Era uma daquelas noites de Inverno. Daquelas em que os “mortos” andam pelas ruas e o ar é tão gélido que somos obrigados a esconder-nos por baixo dos longos capotes de cabedal.
Eu era um desses mortos. A vaguear pelas ruas da formosa cidade de Paris. A fome consumia-me. A minha pele parecia a de uma estatueta de mármore, daquelas belas obras de arte que decoram as catedrais.
As ruas estavam desertas, à excepção de alguns vagabundos. Esses enojavam-me demais. Precisava estar bastante esfomeado para encostar a boca nalgum daqueles cadáveres asquerosos.
Esse não era o caso. De facto tinha bastante fome, mas procurava algo mais requintado.
À porta de uma velha estalagem paravam várias prostitutas. Muitas delas belas raparigas com menos de vinte anos. Elas tinham-se tornado o meu prato favorito nos últimos meses de viagem.
Uma delas prendeu a minha atenção. Uma rapariga de longos cabelos negros encaracolados e vestido azul-escuro de aspecto caro.
- Gostaria de contratar os seus serviços. – Disse ao chegar a ela.
- E o que o faz pensar que estou interessada em fornecê-los? – Questionou ela, tragando a sua cigarrilha. – Eu não preciso dos seus trocos para nada. Eu durmo com aqueles que prendem a minha atenção...
Aquela afirmação tinha, de facto, surpreendido toda a minha experiência.
Meditei durante poucos segundos perante aquele belo rosto frágil.
- Muito bem senhorita. Procurarei alguém a quem prenda a atenção. – Disse, retirando-me.
- Espere forasteiro. – Chamou ela, num belo sotaque francês aristocrático. – Você prendeu a minha atenção.
Eu sorri-lhe. Requintada. Uma bela refeição requintada.
- Gostaria de me pagar uma bebida? – Perguntou-me.
Entrámos numa velha taberna barata do outro lado da rua. O barulho era insuportável, mas nada que não fosse combatido pelos meus sentidos sobrenaturalmente apurados.
- O que o trouxe a Paris? – Perguntou ela erguendo um pouco o seu vestido, mostrado me a sua liga de renda preta.
- Curiosidade, apenas curiosidade... – Sussurrei.
Não esperava que ela me conseguisse ouvir, mas ouviu.
- Não me diga que a sua curiosidade é pelas maquinarias! – Exclamou com entoação dramática, tal como um actor de teatro.
Maquinarias! Pois claro, as maquinarias. Vivia-se a revolução industrial, não se falava de outra coisa pelos países civilizados da Europa.
- Não, não pelas maquinarias, mas sim pela arte... Sou um apaixonado pelas artes... – Esclareci, pegando na sua mão. – Mas devo confessar que também sou um apaixonado pela evolução. Você não?
- Não aprecio coisas rudes ou barulhentas... – murmurou, aproximando os seus lábios os meus, tentando seduzir-me.
- Então deveríamos sair daqui...
No momento seguinte estávamos num beco próximo, tomando os lábios do outro com ferocidade. Tinha a cara borrada com o seu pesado batom escarlate e a camisa de algodão italiano aberta até ao umbigo.
Admito que adorava toda aquela sedução, todo aquele jogo de prazeres carnais, mas a minha fome era superior. A falta de sangue começava a deixar-me atordoado.
Então, enquanto a bela prostituta beijava o meu pescoço, quis tomar o seu. Algo me impediu. Uma dor cortante, familiar e poderosa fez-me cerrar os olhos com força. Ela mordera-me. Sentia o meu sangue descer pela sua garganta, aquecendo o seu corpo.
Na minha fome cega e despreocupada nem procurara saber se a minha vítima era mortal.
Cego de ódio, empurrei-a contra a parede oposta, prensando o seu corpo com o meu. Ela parecia assustada, com os seus lábios manchados de vermelho da sua pintura e do meu sangue.
Sem lhe dar tempo de lutar, rasguei-lhe o pescoço com as minhas presas. Ela esvaneceu em poucos segundos, mas deu-me tempo suficiente para apreciar aquela refeição.
Graças ao seu sangue não precisei de matar por várias noites, gosto de pensar que fiz uma boa acção...
Deixei o seu corpo naquele beco e abandonei Paris, onde nunca mais voltei.