Entenda, o que passei foi, digamos, terrível, porém posso dizer que gostei. Sim, senti-me bem na presença daquele ser superior, tão altivo e belo, culto, cativante, em poucas palavras senti-me completamente apaixonada e não resisti aos seus encantos. Ele apareceu assim, do nada, trajado em uma roupa fina, elegante, com os cabelos louros e longos soltos como uma cascata dourada, os olhos de um azul céu parecendo dois lagos cristalinos, e ao invés do que muitos possam dizer, não senti medo e ele não se impôs, olhou-me apenas com ternura, paixão, tratou-me como se me amasse.

Senti-me especial. Depois de tanto tempo, senti como se alguém realmente me amasse e me quisesse, e ele, Lúcifer, o meu anjo-caído, me quis. Com palavras doces revelou-me o que eu era de fato: um demônio, uma de suas filhas. Aquilo foi um choque, mas admito que algo dentro de mim despertou e senti uma felicidade imensa ao qual nunca havia sentido antes.

De imediato, eu soube o que fazer. Nossa conversa, mesmo que só ele tenha falado, fora num palácio dourado no pico de uma colina envolta em um rio cristalino e extenso. Não esperei mais um segundo e sai do palácio, desci pela escadaria de pedras e entrei na caverna. Havia um livro no chão, antigo, capa de couro marrom e uma tranca dourada, levei uma das mãos ao bolso traseiro de minha calça e toquei a chave. Ao abrir o livro vi simbolos nunca antes vistos, mas de certa forma, eu entendia o que estava escrito, folheei-o até chegar onde queria: o meu rito de passagem, a ascensão de meu verdadeiro eu.

Proferi as palavras com convicção, como se eu já conhecesse-as, e a parede rochosa a minha frente começou a rachar, uma luz amarelada saia pelas frestas. Sorri, sim, eu sorri abertamente, com o coração aos saltos soltei o livro no chão e senti algo magnífico invadir-me. Uma força descomunal percorria minhas entranhas, o ar ficou diferente, os cheiros, eu escutava tudo de outra forma, via o mundo com outros olhos, naquela escuridão que se fizera depois que o buraco se fechara, eu via tudo, era como se o interior da caverna estivesse sendo iluminado por uma luz forte, pois eu conseguia ver cada pequeno detalhe.

Passei as mãos pelo meu corpo, a textura era outra. Enchi meus pulmões com ar, podendo sentir o cheiro de terra molhada do interior da caverna, soltei todo o ar sentindo-me leve. Ao sair, parei na beirada da colina, podendo admirar o fundo do rio, haviam peixes ali. Senti uma imensa vontade de me jogar sobre aquela água fresca e nadar até chegar ao fim do mundo.

Comecei a rir, rir alto e prazerosamente, finalmente eu conseguia me sentir completa. Agora, eu não estava mais sozinha, iria juntar-me aos meus irmãos e eu seria feliz, seríamos uma família de novo. Escutava minha própria risada ao passo que sentia meu corpo tomar outra forma, fui ficando mais alta, incrivelmente grande, e logo minha risada parecia um rugido feroz. Ao poucos fui parando e olhei minhas mãos, eram enormes, com garras, escamas grossas e vermelhas. Pude ver também que eu tinha uma longa cauda, um par de asas, e apenas em pensar que podia voar livremente elas começaram a farfalhar.

Podia controlá-las no ar facilmente, então me atirei do pico, mergulhei no ar indo em direção ao rio e no momento exato abri minhas asas dando um rasante e sentindo a água tocar minha barriga, comecei a voar, subindo e subindo bem alto, fiquei me divertindo, dando piruetas até lançar-me dentro da água caindo por inteira dentro do rio. Realizei o meu desejo de nadar, sim, eu nadei até o fim do mundo, o meu mundo, o meu Inferno.

A partir daquele dia, eu nunca mais derramei uma lágrima sequer, chorar era algo que não fazia mais parte de mim, eu riria pela eternidade, sim, sentia-me orgulhosa de mim mesma por ser um ser tão incrível e poderoso, eu poderia fazer o que quisesse. Um dragão sempre foi o meu sonho, uma paixão eterna e foi essa forma que eu escolhi para causar o caos nas mentes humanas. Regozijo-me do sofrimento destes vermes.