos numa tentativa patética de esconder o desespero.

Eu esperava que a qualquer momento o chicote fosse estalar nas minhas costas nuas, arrancando minha pele junto. Porém passava os minutos e nada.

Olhei para trás rapidamente, a tempo de ver Mary com o rosto mais branco que fantasma olhando para mim segurando o chicote.

– Ele é só um muchacho! – exclamou ela.

Exclamações de protestos foram ouvidas. Nossos olhos se encontraram rapidamente antes de eu virar o rosto. Eu não sei traduzir em palavras o que eu vi naquele olhar, pois tudo foi tão rápido que até agora eu ainda estou atordoado.

De repente Mary estava amarrada do meu lado no mastro. Não tive tempo nem de gritar para ela me bater logo, porque senti o chicote estalando nas minhas costas.

Paf, paf, paf! A cada nova estalada do contramestre eu sentia minha pele sendo arrancada, enquanto eu mordia a língua – que já sangrava – para não gritar. Eu apertava os olhos com força, o que não impediu de sair lágrimas de dor. Ao meu lado Mary fazia o mesmo esforço, estando tão suada e com tanta dor quanto eu.

Paf, paf, paf! O chicote estalava mais vezes, ora em mim, ora minha companheira. Em dado momento eu devo ter gritado de dor numa voz que não era minha. Aquele maldito chicote estava me matando. Eu ia ser espancado até morrer.

Paf, paf, paf! ALGUÉM ME MATE! Eu não estava aguentando mais. Foram apenas minutos amarrado, mas pareceram horas. A dor era tão grande como carvão em brasa me assando. Minha pele ardia, meus olhos lacrimejavam, enquanto eu segurava os gritos de dor em pequenas lamúrias.

PAF!

Por fim acabou minha tortura.

Eu desabei no chão. Devo ter ficado inconsciente ou desmaiado porque as únicas lembranças que eu tenho são das risadas dos porcos-piratas e de Mary tentando me amparar.


Acordei me sentido como se tivesse sido atropelado por um caminhão, pelas dores em todas as articulações, e de ter sido queimado vivo pela ardência na pele das costas.

Algo frio me tocou me fazendo gemer de dor. As lágrimas ainda estavam lá no meu rosto. Pela primeira vez na minha vida eu desejei não estar vivo.

Como um flash, eu me lembrei de minha adorada mãe - seu cheiro, seu rosto, a cor dos seus olhos - e todos os doces azuis que ela fazia para mim quando eu ficava chateado por ter sido expulso da escola. Eu me lembrei do seu sorriso e da doçura da sua voz. O que eu mais queria naquele momento era tê-la por perto – se bem que se ela me visse como eu estava era bem capaz dela enfartar. Eu me sentia aquele garotinho indefeso que todo mundo já foi, apenas querendo carinho de uma mãe.

Dessa vez as lágrimas não foram apenas de dor.

Uma voz melodiosa cantava perto de mim enquanto a coisa fria tocava a ardência da minha pele. Eu percebi que a dor estava diminuindo.

Eu estava deitado de costas na minha cabine. Era noite, pois da pequena janela era possível ver o brilho prateado da lua. Eu fiquei imóvel por horas, ouvindo Mary – era óbvio porque era a voz dela – cantar. Passado alguns minutos, ela percebeu que eu estava acordado.

Entón, meu corajoso garoto está vivo. Fico feliz por isso.

Eu me virei fazendo caretas de dor, sentando-me na cama. Ela parecia com medo de eu desmaiar a qualquer momento, desaprovando meu movimento com o olhar. Ela segurava uma compressa e uma vasilha com água.

Eu me senti um verdadeiro imbecil chorão. Ela havia apanhando tanto quanto eu, mas ali estava ela me ajudando parecendo que nada havia acontecido. Eu não merecia ser chamado de corajoso, pois eu não consegui salvá-la de um castigo que era para mim.

Mary mesmo ali inteira perto de mim, estava muito pálida e cansada. Ela se mexia o menos possível e quando o fazia ela mordia os lábios e apertava os olhos. Eu queria ajudá-la assim como ela estava fazendo comigo...

Epa! Não é isso que você está pensando... Quer dizer, err eu não pedir para ela tirar a blusa, pelo amor de Deus!

Tá, calei.

Meu rosto corou por aquele pensamento idiota e nada inocente, fazendo-a franzir a testa para mim. Eu não conseguia olhá-la devido à vergonha e a humilhação que eu tinha sofrido, e por ela ter sido obrigada a passar por isso.

Ela ficou imóvel por vários minutos fitando o nada, enquanto eu a observava. As dores no corpo estavam passando, mas ainda sim eu não podia me mexer.

No se sinta culpado – disse ela de repente – Ele é cruel. Não quer saber quem é inocente quem é culpado.

– Por que você está aqui?

Eu perguntei sem pensar, me arrependendo depois. Mary apesar de toda a beleza era assustadora quando ficava com raiva. Porém só foi por alguns segundos, transformando-se em dor.

– Eu sou prisioneira – ela começou com a voz falhando – assim como tu, filho de Poseidon.

Eu estremeci. Todos naquele navio me chamavam assim, mesmo eu achando bem ridículo. Lá no fundo eu sabia que era verdade, o que até eu mesmo ficava surpreso. Convenhamos, eu estava a bordo de uma navio com mais trezentos anos, com uma pirata que deveria estar morto – Barba Negra não passava de uma lenda. Sem contar que a tripulação... Bem, vocês já vão ver.

Além do mais, havia aquele monstro que me atacou no parque. Eu não sou lá muito criativo para ter imaginado tudo aquilo.

– Você quer me dizer – eu comecei – que eu sou mesmo filho de Poseidon? Ele é o deus dos mares na Mitologia Grega, certo?

Por um momento ela sorriu algo que ela não fazia há muito tempo – e a que deixava mais bonita também.

– Sim, mi querido. Tudo isso que os mortais dizem serem mitos, não são mitos. São reais. Os deuses sempre tiveram filhos com mortais, e não é agora que eles vão mudar os hábitos... Mas tu... Tu és um perigo, Percy Jackson.

Você deve estar pensando: Uau, como ele aceitou bem essa história toda não? Mentira que eu não aceitei coisa nenhuma. Até agora é difícil para eu tentar assimilar que meu pai é todo poderoso Senhor dos Mares. Hum, legal então por que diabos ele nunca deu notícias? Nunca escreveu? Ou melhor, nunca foi conhecer seu filho? Hein?

Mary me explicou tudo naquele momento – como os chamados Três Grandes juraram pelo Rio Estige nunca mais ter filhos após a Segunda Guerra Mundial, como Zeus quebrou a promessa há alguns anos atrás gerando uma, como é o termo correto? Semideusa, ou meio-sangue chamada Thalia e como ela virou uma árvore para salvar os amigos de monstros. Ela me disse que as notícias correm pelos portos e pelas ondas – seja lá o que isso significa, mas tudo bem – por isso mesma aprisionada ao “Queen Anne’s Revenge” ela não ficava desligada do mundo.

Foi a maior conversa que já tive com ela. Mas uma coisa que eu me deixava mais curioso em saber era como foi que ela acabou virando prisioneira do navio.

Mary percebeu que eu estava pensando nisso quando ficamos em silêncio. Suspirando, ela disse:

– Eu tinha uma vida antes de entrar no mundo da navegação. – Era visível que ela fazia o esforço heroico para contar a história. Eu me senti culpado por forçá-la.

– Se você não quiser me contar, eu entendo – disse eu gentilmente.

– Não, não. Eu preciso decir isto para ti. Talvez seja a nossa única esperanza.

Eu esperei ela continuar ansioso para ouvir. Eu percebi que quanto mais ela ficava nervosa, mais ela misturava o espanhol com o inglês, sendo mais difícil de entender.

– Eu nasci numa época em que a riqueza era a ambição de todos os hombres. Eu morava numa pequena vila de Port Royal, El Caribe. A vila estava prosperando pelo comércio marítimo, principalmente de ouro e pedras preciosas para a Europa. Grandes quantidades foram encontradas no meu antigo lar, fazendo muitos jovens, inclusive a mim, sonharam com fortuna e uma vida confortável. Eu venho de uma família simples, sem grandes posses. Meu pai era um imigrante britânico, já minha mãe nasceu na vila. Eu era filha única, destinada a se casar com o hombre rico e influente da população local...

Ela parou, torcendo o pano com as mãos trêmulas. Seus olhos piscaram fazendo força para não chorar. Eu nunca a tinha visto daquela forma antes – frágil e indefesa – em todo o tempo que eu estava na embarcação, me assustando, pois eu sou péssimo em consolar alguém. Além do mais, eu estava tão acostumado com sua expressão de pedra que vê-la demonstrar alguma emoção era assustador.

Ela respirou fundo e continuou:

– A verdade é que eu não iria me casar com aquele hombre, pois além de tola apaixonada e sem escrúpulos, eu fui justamente amar alguém que nunca meus pais iriam aprovar. Ele era um pirata – Naquele momento uma lágrima transbordou - O hombre mais incrível que eu já conheci. Adam Boony – Ela suspirou saudosa.

Limpando rapidamente a lágrima da bochecha, ela se levantou fitando a pequena janela do quarto. Ela continuou sua narração sem olhar para mim.

– Planejamos fugir juntos após meses de encontros às escondidas. Meu casamento iria ser marcado. Eu estava disposta a largar minha família, meu lar e tudo o que eu conheci para viver ao lado de um hombre que eu amava, em aventuras. Ele possuía um navio, rápido e poderoso, atracado no porto da vila. Ele estava apenas de passagem naquela região e deveria partir em breve. Numa noite de verano fugimos...

O silêncio se instaurou. A história de Mary Read parecia um enredo daqueles livros antigos que a minha mãe gostava de ler. A diferença era que no final das contas o mocinho e a mocinha acabavam felizes... Já a história dela não parecia ter tido esse fim.

Até então, eu não tinha percebido que aquilo que ela estava me contando aconteceu... Quando mesmo? Época das navegações?

– Hum, Mary? – chamei-a timidamente.

Ela se virou para mim.

– Sim?

– Você disse que viveu na época das, hã navegações? – Tudo bem, eu sei que é indelicado perguntar a idade de uma mulher, mas... – Quando exatamente?

Mary sorriu misteriosamente, sentando-se na beirada da cama da onde eu estava.

– Eu nasci na época das Grandes Navegações. Época em que a América era explorada pelos europeus em busca de riquezas. Século XV precisamente. Minha memória sempre foi ótima – ela sorriu com a cara que eu fiz.

Eu só tinha ouvido falar das Grandes Navegações nas aulas de História. Isso significa que ela tem o quê? Quinhentos anos? Como ela pode estar viva e conservada como se tivesse vinte anos?!

– É eu sei que é assustador. Até para mim é estranho ver os anos passarem e continuar da mesma forma... – ela parou, fitando novamente o vazio.

Só naquele momento eu percebi como ela envelhecia ao fitar o nada, como se os anos de sofrimento ainda perturbassem sua vida.

– Fugimos, então. Eu e Adam – ela continuou – No sei dizer por quanto tempo durou nossa felicidade, mas para mim foi como uma longa noche cheia de estrelas, onde nos amamos muito e eu fiz o Juramento.

– Juramento? – perguntei.

Ela arregaçou a manga do braço esquerdo, onde havia tatuado um par de espadas cruzadas por cima de uma caveira. Havia algumas inscrições numa língua esquisita, que de cara eu percebi que era grego antigo. Por incrível que pareça, eu consegui entender o que estava escrito:

O Rei e seus homens roubaram a rainha de sua cama – comecei a traduzir – E amarraram até os ossos...

O mar será nosso – completou Mary – E pelos poderes, aonde iremos, iremos vagar.

– Isso parece uma música – comentei.

– E é. Uma cancíon antiga, que há muito não foi cantada. E eu espero não estar viva para vê-la ser cantada novamente.

De algum modo estremeci. Aquela música parecia ser muito inocente, porém eu senti o clima do ambiente ficar mais pesado e obscuro. Por um momento horrível me senti claustrofóbico e mais cansado do que nunca.

Mary parecia perdida em lembranças. Pela sua expressão, não pareciam ser boas.

– O que significa esse juramento? – perguntei tentando não transparecer o meu desconforto.

Ela se enrijeceu com a minha pergunta.

– O Juramento Pirata. Qualquer um que queira se juntar à navegação deve se submeter ao Senhor dos Mares. Assim, você se torna inmortal, como as Caçadoras de Lady Ártemis – Eu concordei mesmo sem nunca antes de ouvido falar dessas Caçadoras, apenas da deusa – O Juramento é fundamentado na lealdade. Se for quebrado, a muerte é certa. E seu pai é bem duro quanto a isso. Muitos piratas tiveram muertes horríveis por quebrarem o Juramento, aliando-se aos inimigos dos olimpianos.

Tentei digerir aquilo. Eu sempre ouvi falar que os deuses do Olimpo eram vingativos, mas ouvi que o meu pai planejava mortes era... Não sei dizer o que eu senti, mas era bem desagradável, ainda mais por eu não consegui me acostumar ao fato de tudo o que eu conhecia como mitologia era real. E o pior tudo, era que eu fazia parte daquilo que muitas pessoas consideram apenas histórias primitivas para explicar a formação do mundo e as estações do ano.

– Então você fez o Juramento e se juntou ao seu marido... – instiguei.

– Eu me lembro daquela noche. Fiquei um pouco histérica na presença de Lorde Poseidon. Ele foi invocado por todos os tripulantes, aparecendo então na nossa frente. Estava vestido como nós, até poderia ser confundido com um tripulante, porém a aura de poder e realeza que o cercava eram aterradoras.

Mary narrava seu primeiro encontro com Poseidon numa voz carinhosa que beirava ao respeito e admiração, sendo impossível não me contagiar com esses sentimentos. Mesmo com toda a raiva que eu sentia do meu pai, o todo poderoso Senhor dos Mares, o modo como Mary o descrevia tirava um pouco da imagem que eu tinha dele: um deus distante e frio, que não estava nem aí para o seu filho.

No entanto, forcei a tirar esse sentimento de respeito e admiração pelo meu pai. Ele não passava de um grande imbecil egoísta. E eu estava determinado a culpá-lo e não perdoá-lo para o resto da minha vida.

– Essa é uma das poucas lembranças felizes que eu tenho no pouco tiempo que fiquei com Adam – continuou Mary, num tom melancólico – Foi tão rápido que até pareceu um sonho...

Ela se levantou e rondou o quarto em silêncio. Eu detestava o que eu estava obrigando-a fazer. Reviver todas aquelas memórias estava sendo penoso para ela.

– Se você não quiser me contar mais nada, eu entenderei – disse eu suavemente.

De repente ela parou.

No! – Ela se virou e parou na minha frente tão rápido que me assustei. Sua expressão estava entre a tristeza e a raiva, o que a deixava assustadora. Eu não via Mary Read como uma pirata maldosa, mas naquele momento ela estava próxima de uma.

– Usted necesita saber! Ahora entiendo! Essa é a nossa única chance contra aquele gusano! – Ela praticamente gritou.

– Você quer dizer Barba Negra, certo? – Eu me senti muito estúpido com essa pergunta, ainda mais quando ela começava a falar com mais frequência na sua língua de origem, deixando difícil a minha compreensão.

Mary estava tão agitada que voltou a andar pelo quarto, me deixando tonto. Ela resmungava consigo mesma em espanhol, parava, olhava para mim, como se estivesse me avaliando e voltava a andar. Ficou nisso por quase dez minutos.

Por fim ela parou, sentando-se na beirada da cama, fitando-me. Não havia vestígios de tristeza e de lágrimas. Ela me olhava com determinação.

– Preste atenção, muchacho. Isso é de importância vital. No entiendo como eu posso ter sido tão lenta para somar dos mais dos – Ela respirou fundo e continuou – Percebi que Adam andava um pouco preocupado, após algum tiempo. Estava mais calado, suas aparições eram raras durante a noite para a cantoria. Entón eu o confrontei, pedindo que ele desabafasse sua angústia, afinal de contas eu era sua companheira e esse era o meu dever. Além do mais, eu ficava triste quando o via tão distante, de todas as formas, de mim. Foi entón que ele me levou para um lugar reservado do navio, e tirou um papel velho, amarelado e desgastado pelo tempo, enrolado como se fosse um papiro. Ele abriu e me mostrou. Era um mapa.

Seja lá o que ela iria contar a respeito daquele mapa, eu não iria saber tão cedo.

O navio sacudiu-se bruscamente. Não foram aquelas sacudidas ocasionais devido ao balanço das ondas. Parecia que o navio tinha batido em alguma coisa dura - até pensei que poderia ser um iceberg, mas isso serial impossível porque não existem icebergs no Caribe! E a última coisa que eu queria era presenciar uma nova versão do Titanic.

Mary se levantou a tempo de ver um marinheiro entrar no nossa cabine, abrindo a porta violentamente.

Por mais que eu estivesse há dias naquele maldito navio, eu nunca me iria acostumar com aquela visão.

– O capitão está chamando a todos! – ele disse numa voz ríspida e nada humana.

Mais uma vez o navio foi sacudido.

Mary virou-se para mim um pouco pálida, desferindo de forma autoritária:

No saia daqui por nada neste mundo, ouviu muchacho?

Ela falou de tal forma que eu não pude nem discordar, então eu apenas assenti.

O marinheiro... Que não era bem um marinheiro olhou raivosamente para nós dois. Aquele olhar era tão maligno que me deu um frio na espinha. Não era um olhar humano, no sentindo próprio da palavra. Os olhos estavam tão esbugalhados que era bem capaz das órbitas saltarem para fora. O que deveria ser a boca era uma bocarra escamosa cheia de dentes grandes demais. A pele estava apodrecida e negra, como se estivesse descascando. As roupas estavam num estado lastimável - se já não eram limpas, estavam piores. As unhas eram enormes como garras.

Engoli em seco. Era por isso que eu evitava ao máximo sair da minha cabine à noite.

Toda aquela situação era tão fora da realidade que as possibilidades de eu ter sido arrancado da minha antiga vida – da minha concepção de normalidade – por alguma força que me detestava, eram possíveis. Era tudo tão demais para a minha cabeça oca sendo possível eu enlouquecer a qualquer momento.

O “Queen Anne’s Revenge” sacudiu-se violentamente, quase me fazendo cair de lado na cama.

E tudo o que eu mais queria naquele momento era que aquele navio afundasse, fazendo-me escapar daquela realidade ao qual eu não queria fazer parte.



Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Você leu? Então deixe um comentário e faça a Annabeth e o Percy felizes! (Se não a Clarisse vai ter dar um banho!)



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "O Filho dos Mares" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.