A Quarta Máscara escrita por psyluna


Capítulo 2
Contato.


Notas iniciais do capítulo

Este é o segundo capítulo. Eles não terão tamanhos semelhantes, porque estou cortando a história onde a intuição manda.



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Nem todas as almas vivas tinham fibra para atravessar aquele lugar. A natureza não dava trégua. Frio, fome, solidão e nenhum lugar para se esconder.

Exceto o ignorado poço.

Estava nublado, como na maior parte do tempo. Ventava forte, como era normal acontecer. As terras vermelhas apresentavam sua hostilidade de sempre.

Mas um vulto de capa bege resistia a ela.

A pessoa era baixa, mas de corpo resistente, acostumado ao suor do esforço físico. As duas mãos estavam de luvas, do mesmo tecido e cor do manto. Uma delas segurava um cajado quase do tamanho de seu dono. A outra puxava as metades do capuz para tampar o nariz e a boca daquele rosto oculto, evitando que o pó seco os invadisse.

O bastão do outro lado do corpo parecia velho, mas resistente ao tempo e ao uso. De madeira escura, o meio do comprimento apresentava um ponto torto, mostrando a forma original do galho de onde tinha saído. Na ponta, havia uma bela pedra circular, cor de sangue, lapidada com várias faces.

Como um predador decidido, aquele par de olhos esverdeados avançava no campo vazio.

O vento forte vinha bater na frente daquele viajante. Ele levantava-lhe a parte longa da capa para trás, deixando à vista a roupa abaixo dela. Todas as peças eram do mesmo tecido cáqui. A blusa de mangas longas e botões na gola, a calça de barra por dentro da bota marrom e as faixas na cintura, amarradas largamente para não deixar pele descoberta a mercê do clima.

Do ombro direito para o lado esquerdo do quadril, passava uma faixa em diagonal. Era branca, mas encardida. Nas costas, tinha um estranho sistema de presilhas, para que, na hora que o cajado fosse batido ali na direção certa, as alças metálicas o segurassem e o caminhante pudesse andar com as mãos livres.

Apesar de toda a aparência sólida e constante como uma rocha, era uma garota de quinze ou dezesseis anos.

Não fazia idéia do que ia encontrar naquela desolação, mas passava por ali.

Ela não sucumbiria a medo algum.

Sempre havia algo novo a se ver, mesmo nos lugares mais brutos.

E, daquela vez, realmente havia.

Por entre a poeira no ar, avistou um círculo no chão.

A entrada de um buraco.

“Ora...”

Fez cara de interrogação para si mesma.

“O que é aquilo?”

Apressou-se para chegar mais rápido.

A menina do poço abraçava as pernas finas, tremendo. Não tinha muito que fazer ali dentro além de tentar encontrar sons no silêncio de uma tarde que anunciava chuva.

Para sua surpresa, havia um ruído.

Era constante como estacas batendo ao chão.

E estava ficando mais próximo.

O barulho de passos.

Seu coração se acelerou.

Prevendo o pior, escondeu a nuca com as mãos, já na espera do primeiro golpe.

Um segundo. Dois. Três. Quatro.

E nenhuma pedra a atingiu.

Algo se estilhaçou dentro dela.

Era impossível. Todos a odiavam. Todos os que iam até ali fugiam ou agrediam-na. Faziam dela um brinquedo para diversões sádicas. Ninguém se importava com sua dor, com quem ela era. Por que justo aquele não tinha feito nada disso?

Com medo, levantou a cabeça para o alto, já esperando que fosse se arrepender.

A partir dali, o tempo começou a passar de forma confusa.

Agachada à beira do buraco, Lyan Petusk espiava o fundo escuro. Tinha o atrevimento de um gato, tratando-se de coisas desconhecidas.

Não tinha expressão de espanto ou nojo.

Estava apenas curiosa.

“Olha só...”

Apoiou as mãos enluvadas no chão, intrigada.

“Tem uma menina aqui dentro.”

Quando viu o rosto coberto pelo capuz aparecer, a garota do poço não conseguiu pensar em outra coisa ou desviar o olhar.

Algo naquela pessoa desconhecida a fascinava. Não sabia se eram os olhos verdes, brilhantes como jóias, ou o fato de não ter lhe agredido. Não importava.

Horas pareciam segundos, segundos pareciam horas.

E ela não se cansava de encarar aquela estranha.

Lyan jogou a cabeça de lado, para tirar alguns fios de cabelo castanho do rosto.

Como quem pedia licença, ela perguntou para o fundo:

-Eu posso entrar?

Não precisou falar muito alto, porque a pedra das paredes empurrou sua voz com o eco.

Ficou esperando a resposta.

O transe ainda durava sobre ela.

Quando a estranha fez-lhe a pergunta, ela não entendeu as palavras. Ouviu-as como um ressoar distorcido, mas que não lhe incomodava nem ofendia. Sabia apenas que não era nada de mau.

Tentou abrir a boca para responder.

 -...

Estava muda.

“Que menina estranha.”

Coçou a cabeça.

Esticou as canelas para o lado de dentro do poço, sentada em seu limite.

Risonha, ela disse:

-É melhor você chegar para trás.

E deixou seu corpo cair para o fundo perdido.

Com um estrondo, as botas de Lyan bateram no chão de mármore.

Seus pés doíam. Ela resmungou:

-Ai.

Espreguiçou-se e olhou ao redor.

Não havia muito espaço, mas com esforço, duas pessoas podiam se espremer ali.

Informalmente, ela disse:

-E aí?

Tinha um sorriso ensolarado no rosto.

Ela não era hostil. Não era esquiva nem parecia estranhá-la.

De onde tinha saído aquela menina?

Petrificada, a garota do poço conseguiu pronunciar algumas palavras.

-Quem... É... Você?

A viajante tirou o capuz.

-Eu? – Tossiu para tirar o pó da garganta. - Sou Lyan. Lyan Petusk.

Recostou o bastão na parede.

-E você?

A resposta demorou alguns segundos a sair.

-Meu nome... – Ainda estava a encarando. – Meu nome é Louise.

Enquanto brincava com os cordões da capa, Lyan comentou:

-Louise...

Fechou os olhos.

-Nome legal.

Parou de girar as duas cordas depois de um bom tempo de silêncio.

A menina do poço levou os olhos para o chão. Sentia vergonha e medo, mas estava, mesmo que negasse, ansiosa por uma companhia.

Lyan deixou-se cair sentada. Cruzou as pernas e soltou um suspiro de alívio.

Dispersou-se por alguns instantes, e chamou Louise:

-Vai, não seja tímida. Conte sobre você. Você mora aqui?

-... Sim...

-Caramba. – Soltou, com tom de admiração. – E eu achando que já tinha visto muita coisa.

Louise não respondeu.

-Oh, desculpe. – Olhou para baixo, sentindo que tinha ofendido a garota. – Não que isso seja mau ou algo assim.

A moradora do poço sorriu discretamente.

-Não tem problema.

Abanou a cabeça.

Lyan fez cara de dúvida.

-Todo mundo fala que é estranho morar aqui. Pode falar também. Eu não lig-

-Não, não, você me entendeu errado. – Tentando desfazer a confusão, ela cortou a fala da outra. – É que eu ando por aí. Viajando, pra todo tipo de lugar. A gente vê bastante gente diferente pela estrada, sabe.

De certo modo, Louise achava bom ter alguém que não a achava uma aberração. Mas, não sabia por que, queria parecer diferente dos outros. E se incomodava por Lyan aceitá-la.

Estava olhando a visitante com tristeza, mas procurava disfarçar.

Ela disse:

-Sei...

Mais um bom tempo de silêncio. A viajante pediu, entre um ligeiro riso:

-Vamos deixar isso pra lá, por favor.

Com a voz triste, que tentava ocultar uma frustração, Louise respondeu:

-Tá.

Começou a encarar o chão.

Preocupada com alguém a quem tinha acabado de conhecer, Lyan ficou olhando para ela. Mesmo que fosse retraída, triste e que mal falasse, gostava dela. Sem motivos, simplesmente gostava. E sabia que se lembrava dela de algum lugar.

Gastou algum tempo até descobrir, em suas próprias memórias.

Lembrou-se de onde.

Da torre.

O tempo em que vivia sozinha e fechada no deserto.

Era para aquele endereço perdido que mandava cartas. Expunha sua própria tortura como beleza, seu ódio aos outros como correto, o domínio da mente como objetivo supremo.

De repente, sentiu uma ponta de culpa.

“Por que eu falava bem daquele tipo de coisa, justo pra ela?”

Parecia sem-graça por causa daquilo, mas Louise, provavelmente, não estava reparando em seu rosto. Deu uma olhadela só para confirmar.

Não estava.

Deixou escapar uma risada rápida.

“Ela deve saber quem eu sou.”

Soltou um suspiro disfarçado.

“Mas vou deixar isso quieto.”

Estalou os dedos e arrumou o punho das luvas.

“Afinal, eu não estou mais lá.”

Voltando ao presente, Lyan esticou os olhos para cima, para ver o que não tinha visto ainda.

Surpresa, ela perguntou:

-... O que é aquilo?

Desenhos escuros se estendiam pelas pedras.

Louise respondeu-lhe:

-São histórias.

Lyan não desviou os olhos um segundo sequer das paredes.

Ficou de pé, para enxergar mais no alto.

Pessoas chorando, sendo feridas e morrendo. Destinos cruéis, infelicidade, dor. Apocalipses de várias dimensões.

Não deixou de chocar-se, mas leu as sagas com toda a atenção. Era uma melancolia inebriante, viciante, que podia arrastar alguém à escuridão de um abismo.

-O que você acha?

A pergunta tirou Lyan da concentração. Ela olhou para baixo.

-São... – Não conseguia completar as palavras. – São bem escritas.

Esticou o braço para tocar um dos desenhos. Traços que formavam a cena de um funeral. A tinta se esfarelou levemente ao toque.

“Isso é...”

-Que bom que você gosta.

De relance, Lyan olhou para Louise.

A garota do poço estava sorrindo, tímida e feliz.

“Ela escreveu com o próprio sangue.”

A idéia lhe incomodava por dentro. Por que ela fazia aquilo?

Sentou-se de novo, de pernas cruzadas. Tentava empurrar para dentro o indigesto bolo do que estava pensando e conter-se para não perguntar algo que incomodasse.

-Então...

Engoliu as próprias palavras e mudou de assunto.        

-Uma das suas histórias me lembrou uma viagem que fiz.

Curiosa, a menina do poço disse:

-Sério?

Lyan coçou a nuca.

-É... – Olhou para a saída do buraco. Não fazia diferença ser dia ou noite. – Já faz uns dois meses e tal.

Louise prestava atenção.

A viajante começou a contar. Narrava de modo natural, como se fizesse aquilo todos os dias. Prendia sua ouvinte, que se impressionava mais e mais.

E assim seguiram por muito tempo.


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Notas finais do capítulo

Aqui está. Espero que eu não tenha demorado demais, e que vocês tenham gostado. Por favor, PELO AMOR DE DEUS, ou de qualquer coisa em que vocês acreditem, deixe um comentário. Não te leva tempo e vai me deixar feliz. Até a próxima. o/