Escuridão escrita por Emaluela


Capítulo 6
Capítulo 6




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— Em todo caso... tentem prestar mais atenção nela. Às vezes, a recusa de

alimento é um modo de os jovens pedirem ajuda.

— Não entendo... — explode o pai, quase irritado. — Seline não precisa de ajuda

nenhuma. Já lhe damos tudo aquilo de que precisa.

O médico abaixa os olhos. Tira da papeleta um cartão de visita e passa para a mãe

de Seline.

— Se perceber que sua filha continua a não comer, talvez fosse interessante

procurar um especialista...

— O que é isso? — pergunta o pai.

— É um centro de apoio para meninas que sofrem de anorexia.

— Minha filha não é anoréxica! — se enfurece o pai.

— Posso vê-la? — pergunta a mãe, mais calma e realmente consciente da

gravidade da situação.

— No que me diz respeito, sim. Está sob sedativos — responde o médico com um

sorriso enviesado.

— Maluquices — insiste o pai, afastando-se sem sequer se despedir. Naomi eu

ficamos imóveis como dois objetos de decoração no vaivém de macas e feridos mais ou

menos graves que se lamentam.

Sentamos num canto. Tem cheiro de desinfetante e de suor.

 — Vamos embora? — pergunta Naomi.

 — Vamos, é a melhor coisa. Acho que vou visitá-la amanhã em casa, depois que

derem alta. Quer ir comigo?

— Não posso. Prometi à minha irmã que iria com ela ao shopping.

Olho com ar de censura.

— Ela tem uma festa importante e quer ajuda para comprar o vestido. Não posso

furar com ela.

— Entendi. Vou sozinha.

Talvez seja melhor assim: Seline não precisa de confusão, só de se reencontrar

consigo mesma.

Seguimos com o rabo dos olhos os dois que se afastam.

— Parecia que estavam falando de uma estranha, não da própria filha — observa

Naomi, um pouco depois.

— Estranhos são eles, os pais.

A mãe de Seline deve estar pensando em todas as horas que roubou da filha para

dedicar ao escritório. No salário que precisa ganhar para manter as extravagâncias do

marido e suas roupas impecáveis. Em seu caríssimo carro esportivo. E talvez, estou

dizendo talvez, esteja se per guntando finalmente se tudo isso faz sentido, pois

simplesmente impediu que visse que sua filha não comia havia dias.

Junto a nós, há dezenas de desconhecidos, que somente aquele local de tormentos

mais ou menos graves tem o estranho poder de aproximar.

14

DOMINGO.

Acordo cedo. Quero ir visitar Seline. Quando me vê de pé às nove, Jenna não

acredita nos próprios olhos. Se soubesse o quanto tem sido difícil pegar no sono

ultimamente...

— Como? Já de pé? — pergunta na cozinha com uma xícara de café fumegante nas

mãos. Olho para ela. Sob o roupão azul que chega aos tornozelos, despontam duas

pantufas em forma de cachorro, com muita orelha, focinho e olhos. Um presente de Natal

meu, de Lina e Evan. Sorrio à lembrança de sua cara de espanto quando abriu o pacote. A

pequena Lina parecia tão contente que por um instante tivemos a impressão de ouvir a sua

voz novamente.

— Vou visitar Seline.

— Domingo a essa hora!?

— Prometi que íamos estudar juntas.

Jenna parece surpresa. Enquanto isso, faço um café para mim.

— Muito boas meninas — diz ela, desaparecendo na sala.

Com os cotovelos apoiados na mesa, saboreio com calma o néctar escuro e

fervente da xícara.

Penso em Seline e na história com Adam. Por que as pessoas se comportam de

modo tão mesquinho? Por que tanto desejo de fazer mal?

****

Seline mora num arranha-céu moderno, o mais alto dos três que foram construídos

perto do rio uns dez anos atrás. Todo de vidro e cristal, reflete como um espelho fiel a

paisagem circunstante feita de água, verde e mais vidro, sem trair a intimidade dos

felizardos que moram lá.

Aperto a campainha nas teclas do interfone, colocado ao lado da entrada. Uma

descarga elétrica solta a fechadura do grande portão de vidro. Entro e chamo o elevador,

O hall é amplo e revestido de mármore branco, dividido no meio por uma passadeira de

carpete preto. Dos dois lados, duas jardineiras retangulares oferecem a quem entra a sua

carga de plantas ornamentais, tão viçosas e coloridas que resolvo tocá-las para ver se não

são artificiais.

O ar tem um perfume de lavanda e jasmim. Imagino que seja detergente com que

lavam o pavimento.

O elevador chega e escancara suas portas de espelho, negras e brilhantes.

No interior, mas reinante, me acompanha até o quinto andar, o último, onde fica a

cobertura da família de Seline.

Uma vez perguntei a Seline por que frequentava a nossa escola, tão modesta para

as possibilidades econômicas de seus pais. Mas ela respondeu que a mãe insistiu, para

que ela vivesse em meio a pessoas .normais., em vez de privilegiados, pois dizia que tudo

nessa vida pode mudar de uma hora para outra, e viver num mundo dourado não nos

prepara para o pior.

Agora, depois de tudo que aconteceu com a filha, não tenho muita certeza de que

estivesse certa.

A porta de entrada está aberta. Seline me espera na soleira, com um macacão rosa-

bebê que cai sobre seu corpo cada dia mais magro e anguloso.

— Oi, Alma.

— Oi.

Entramos. Parquê de madeira escura e vidraças ao redor. Luz. Apesar do céu

cinzento.

— Venha, vamos para o meu quarto.

— Seus pais não estão?

— Minha mãe está no escritório, trabalhando, e meu pai ainda está dormindo.

Percorremos um corredor de paredes cobertas por quadros de dimensoes variadas,

iluminado por uma fileira de spots embutidos no teto. No chão, um tapete com motivos

geométricos vermelhos e brancos, mais comprido que meu apartamento inteiro. Olho ao

redor: não é a primeira vez que venho a esta casa, mas sempre me surpreendo com tanto

luxo.

A porta do quarto de Seline é a primeira à direita.

É muito grande: uma cama de solteiro extralarga, uma escrivaninha de vidro, uma

mesinha, um sofazinho e duas poltronas que dão para uma enorme janela com uma vista

de tirar o fôlego.

— Não quer sentar? — pergunta. — Vou pegar alguma coisa para beliscar.

Sento no sofá xadrez rosa e branco e examino o quarto, suas paredes cor-de-rosa,

enfeitadas por alguns quadros. Um é o retrato de Seline pequena, com um vestido amarelo

de florzinhas e fita no cabelo. Parece uma boneca de porcelana.

Pouco depois, a vejo chegar. Tem as mesmas feições angelicais do retrato, mas

seus olhos perderam a luz.

Carrega uma bandeja com dois copos, uma garrafa de suco de frutas frescos,

biscoitos e uma fatia de torta de chocolate. Coloca tudo na mesinha e senta numa das

poltronas.

— Como se sente? — pergunto, servindo um copo de suco. É muito doce e fresco,

uma delícia. Pego um biscoito e coloco entre os dentes.

— Estou bem. Ainda um pouco cansada, mas vai passar.

— Claro que vai passar.

— Obrigada por ontem.

— Não precisa.

Abaixa os olhos. Não toca em nada da bandeja.

— Não vai comer?

— Tomei café da manhá há pouco.

— É mesmo?

— Sim, não se preocupe. Minha mãe ficou comigo na cozinha o tempo todo para

controlar.

— E fez muito bem. Você precisa se recuperar.

Nessa altura, resolvo provar a torta de chocolate. Como imaginava, também é

divina. Minhas amigas sempre me invejaram por comer as .comidas proibidas. e não

engordar um grama sequer.

Os olhos de Seline se fixam na fatia de torta que estou levando à boca. Parece

hipnotizada.

— Está tudo bem?

Faz que sim.

Tenho a impressão de que ela esvaziou seu cérebro, como se fosse um quartinho

de despejo depois de uma faxina. Minha preocupação é que continue vazio por muito

tempo. Tábula rasa.

Resolvo fazer outra tentativa.

— Está mesmo querendo que ele se dê bem?

— O quê?

— Agindo dessa maneira, é como se deixasse Adam levar a melhor. Queria agredir,

expor você ao ridículo para se fazer de gostosão com os amigos. Vendo você sofrer desse

jeito, vai pensar que conseguiu o que queria.

— Nem penso mais em Adam. Águas passadas. — Seu olhar continua fitando o

nada.

— Seline, ouça. Não pode deixar que a vergonha pelo que aconteceu tome conta de

você. Quem tem que se envergonhar é ele e não você. E depois, tem um corpo perfeito,

que todas as meninas da escola invejam.

— Não é verdade! — rebate ela, subitamente decidida.

Toquei no ponto crucial.

— Claro que é.

— Não. Não está vendo? — diz, esticando com a mão o tecido macio e largo do

macacão ao redor da coxa magra.

Levanto e comparo minha coxa com a dela, mais fina.

— Veja você mesma.

— O que estou vendo é que você é mais magra, Alma, mais magra e mais bonita.

— Agora chega! — digo, segurando seus ombros. — Precisa parar de ficar se

lamentando e enchendo a cabeça de bobagem. Precisa reagir. É ou não é minha amiga?

Naomi, Agatha e eu somos fortes e corajosas. Enfrentamos várias provas e conseguimos

superar. E você estava conosco. Juntas, somos invencíveis. Nunca se esqueça disso.

— Talvez eu não seja como vocês. Talvez não seja mais .digna..

— Quando fala assim, me dá vontade de lhe dar uns tapas!

— Talvez eu mereça.

— Pare com isso, Seline. É só um vídeo idiota feito por um cretino. Não pode ficar

nesse estado por causa disso. Não pode.

Nenhuma resposta.

Seline fita o pavimento.

Vou até a porta com a intenção de ir embora. Acho que não consigo fazê-la reagir

hoje. Precisa de tempo. E talvez precise compreender também que, se continuar desse

jeito, além de sua autoestima, vai perder a nossa também.

— Espere.

— O quê — pergunto virando para ela.

— Vou tentar — promete e pega um biscoito. Leva à boca e morde quase

imperceptivelmente.

Já é alguma coisa.

— Isso! Nos vemos na escola amanhã.

Deixo Seline em seu quarto de fábula mordiscando um biscoito como um canarinho

com seu biquinho.

15

SEGUNDA-FEIRA. O DIA DA LUA2, QUANDO TODOS SE SENTEM NO DIREITO

de ficar nervosos por causa do fim de semana recém-terminado e da nova semana que se

inicia, com sua carga de estudo, trabalho, compromissos.

2 Em italiano, Ludenì, que significa também segunda-feira.

Olho para fora da janela. O cenário é o mesmo de sempre: o rio negro e inchado

das chuvas dos dias anteriores; mais além, os aviões aterrissam arrastando as nuvens

cinzentas que parecem se desfazer a redor da esteira branca. Mas entrevejo no céu um

azul que me dá a vertigem.

E há mais luz.

O conto escrito no caderno roxo está muito distante de meus pensamentos e de

minha vida. Sou de novo Alma. Minhas certezas voltaram a seus lugares, como um monte

de soldadinhos obedientes. Fim das dúvidas ou medos. Tudo como antes. Tudo horrível,

como ser.

— Evan! — ouço Jenna gritar. — Que diabos é isso?

Acho que descobriu o novo piercing em sua língua. Na realidade, não vê-lo seria

impossível, pois a língua inchada e vermelha o obriga a falar como se tivesse uma batata

quente na boca.

Através da porta fechada de meu quarto, só ouço a voz de Jenna e imagino Evan

balbuciando coisas do tipo: .Não se meta comigo! A droga de vida é minha, problema

meu., antes de sair de casa deixa. Minha mãe com os olhos fixos na porta, pensando

consigo mesma o fez de errado para ser tratada desse jeito pelo próprio filho.

Quando saio do quarto, Jenna ainda está no corredor, enfiando o casaco em Lina.

Vira para mim, em busca de um olhar de solidariedade.

Finjo que não sei de nada. Não quero me meter nos problemas de minha mãe com

meu irmão. Estou cansada de dizer que está gastando saliva à toa tentando fazer com que

ele fique apresentável. Ela não entende que quanto mais tenta impor sua opinião, menos

ele ouve. Acho, aliás que Evans agride a si mesmo, mas na verdade só quer atingi-la.

****

Fora de casa, respiro.

O ar está menos pesado que o habitual, talvez porque sopre um vento,

provavelmente por um erro na programação do clima do planeta. Aqui tudo parece

estagnado, aprisionado no cinza, tanto que tenho a impressão de que até as folhas têm

que fazer esforço para cair das árvores.

Não tenho vontade de pegar o ônibus. Dobro a esquina do edifício e chego ao

bicicletário. Pego minha bicicleta, sepultada entre outras mil, pertencentes a pessoas

desconhecidas que podem ter desaparecido dezenas de anos atrás. À parte as duas rodas

brilhantes e o selim, ela não tem mais nada em bom estado. A cestinha, toda arrebentada,

parece um velho ninho abandonado, o farolete soltou e acabou num bueiro num dia de

temporal e nem lembro se ela algum dia teve um cavalete. A ferrugem roeu a maior parte

da lataria, azul-turquesa no original, transformando-a num ferro-velho que balança a cada

pedalada e, a cada buraco, salta mais que uma mula depois de um pontapé no traseiro.

Mas é a única bicicleta que tenho e, considerando a situação financeira da minha família,

posso apostar que, antes que eu compre uma nova, é ela a quem vai me deixar na mão.

Pedalo pelas ruas da cidade, ensurdecedoras de tráfego e vozes. A escola é

distante, mas vou devagar, não tenho nenhuma pressa de chegar.

Olho ao redor: até parece que não faço o mesmo caminho todo santo dia, há quatro

anos. A diferença está em alguns raios de sol inesperados, pontilhando os rostos das

pessoas, que ficam se perguntando o que há de estranho. Alguns levantam os olhos para

um céu que se detém espantado, que tenta disfarçar, como se o sol não fosse assunto

seu.

Atravesso um grande cruzamento e entro por uma longa avenida arborizada. São

520 árvores. Já contei num dia em que tive que voltar a pé porque algum maluco tinha

resolvido colocar uma bomba na estação do metrô.

Foi um caos, todos em pânico, gente que corria para a saída com ar de quem quer

disfarçar o próprio terror. Como se o medo fosse uma vergonha. Desde o dia do acidente,

fui obrigada a aceitar que a morte pode chegar a qualquer momento, quando menos se

espera. Lembro que saí do metrô entre os últimos passageiros, sem pressa, convencida de

que ainda não era a minha hora. E não era mesmo.

Mas nunca mais peguei o metrô.

Dobro a esquerda, numa rua de lojas e grandes magazines. Centenas de metros

quadrados de vitrines cintilantes como espelhos, nos quais é impossível não se mirar, nem

que seja para ajeitar algum detalhe ou, simplesmente, para ter uma ideia de como os

outros nos veem.

Enquanto me observo, noto um homem que caminha com passo muito rápido na

calçada em frente às vitrines. Está uma dezena de metros atrás de mim, vestido de escuro,

não muito elegante, com um par de óculos escuros meio antiquados, chapéu e luvas

negras. Parece o clássico agente secreto dos velhos filmes dos anos 1950. Mas tem

alguma coisa de esquisito. Parece careca, sob o chapéu.

Não sei por quê, mas ele me inquieta.

Pedalo lentamente seguindo o sentido do trânsito. Viro à direita, depois à esquerda

e olho por cima do ombro para verificar. Atravessou e pegou a mesma rua que eu. É

incrível como consegue andar rápido. E como minha bicicleta anda devagar. Qual é a

chance de que esteja me seguindo? E de que esteja simplesmente fazendo o mesmo

caminho?

Continua lá, na calçada, vinte, trinta passos atrás de mim.

— Alma!

Ainda estou virada quando Naomi me chama. Agita os braços na esquina do

cruzamento, do outro lado da rua. Encosto a bicicleta e paro. Ouço o rumor dos passos do

homem vestido de escuro. Está se aproximando.

— Alma! Estou aqui!

Faço um sinal para Naomi dizendo que já vi e outro pedindo que se aproxime.

Naomi olha para um lado e outro e atravessa a rua.

O homem vestido de escuro me alcança, me supera e segue reto em seu caminho,

sem se virar. Agora posso ver com clareza: não tem cabelos.

— Estava enganada — digo em voz alta.

— Enganada sobre o quê? — pergunta Naomi.

— Nada de importante. Vamos?

Seguimos para a escola, depois da esquina.

Desço da bicicleta e vou empurrando, segurando-a pelo volante. O rangido da

lataria parece um punhal enferrujado deslizando em minhas costas nuas.

16

O PÁTIO DA ESCOLA É O MESMO DE TODAS AS MANHÃS: ESTUDANTES COM

caras mais ou menos conformadas, intercalados com alguns exaltados que ainda pensam

que passar por uma porta na frente dos outros é uma forma de poder. Não perceberam

que até os cães fazem isso.

Estaciono meu ferro-velho no último lugar vago do bicicletário e observo as outras

bicicletas, presas com cadeados enormes, ponta de inveja. A minha não tem cadeado

nenhum. Não acredito que alguém se dispusesse a roubá-la.

— Foi ver Seline ontem?

— Fui.

— E como foi?

— A situação é grave. Perdeu completamente o juízo. Está se achando gorda e

feia. Nega as evidências.

— Coitadinha, ficou traumatizada.

Lanço um olhar enviesado para Naomi.

— Coitadinha? Naomi, tudo pode acontecer nessa vida. Como é que alguém que

desmorona diante de uma coisa dessas vai enfrentar o resto?

— É verdade, mas nem todo mundo reage da mesma maneira; Talvez ela precise

de um pouco mais de tempo.

— Veremos.

— Acha que não está à altura?

— De quê?

— A nossa altura.

— Acho que temos que dar toda a ajuda que pudermos, mas só ela pode sair dessa

história horrível. De qualquer jeito, há esperanças.

— Em que sentido?

— Ontem, antes que eu saísse, consegui que desse uma mordida num biscoito.

Naomi olha para mim sem comentar. É um pequeno sinal, uma bobagem aos olhos

do mundo. Mas para nós representa um ponto de partida, um apoio a partir do qual

podemos acreditar que não perderemos nossa amiga.

Naomi e eu caminhamos bem próximas, ombro a ombro, em formação compacta.

Mas não recebemos os costumeiros olhares alusivos, nem as frases de efeito ou os

assovios dignos de um estádio. Assim que chegamos ao vetíbulo, percebo que aconteceu

alguma coisa. Um grupo compacto de meninos conversa ao pé da escada, mas não

consigo entender o que dizem. Tento captar alguma palavra.

...Dragão. Dragão? O que pode ser isso?

Naomi fixa um ponto diante de si com um olhar interrogativo.

Subimos as escadas de mármore branco. Todas as vezes em que piso esses

degraus, me pergunto como é que uma escolinha fuleira como essa pode ter uma

escadaria de mármore branco. É como um barco de cruzeiro no meio de um deserto. Não

tem nada a ver com o resto do edifício e provavelmente nem devia estar aqui. A história da

escada é realmente estranha: foi tudo o que sobrou do velho Museu de História Natural,

que foi demolido, pois já estava em estado periclitante. Como não sabiam o que fazer com

uma escada assim tão majestosa, resolveram transferi-la para cá, para a nossa escola,

onde foi colocada sem nenhuma preocupação com o resto do ambiente. Quando precisa

tirar fotos, Scrooge sempre escolhe a escada para dar a impressão de que sua escola é

melhor do que é.

— Pegaram! — ouço quando estamos quase lá em cima. Apoiando-me no corrimão

de ferro, olho para baixo. Vejo um vaivém de alunos seguida, a porta da diretoria se abre

com um estrondo e ouço o rugido de Scrooge. Naomi e eu pensamos a mesma coisa: era

sobre isso os falavam. Ainda a história do incêndio.

Entramos em nossa sala, no segundo andar.

Seline e Agatha estão ao lado da minha carteira. Seline tem uma aparência sofrida e

olheiras profundas que sulcam seu rosto e lhe dão dez anos a mais. Mas pelo menos está

aqui.

— Como vai? — pergunto.

— Tudo bem. — Depois acrescenta: — Obrigada por ontem...

— Imagine... — respondo.

— Voltou a comer? — pergunta Naomi, colocando a mochila na carteira.

— Descobriram o culpado pelo incêndio na diretoria. — diz ela, mudando de

assunto.

— É mesmo? E como foi isso? — pergunto.

— O policial encontrou um indício.

— Uau! — exclama Naomi. — Uma investigação com tudo o que direito.

— Que tipo de indício?

— Um anel de prata. Com um dragão.

Por isso a palavra — dragão — corria de boca em boca no vestíbulo. O anel me

lembra alguma coisa, mas não consigo identificar o quê.

— Essa é a parte interessante — sussurra Agatha.

Olhamos para ela.

Quer nos deixar mais curiosas. E já conseguiu, em parte.

— Tem mais?

— Acredita se disser que sei a quem pertence o tal anel? — pergunta Seline.

— Não.

— Intimaram uma pessoa — valoriza Agatha.

— A-d-a-m — escande Seline. Cospe cada letra como se fosse um dente podre.

— Adam?

Seline faz que sim, lentamente, como se quisesse se convencer de que sua

informação é verdadeira.

— Vi esse anel em seu dedo mil vezes. É dele.

— Adam tocou fogo no gabinete do diretor? Mas por quê? — Estou boquiaberta.

Depois a imagemdo anel com o dragão atravessa minha mente e me leva de volta à

noite no rio. Agora me lembro perfeitamente da mão de Adam iluminada pela luz do

lampião.

Agatha sorrri.

É como se a justiça divina tivesse resolvido fazer aquele cretino pagar todas as suas

culpas.

É justamente esso que me assusta. Por tudo o que sei, os cretinos não costumam

pagar suas contas.

17

DOIS DIAS SE PASSARAM.

Não sabemos nada de Adam.

E Agatha não veio mais à escola. Nem atende o telefone. Desapareceu professor de

história comunica que as condições de saúde de sua tia pioraram e que provavelmente

não a veremos até a próxima semana.

Não gosto de ficar sabendo desse jeito.

Agatha deveria ser nossa amiga.

— Está mesmo arrasada. — comenta Naomi durante o intervalo.

— Estamos todas arrasadas — sussurra Seline.

Fico em silêncio. Não posso dizer que está enganada.

Nós três, Naomi, Seline e eu, estamos com as costas apoiadas no parapeito de uma

das janelas do segundo andar, bem na saída de nossa sala. À direita, a escada, onde

algumas meninas se sentaram para conversar.

— É uma fase muito ruim — resume Naomi. — E Agatha está se comportando de

maneira estranha, isso é tudo.

— Bem, não se pode dizer que ela já foi .normal. — replico. — Supondo que alguém

neste mundo seja normal.

— É como se estivesse mais cruel que o normal.

— A palavra certa é feroz, Naomi.

— Precisamos entender sua situação — diz Seline. — Se a tia morrer, Agatha vai

direto para um orfanato.

— Não é só isso.

— E o que é, então?

É que Agatha às vezes me dá arrepios. Mas não digo nada, me a dar de ombros e a

observar Seline de novo: realmente, não está nada bem. O médico receitou injeções

reconstituintes, mas ela teima em não comer. E os vestidos largos tornam sua magreza

ainda mais evidente. Tem o rosto pálido e escavado. Os olhos são tristes e sem luz. Até a

voz, antes cristalina e viva, agora é baixa e monocórdia. Acho que não dorme há dias.

Como pode ficar nesse estado por causa de um vídeo idiota? E o que fizemos para ajudá-

la, a não ser ferrar Adam? Talvez tenha sido muito dura com ela. E talvez o seja também

com Agatha.

— Somos péssimas amigas. — digo sem rodeios.

Naomi olha para mim.

— Como assim?

— Como assim que Agatha talvez precise de nós. E nós a abandonamos.

— Acha?

— Acho que não sabemos nem onde ela mora exatamente.

— Na Cidade Velha.

— Em que número?

Seline sacode a cabeça.

— Não me lembro.

— Na verdade, ela nunca nos disse — tenta se justificar Naomi. — Sempre que

chegava a vez dela fazer a reunião em casa...

— E nós também nunca perguntamos — interrompo.

— O que pretende fazer?

— Ir à casa dela. E oferecer ajuda. Ver como vai a tia.

— É a coisa certa — sussurra Seline, sem se dar conta de que também precisa

muito de ajuda.

— Quer vir comigo? — pergunto a Naomi.

— Quando?

— Hoje. Amanhã. Sábado. Não sei.

— Hoje não posso. Nem sábado. — Naomi fica vermelha e abaixa os olhos.

— Seu novo conhecido?

Tito, o menino estranho, de olhos orientais e rabo de cavalo.

— Mais ou menos...

— Não me deve explicações — corto secamente. — Faça como achar melhor.

Finjo que não me importo, mas estou preocupada. Nosso grupo está cada vez

menos unido. Cada uma de nós, por motivos diversos e sem falar com as outras, está

seguindo o seu caminho. Eu em primeiro lugar. Meus pesadelos, minhas dores de cabeça

repentinas, meu conto no caderno roxo transformaram-se num segredo guardado dentro

de mim, longe das opiniões de minhas amigas. Pensei que fosse superior à nessidade de

me abrir com elas. E ainda penso. Mas ao que tudo indica Naomi e Seline fizeram a

mesma escolha. Por fora, fingimos que somos fortes, mas desmoronamos por dentro,

pouco a pouco, erguendo cada vez mais as barreiras entre nós.

Perdendo-nos no grande e caótico nada que nos circunda.

****

Deixo meus colegas saírem. As quatro bolsinhas, os dois que inventam times de

futebol, os vândalos da primeira fila, minhas amigas. Partem um atrás do outro, deixando a

sala impregnada com seu cheiro. Sinto necessidade de abrir uma janela, mas espero.

Lentamente, a escola inteira se esvazia, como uma pia desentupida.

Antes que algum inspetor me descubra, vou para a biblioteca fingir que estou

estudando. Na realidade, quero entrar na secretaria, encontrar o endereço de Agatha e

sair. Sei que a fechadura ainda está quebrada: Adam ou quem quer que seja o vândalo

que ateou fogo no gabinete de Scrooge fez as coisas benfeitas. Vou precisar de um

tempinho. Ao longo dos corredores, sigo na contracorrente em relação à massa de de

meninos e meninas que flui para fora. Desço as escadas. Como depois de uma enxurrada,

folhas rabiscadas, algumas canetas, um maço de cigarros amassado, tampas de

esferográfica, uma luva de lã sem os dedos estão sobre o pavimento.

Entro na biblioteca e sou acolhida por uma sensação de paz: não tem ninguém.

Através dos vidros sujos, o céu parece ainda mais escuro e nublado. Do teto, pendem

lâmpadas longas e estreitas que chegam até, iluminando as mesas de madeira verde,

como o pavimento. Desenham retângulos de luz pura que atraem o olhar, expulsando a

penumbra que os circunda. Parece uma fila de mesas cirúrgicas.

As prateleiras de ferro laqueado de branco estão cheias de livros semiorganizados

numa desordem esparsa que deixa intuir um esforço inútil de catalogá-los. Até pouco

tempo atrás, havia uma senhora, velha e ácida, que de alguma forma conseguia nos ajudar

a encontrar um título em menos de uma hora. Depois, um dia, ela desapareceu, engolida

pela escola, ou pela cidade, e os livros começaram a crescer, a mudar de lugar, a se

colocar num caos cada vez maior sobre as prateleiras laqueadas. Perguntamos ao

professor de italiano que fim tinha levado a senhora dos livros. Não sabíamos nem como

se chamava. O professor nem sabia que ela existia. Nunca tinha entrado na biblioteca.

Na entrada da biblioteca há um cartaz, escrito à mão porque a única impressora, na

sala dos professores, é tão velha que seus cartuchos de tinta não existem mais no

comércio: avisa que cada aluno deve recolocar no lugar os livros que pegar depois de

consultá-los. Pura utopia.

Escolho um lugar ao acaso, de qualquer modo, estão todos livres. Sento e coloco

minha mochila na mesa. Levo alguns minutos para retirar cadernos e livros. O ar denso e

imóvel parece nebulizado pelo calor da lâmpada.

Finalmente, tenho diante de mim tudo de que preciso para justificar minha presença:

um mar de deveres de casa, um grande silêncio e minha mão, sobre a qual apoiar a

cabeça pesada de pensamentos.

Muito pesada: sinto meu pescoço tão fraco que poderia quebrar. Ninguém me vê e

não vejo ninguém. O tempo corre gotejando. Não faço nada. Estou só, agora. Talvez.

Estou livre. Será que estou mesmo? Às vezes tenho a sensação de que não.

Abro um caderno, depois um livro, leio e escrevo, memorizo conceitos na esperança

de que um dia tudo isso possa me ser útil, como todos dizem. É o meu tempo. A minha

vida, Posso fazer o que quiser. Só que não sei o quê.

As luzes esquentam cada vez mais, como uma estufa. Uma hora se passa. Duas.

Estou cercada de folhas amassadas, como gigantescos insetos de papel. Estou

pronta para sair e entrar na secretaria. Recoloco minhas folhas na mochila com o mesmo

cuidado metódico com que as retirei. Acredito muito no ritual dos gestos: é fundamental

para pensar realmente naquilo que se está fazendo e para fazê-lo da maneira certa,

distinguindo-se todos aqueles que executam suas ações como máquinas.

Não apago nenhuma luz: estavam acesas quando eu cheguei. Continuarão acesas

depois que me for. Saio da biblioteca quase sem respirar e percorro o corredor até a

escada. É diferente à luz da tarde. As salas de aula são silenciosas e escuras, as janelas

todas fechadas. Meus passos são pequenos gemidos no linóleo. No fundo, da porta

semicerrada do laboratório de ciências escapa uma foice de luz cor de âmbar.

À medida que me aproximo, ouço algumas vozes, mal perceptíveis. Mordo o lábio.

Saí da biblioteca cedo demais. Continuo a andar, o olhar fixo no corredor. As vozes

murmuram. Discutem. Tramam.

Uma delas é do Professor K. Reconheço seu timbre lenhoso, o tom pacato, ritmado.

A outra, ao contrário, é só um murmúrio, baixo para que possa ouvir. Chego mais perto.

Poderia ir além do laboratório de ciências sem que me descobrissem. No entanto, a

curiosidade me segura e me empurra para a porta. Caminho na ponta dos pés para não

fazer barulho e tomo cuidado para não me expor demais. Atravesso a fenda da porta, e

meus olhos logo encontram o rosto pálido e atemporal do Professor K. Está sentado atrás

da mesa das experiências de química. Vejo uma rã num pote de vidro. As presilhas de

uma bateria. Um bico de Bunsen ao lado de um forno a álcool. Parece uma criatura

proveniente de um mundo distante, à luz amarelada da lâmpada do laboratório. Diante

dele, um pouco mais além da fenda que me permite espiar, tem alguém sentado. É a

segunda pessoa que fala em voz baixa. Só consigo ver a ponta de seus sapatos e dos

jeans. Um menino.

O professor parece muito concentrado no que está dizendo, mas também começou

a falar baixo demais para que eu possa ouvir. O menino diante dele ouve em silêncio.

Depois, quando o professor faz uma pausa o outro se debruça e reconheço a jaqueta de

azul-marinho de Morgan. Um arrepio percorre minha espinha. Agora reconheço a voz.

Morgan! O que está fazendo a essa hora no laboratório do Professor K? Recuo

abruptamente, prendendo a respiração.

Viro: a escada está bem na minha frente. Sinto uma vontade enorme de sair dali, de

descer os degraus de mármore com o passo mais rápido que puder e fugir, como quem

escapa da cena de um crime. Por que a presença de Morgan ali me incomoda tanto? Por

que Professor K e Morgan não podem ter uma conversa? Pensamentos e sensações se

acumulam incontroláveis. Tenho perguntas demais. E nenhuma resposta.

A escada. Voltar para casa, entrar debaixo das cobertas e apagar cérebro. Eis o que

deveria fazer.

Na verdade, Agatha pode esperar.

Desço os degraus como um gato em estado de alerta. Assim que chego ao térreo,

entro na secretaria pela porta semicerrada. Com a ajuda de um isqueiro, ilumino um pouco.

Já entrei outras vezes naquela sala quando era representante de turma, e sei onde estão

os fichários. No móvel cinzento à esquerda. Os mais velhos, embaixo. Os dos alunos

inscritos nesse ano letivo, no alto. Entreabro o móvel devagar, para evitar rangidos, movo o

isqueiro como uma alma inquieta. Encontro a pasta da minha turma, pego, coloco na mesa

suja de tinta e abro. Percorro os nomes de meus colegas de turma. Folhas.

Somos apenas folhas plastificadas.

Agatha.

O isqueiro queima meu dedo. Apago e volto a acender.

Leio o endereço da casa de Agatha na Cidade Velha e transcrevo numa folha. No

escuro, como uma sonâmbula, recoloco a pasta a seu lugar, fecho a porta do móvel,

deslizo para fora da secretaria e de lá vou para a entrada. Rememoro a cena que vi e fico

me perguntando se não foi tudo um sonho, se Morgan e o Professor K estavam realmente

naquele laboratório.

Sinto que a realidade me escapa entre os dedos. Aperto a folha o endereço de

Agatha e me afasto na ponta dos pés.

Paira no ar um cheiro forte de queimado misturado com alguma coisa que parece

gasolina.

E nenhum outro perfume.

18

NÃO VOU À CASA DE AGATHA.

Não consigo.

Dias e noites se alternam. A última particularmente escura, sem sonhos, nem bons,

nem ruins. Só o vazio. Não estou cansada, nem descansada. Não tenho dor de cabeça,

mas minha cabeça também não está leve. O céu é ainda mais insípido que o meu humor.

Ouço Lina chorando desesperada. Não acontece com frequência. O pranto pelo

menos é um som que rompe a casca de seu mundo silencioso. Jogo os lençóis de lado e

saio do quarto para ver o que houve.

Jenna já foi embora. Deixou um bilhete para nós na mesinha do corredor. Faz isso

sempre que sai cedo. .Faça as compras., diz o bilhete, e não há dúvida sobre quem é o

destinatário. Em geral, Jenna deixa longas instruções para mim, precisas e detalhadas,

sobre a administração da casa e de Lina durante a sua ausência. Que, normalmente, dura

o dia inteiro.

Encontro Lina em seu quarto.

— Por que está chorando?

Ela mostra a sua boneca preferida com o pescoço quebrado. Minha irmã tem o rosto

sulcado de lágrimas e os olhos desesperados, como só as crianças sáo capazes de ter.

— Foi Evan, não foi? — pergunto, mas já sei a resposta.

Saio do quarto e parto para o ataque.

Nunca vou entender como aquele psicopata pode desafogar sua em cima de minha

irmã. Não tolero sua insegurança, fraqueza, dificuldade de se comunicar, mas tolero

menos ainda aquelas ações de e inútil maldade.

— Fazer isso com ela faz você se sentir forte? — berro em cima dele, depois de

escancarar a porta de seu quarto. Se estivesse trancada, teria arrombado a pontapés.

O quarto de Evan é pequeno e impregnado de um cheiro estranho forte e ruim,

como uma substância tóxica liberada depois de alguns segundos de inatividade. Aquilo

nem é um quarto, mas um depósito iluminado por uma minúscula janela retangular, tão alta

na parede que só permite a visão de um pequeno retalho de céu cinza.

Lá dentro reina a mais completa desordem: a cama está desfeita. Provavelmente há

meses, e hospeda uma quantidade impressionante de revistas, montes de roupas,

quadrinhos e caixas abertas de CD, uma boa parte delas rachada ou quebrada. A pequena

escrivaninha jaz sepultada por jaquetas, bolsas, papelada, tanta coisa que quem não sabe

que está lá jamais poderia adivinhar sua existência.

A guitarra de Evan é a única que parece ser objeto de algum cuidado. Vermelha

como a pele do diabo, ela se ergue em seu pedestal, dona do quarto, junto com os

amplificadores apoiados na parede do fundo. Maçarocas de fios elétricos se enrolam pelo

chão como serpentes adormecidas. A guitarra consegue dominá-las.

Evan, com fones nos ouvidos e a música a mil, está acabando de se vestir, ou

melhor, de cobrir o corpo esquelético com os primeiros trapos que conseguir desenterrar

da montanha que cobre sua cama.

— Ei! — digo, batendo com a mão em suas costas.

Ele dá um pulo para trás e se vira com ar furioso. Os cabelos lisos e escuros caem

sobre seus olhos apagados.

— Me assustou, porra!

— Tira essa droga do ouvido!

Evan tira um dos fones.

— Qual é?

Mostro a boneca quebrada e nesse meio-tempo percebo que Lina apareceu atrás de

mim e observa a cena assustada.

Ele olha paia a boneca e lança um olhar de desafio.

— E daí?

— Por que fez isso?

— Estava me enchendo o saco.

— Enchendo seu saco? Sua irmã estava enchendo seu saco e você resolve

decapitar a boneca dela? E eu, o que deveria fazer com você agora? — Faço como se

fosse puxar o alfinete de segurança espetado em sua bochecha, mas ele desvia. — O que

está querendo provar com isso? Você não passa de um fracassado!

Sei que aquela palavra o deixa fora de si. Enfia o fone no ouvido e abaixa os olhos.

Depois, num gesto inesperado, pula em cima de mim e me empurra.

— Saia daqui! — berra, expulsando-me do quarto.

E bate a porta na minha cara.

Este é o diálogo com meu irmão Evan.

Estou furiosa, mas não digo nada e fico olhando para a porta, a 2 centímetros da

ponta do meu nariz, e pensando. Não são pensamentos bonitos. Desejo tudo de pior.

Desejo que continue a ser um fracassado.

Em seguida aperto os punhos, raivosa.

Uma mãozinha toca em minha perna.

— Lina, minha pequena. — Ajoelho. — Vou lhe comprar uma nova, novinha, está

certo? Vamos comprar juntas. Quer? — Consolo Lina como posso, mas no final é ela

quem me ajuda. Alguns segundos depois, com os olhos ainda banhados de lágrimas, já

está sorrindo. Pega a boneca decapitada e aperta ao peito.

— Ah, quer ficar com essa mesmo.

Funga, levantando o nariz.

— E não quer uma nova.

Aponta para o alto com o nariz.

— E não está zangada com Evan.

Lina corre para seu quarto, como se tudo já estivesse resolvido. Nunca vou

conseguir entender como faz para perdoar com tamanha simplicidade. Não sou como ela.

Nem ela como eu.

Quem errou tem de pagar.

E meu pensamento corre para Agatha: preciso ir.

****

É um dia frio e nublado. De quando em quando, o céu deixa escapar algumas gotas

de chuva gelada que alfinetam o que encontram pela frente, gente, árvores, automóveis. O

bairro velho fica bem longe de minha casa e, embora o tempo não seja dos melhores,

resolvo ir de bicicleta. Pedalo rapidamente, tanto quanto a corrente balançante me permite,

um pouco pata esquentar, um pouco para desafogat a raiva que ainda sinto de Evan. O ar

gelado me fere a pele. Milhares de alfinetes atingem meus nervos causando um choque

que não é fatal. É energia para prosseguir. É vida.

Chego ao Pequeno Parque e continuo na ciclovia que o atravessa como uma

dolorosa ferida. Toda a cidade está cheia delas: um pedaço aqui, um pedaço lá, sem

solução de continuidade, suturas que parecem obra de cirurgião louco. Junto a mim, a

água do rio escorre impetuosa dentro das margens.

Enquanto pedalo, penso em Morgan. Não sei por quê. Os meninos nunca me

atraíram muito. São seres previsíveis: ou só pensam em inchar os músculos para ganhar

as meninas, ou são magrelos e desajustados, se refugiam em histórias em quadrinhos

improváveis ou fritam os olhos diante da tela de um video game. Em geral, os meninos vão

logo dizendo tudo o que sabem fazer, que fizeram ou farão. Ele não. Ele dá a impressão

de que sobre ele há muito mais a descobrir do que aquilo que mostra.

Depois do parque, há um sinal, cuja luz exausta foi atingida pelas pedradas de

algum vândalo.

Enquanto espero o verde, percebo um rumor de passos às minhas costas.

Viro de repente, com a sensação de que alguém está me seguindo a mesma

horrível sensação que tive alguns dias atrás. Mas não há ninguém, ou melhor, não há

ninguém que pareça interessado em mim.

Verde.

Pressiono os pedais e sigo adiante.

Subo com dificuldade a espinha da estreita Ponte de Ferro que liga a cidade a seu

bairro velho. É estreita e longa, acessível hoje em dia apenas para bicicletas e pedestres.

Por entre as traves escurecidas vejo o rio que, daqui, parece ainda maior e mais escuro. A

força da corrente envolve os pilares de cimento numa explosão de ondas e espumas.

Arrasta consigo troncos, caixas de madeira, garrafas e até uma velha máquina lavar cuja

tampa parece uma escotilha que bate sem patar, como que pede socorro.

Na outra margem, a fachada de tijolos escuros de uma velha fábrica de automóveis,

hoje Museu do Automóvel, é a triste sentinela do bairro industrial, ontem florescente, hoje

esquecido. Tudo transpira abandono, penoso reaproveitamento, precariedade. O barracão

da cadeia de montagem transformou-se num cinema que só passa filmes em língua

original. A torreta da grua do porto fluvial sustenta o letreiro de um bar étnico. A cabine dos

guardas é a antecâmara de uma discoteca que só abre de madrugada. Marcearias-

fantasma abrem e fecham ao longo da estrada que antes hospedava um vaivém contínuo

de caminhões. Ambulantes improvisados vendem bibelôs, livros velhos, discos de vinil

roupas usadas. E, por baixo do pano, qualquer coisa que consigam encontrar. Ao longo do

rio, ondulam algumas balsas transformadas em casas. Dizem que toda aquela zona é

ocupada agora por artistas de vários tipos, que fazem da pobreza uma fonte de inspiração

e do trash uma forma de arte. Acho que não há artistas por aqui. Só desesperados.

Além da ponte, escolho a rua que prossegue estreita e tortuosa para seguida

escalar um labirinto serpenteante de vielas. É ladeada por casinhas pequenas e baixas,

estreitas e espremidas como dentes na boca de um dinossauro. Os letreiros sobre as

portas estão apagados, mas não deixam dúvidas: esta é a rua das casas noturnas, todas

rigorosamente fechadas. No chão, algumas garrafas vazias recordam a longa noite que

acabou de passar. Ouço o barulho que fazem ao rolar arrastadas pelo vento que vem do

rio. À exceção delas e de um grande zumbido que se assemelha ao de máquinas

subterrâneas e que é o som constante da cidade, só sinto o silêncio e muito frio.

Sei que o BabyBlue, onde Seline se sentiu mal, fica em algum lugar nas

redondezas. Quanto tempo transcorreu desde a última vez em que passei uma noitada

divertida com amigos? Que noitada? Que divertimento? Que amigos? Seja como for, é

tempo demais. Tenho me concentrado apenas em meus problemas, que arecem inchar a

cada dia. Primeiro Adam, Seline... não, primeiro os pesadelos, as dores de cabeça e, logo

em seguida, Adam, Seline, o conto (na verdade, não: o caderno roxo veio antes de tudo), o

assassinato do publicitário (como se chamava? Adam? Alek?), as dores de cabeça...

Pedalo furiosamente.

E ainda tem Morgan, Agatha, Naomi e Tito... eles me absorveram tanto que acabei

esquecendo que sou apenas uma menina de 17 anos.

Chego ao coração do bairro velho costeando uma igreja, pequena e descascada

como todos os edifícios ao redor e voltada para um pequeno cemitério. Entrevejo algumas

lápides, enfiadas na relva como bandeirolas. Cada uma com seu lugar certo e, por favor,

não empurrem, nem mesmo no além.

Não há uma alma viva por ali, exceto um homem embrulhado num velho casacão de

lã de carneiro cor de petróleo. Puxa um cão pequeno e pelado, que estica a corda da

coleira furiosamente. Parece ter mais alegria de viver que o dono.

Um pouco além da igreja, a rua se divide. Pego a da direita e começo uma subida

mais íngreme que, depois dos quilômetros já percorridos, exige um esforço maior do que o

que eu estaria disposta a fazer. Só espero não estar perdida... Já deveria ter chegado.

Paro a bicicleta e olho em torno: na beira da rua, algumas árvores tristes e nuas

levantaram o asfalto salpicado de gelo com suas raízes nodosas e robustas. Um pouco

adiante, alguém abandonou um velho sofa de xadrez azul, sobre o qual se enrodilha um

enorme gato selvagem. O supérfluo de alguns é a felicidade de outros. Contando que a

felicidade exista e que você seja um enorme gato selvagem.

Recoloco o pé no pedal e deslizo a corrente da bicicleta para trás.

Casas velhas com o teto inclinado debruçam-se dos dois lados da rua. A maior parte

é cercada por algo que algum dia foi um suntuoso jardim, mas que agora, com a

cumplicidade do mau tempo e do descuido dos moradores, reduziu-se a montes de mato e

espinheiros, esconderijo provável de animais de rua.

Todas as janelas estão fechadas e as portas barradas. Nenhum sinal de vida.

Olho ao redor em busca de alguma placa com a numeração. A casa de Agatha

deveria estar no número 33.

Muitas placas são ilegíveis, mas pelas que sobraram dá para ver que preciso andar

mais um pouco. Desço da bicicleta e caminho lentamente.

Um pouco mais adiante, vejo finalmente o número 33 numa placa de metal e não

acredito no que meus olhos veem. A casa surge em meio a um jardim de espinheiros,

protegido por uma grade de ferro batido que faz com que pareça um cemitério

abandonado. A estrutura da construção é semelhante à das outras casas da rua, salvo por

um toque de originalidade que a torna diversa e totalmente maluca. É completamente

recoberta de conchas, com a argamassa das paredes inscrustada de círculos, retângulos e

motivos florais feitos com conchas de dimensões diversas, colocadas uma ao lado da

outra.

O resultado é que a casa alta, estreita, um pouco inquietante, para ter ficado um

longo tempo submersa no mar e abrigar ainda uma situação de seres abissais.

Por segurança, chego mais perto e verifico o número em cima da campainha: é

mesmo a casa de Agatha.

Encosto a bicicleta na grade.

Abro o portão com facilidade, pois a fechadura está quebrada, e acompanho o

fechamento com cuidado para que não faça barulho. Estou num estreito caminho de

pedras e conchas encastradas no cimento.

Percorro esse caminho até a porta.

Alguém está me observando por trás daquelas janelas negras.

19

A CASA TEM DOIS ANDARES. AS JANELAS SÃO LONGAS E ESTREITAS, como

a fachada, e impenetráveis à vista, com pesadas cortinas coloridas de caimento imperial

por trás dos vidros que o vapor e a falta de manutenção torna opacos. O teto escuro e

muito inclinado alterna telhas que faltam com tufos de mato ressecado pelo frio do inverno.

Fico me perguntando como alguém pode viver num lugar como aquele. Só a ideia já me dá

arrepios.

De repente, ouço um barulho.

A porta de entrada, de madeira com batente duplo, se ergue no alto de uma velha

escadaria de pedra carcomida pelo tempo. As dobradiças rangem num lamento que tem

alguma coisa de torturante. Agatha aparece na minha frente, de jeans, suéter e sapatos

vermelhos. Tem um olhar que é uma ameaça de morte.

— O que quer aqui?

— Passei para falar com você e saber como vai sua tia.

— Ninguém lhe pediu nada. Suma daqui!

— Mas, Agatha, não pode me mandar embora dessa maneira.

— Não posso? Posso fazer o que bem entender em minha própria casa. Além do

mais, ninguém a convidou. Tem que ir embora. Já! — grita ela, fora de si.

Nunca a vi tão furiosa.

De dar medo.

— Tem certeza de que não...

— Estou dizendo pela última vez. Suma daqui!

Vai se aproximando com um ar ameaçador.

Resolvo me afastar. De nada adiantaria ficar, e não vejo jeito de fazê-la raciocinar.

— Tudo bem. Estou indo. Mas isso não vai acabar assim.

E estou falando sério. Agatha está escondendo alguma coisa nessa casa e vou

descobrir o que é.

Caminho até o portão, sentindo os olhos afogueados de Agatha cravados em

minhas costas. Ela murmura alguma coisa. Em seguida ouço o ferrolho do pesado portão

se fechar como a tampa de um caixão.

Agarro a bicicleta, salto no selim e pedalo, fingindo me afastar. Mas é a última coisa

que pretendo fazer. Quando chego ao final da rua, dou meia-volta fora de seu campo de

visão, desço da bicicleta e procuro uma rua paralela, voltando rapidamente sobre meus

passos. Depois de girar em vão pelas ruazinhas da Cidade Velha, consigo pegar

novamente a rua que leva à casa de Agatha, mas chegando pelo lado oposto. Assim que

entrevejo a casa de conchas, afasto-me instintivamente do tráfego e busco abrigo do outro

lado da rua. Sinto o coração bater veloz, depois abandono a bicicleta atrás de uma enorme

caçamba de lixo, que exala seu conteúdo fétido.

Fico ali como uma mendiga e espero.

Observo as janelas altas e estreitas da casa e imagino Agatha ainda imóvel atrás de

uma delas, percorrendo a rua em busca de novos inimigos a expulsar. Não me faço muitas

perguntas sobre os motivos que a levariam a me tratar daquela maneira. Não é o

momento.

Aperto os braços ao redor dos joelhos e escondo o queixo entre as pernas. Os

cabelos caem sobre meu rosto e servem de escudo contra o zindo exterior. O cheiro do

lixo é doce e enjoativo. Um líquido denso escuro escorre ao longo da borda da calçada,

formando uma poça agnada da qual emergem, de vez em quando, horríveis criaturas. São

vermes ou é apenas a minha imaginação?

Um barulho.

Levanto os olhos e ao mesmo tempo me encolho ainda mais atrás caçamba. O

ruído vem da porta da casa de conchas. Ouvir aquele rangido de novo me faz estremecer.

A porta se abre o suficiente para ir passagem a uma figura magra e ágil que, como um

gato assustado, desliza para fora, olha ao redor para verificar se a rua está livre e desce

rapidamente os degraus.

É Agatha.

Tem as mãos enfiadas nos bolsos da jaqueta militar verde, percorre o breve

caminho de pedras e conchas até o portão, se debruça sobre ele e verifica uma última vez

se a rua está livre. Escondida atrás da caçamba, ainda sinto arrepios ao longo da espinha.

Fora do portão, Agatha vira à esquerda, na direção de onde cheguei da primeira

vez, e prossegue para a cidade a passos largos, sem voltar.

Espero que desapareça da vista, antes de sair a descoberto. Não sei quanto tempo

ficará fora, mas espero ter tempo suficiente para descobrir o que anda aprontando. Agora,

seu comportamento se tornou realmente misterioso demais.

Deixo a bicicleta atrás da caçamba e me aproximo da casa, esfoçando-me para não

olhar as janelas escuras e as cortinas que, como frondosas árvores subaquáticas,

protegem segredos obscuros. Abro novamente o portão quebrado e dou uma volta rápida

ao redor da casa para controlar a situação. Os espinheiros do jardim chegam a meus

joelhos. Picam e arranham, como unhas. A casa permanece imóvel, assentaca sobre

alguma coisa palpitante e ameaçadora que me cerca e que percebo a cada passo, a cada

ramo partido, a cada arbusto que arranha meus pés. Se quiser entrar, não pode ser pela

porta da frente, seria muito arriscado. Procuro uma janela semicerrada no térreo. Passo

perto de uma varanda do lado esquerdo da casa, mas a porta de vidro e ferro batido não

abre. No interior, entrevejo vasos e vasinhos dos quais despontam tufos esverdeados,

restos daquilo que deve ter sido uma bela e verdejante estufa.

Um gato cinza-escuro de olhos amarelos me observa de cima de uma pilha de

vasos encaixados.

Não sabia que Agatha tinha um gato.

Encostada à parede, vejo sua velha bicicleta de corrida, um esqueleto de ferrugem e

engrenagens rangentes.

Continuo minha busca de uma passagem para entrar, mas do lado esquerdo, onde

as janelas parecem vedadas por uma camada de petróleo escuro e oleoso, todos os

acessos para a casa também estão fechados.

Quanto mais ando, mais me convenço de que tem alguma coisa que não bate. É só

uma sensação, mas até agora minhas sensações nunca me enganaram. Quando chego à

parte de trás da casa, minhas esperanças renascem. Emboscado no mato alto há um

velho trenó abandonado, talvez seja uma velha carroça com varais de madeira. Mas bem

ao lado da carcaça de madeira, embaixo, quase no nível do chão, abrem-se parede da

casa três pequenas janelinhas retangulares.

— Deve ser o porão — digo em voz baixa.

Aperto a mão delicadamente contra a primeira janela: fechada. Faço o mesmo com

a segunda: fechada também. Respiro profundarente e tento a terceira: alguma coisa se

move. Sinto uma descarga de adrenaIina que vai dos dedos às pontas do cabelos. Com as

duas mãos, faço uma leve pressão no vidro empoeirado, que vai abaixando devagarinho

até abrir. Enfio a cabeça no interior para verificar. A luz filtrada pelas pequenas janelas é

pouca, mas permite que veja que não há ninguém. É um porão.

A passagem para entrar é estreita, mas não tenho problemas para passar. Apoio um

pé numa caixa velha e deslizo para dentro. Um forte cheiro de mofo me acolhe, misturado

com alguma coisa química que o consigo definir direito. O porão está cheio de frascos de

tinta e pesticidas caídos semiabertos no interior de algumas caixas de madeira. Cubro o

nariz e a boca com a echarpe e sigo. O cheiro químico é penetrante e me deixa sufocada.

Chego até uma escada com os degraus cheios de latas, saquinhos, objetos ou partes de

objetos empilhados e esquecidos ali sabe-se lá há quanto tempo.

Abro passagem inserindo um pé aqui, outro ali, onde consigo descobrir um pouco de

espaço. Uma vez lá em cima, procuro a maçaneta às apalpadelas. É redonda e gelada.

Aperto a mão em torno dela e tento girar.

Ouço um clique baixinho. E estou na casa.

****

O cheiro aqui também é estranho, uma combinação irritante de remédio com algo

que lembra vinagre, mas muito mais forte.

Os tetos são muito altos e marcados cá e lá por manchas de umidade. O corredor

em que me encontro é longo e estreito, sufocado por quantidade exagerada de quadros

nas paredes e móveis cheios de objetos velhos e poeirentos. É como se a vida aqui dentro

tivesse parado am dia, numa certa hora, e ninguém tivesse se dado o trabalho de acionar

de novo os ponteiros do relógio. O ar é pesado, carregado de um silêncio tão absoluto que

tenho medo de rompê-Io até com um simples respiro. Flutuo sobre as espessas tiras

verdes de carpete que cobrem o pavimento de mármore e me levam até a entrada,

dominada por uma escada de pedra íngreme e imponente. À primeira vista, não parece

haver ninguém em casa. Mas a tia de Agatha tem que estar em algum lugar, talvez no

andar de cima.

Não sei o que estou procurando exatamente.

Uma resposta.

Um porquê.

Pouco além da escada, o corredor continua, estreitado por uma vistosa estante

carregada de livros além de sua capacidade. Livros antigos, com letras douradas e

encadernações de marroquim vermelho. Livros de escola. Manuais universitários

empilhados no chão. Atlas com pedaços de papéis despontando entre as páginas: viagens

impossíveis anotadas no papel. Imagino que pertenceram ao pai de Agatha.

Duas portas fechadas tornam esses poucos metros escuros demais para não serem

opressores. Sigo a curva do corredor e finalmente entrevejo uma luz ao fundo. Vem de um

quarto com a porta aberta. Vou me aproximando lentamente. É a cozinha. Deserta. Não há

utensílios. nem pratos, nem comida. À parte um pacote de pão aberto sobre uma mesa e

uma caixa de comida de gato, não há nada que faça pensar que costume ser usada. No

balcão de mármore escuro, perto da janela, vejo grandes vidros transparentes, todos

hermeticamente fechados e cheios pela metade de líquidos e pós que não saberia

identificar. Chego mais perto para ver melhor o que é. Etiquetas adesivas com estranhas

fórmulas químicas. K20, S102, NaOH, RbOH, NH3, P.

O que serão?

O Professor K seria muito bem-vindo.

Pense, Alma. Pense.

Passo o dedo pelas etiquetas... P de fósforo, NH3, amoníaco. E NaOH? Claro, a

experiência do vinagre que fizemos com o professor! Hidróxido de sódio.

Acho que nunca vi as outras fórmulas. O que diabos está tramando Agatha?

De repente, o ponteiro do grande relógio de porcelana esbranquiçada pendurado na

parede se desloca com um rumor seco e mecânico. Por um instante, penso que vou

morrer. Em seguida, recomeço a respirar.

Esquecendo as fórmulas, retorno à escada e começo a subir os deque levam ao

segundo andar, lentamente.

Muito lentamente.

Observo o jardim de dentro de casa.

Tudo é cinza.

Os vidros são cinza.

Como sudários.

Subo.

Quando chego ao patamar, entre um lance e outro da escada, paro para tomar

fôlego. Olho para baixo, depois para o alto. Atrás de mim há um velho sofá de xadrez

escocês com cobertas amontoadas em cima e um guarda-chuva apoiado no braço direito.

Parece que ninguém arruma faz tempo.

Recomeço a subida. Enquanto o primeiro andar se materializa pouco a pouco diante

dos meus olhos, noto uma lâmina de luz artificial proveniente da parte de baixo de uma das

quatro portas que dão para o corriedor central. Todas fechadas. Quatro portas fechadas.

O ar do primeiro andar é ainda mais pesado e irrita meu nariz.

Apoio-me no corrimão da escada e subo o último degrau.

Cheiro de amoníaco.

O carpete púrpura que recobre o pavimento lembra a cor do sangue. Não sei o que

fazer. Gostaria de sair dali o mais rápido possível, mas as quatro portas fechadas diante de

mim são como uma isca irresistível.

Dou um passo. Um segundo. Meus sapatos afundam no carpete como num pântano

lamacento. Sacudo os arrepios que voltam a percorrinha espinha como um enxame de

insetos.

Vou até a porta de onde provém a luz.

Tenho a impressão de ouvir um zumbido.

A luz.

Elétrica.

Chego mais perto. A porta não está perfeitamente fechada como parecia.

O cheiro de amoníaco é fortíssimo.

Há uma fresta. Um centímetro ou um pouco mais.

Encosto o olho.

Espio.

Um quarto de dormir.

Uma cama gigantesca, como uma medusa. Um dossel e tiras de gaze que pendem

de um enorme colchão, inchado como um cogumelo prestes a explodir. Só tenho tempo de

ver uma mulher estendida na cama, rígida e imóvel.

Imagino que seja a tia de Agatha.

Em seguida, ouço com clareza angustiante o rumor do portão de ferro batendo

contra o muro. Os passos no caminho de cimento e conchas. Agatha está de volta. Sem

pensar nem um instante, desço a escada correndo e percorro o corredor do térreo ao

inverso até a porta do porão. Agarro a maçaneta e espero com todo o meu coração que

abra por dentro também. Gira.

Abre!

Desço a escada num segundo e milagrosamente não esbarro em nenhum dos

objetos largados nos degraus.

Olho para a janelinha por onde entrei. Subo nas caixas de madeira, agarro a

moldura da janela e deslizo para fora, arranhando as mãos.

Mas não importa.

Dentro em breve estarei no jardim e Agatha nunca saberá de nada sobre aquela

visita.

Agarro os varais do velho trenó de madeira, ou seja lá o que for, e aperto com força,

fechando os olhos.

A porta da entrada se abre, ouço os passos de Agatha subindo escada.

Fujo como um ladrão.

Como um fantasma.

Como uma menina de 17 anos aterrorizada pelo que acabou e ver.

Pedalo furiosamente.

A corrente gira. A lataria geme como se fosse se desfazer de um momento a outro.

Chego ao rio.

Abro a boca para respirar um pouco de vento.

Sinto a cabeça pesar, como se tivesse trazido comigo uma parte. Enorme

quantidade de objetos que enchem aquela casa.

20

O DIA SEGUINTE COMEÇA SOB OS SIGNOS MAIS FAVORÁVEIS: Evan me

cumprimenta, Jenna ainda não foi para o hospital, o céu é azul e não grandes trabalhos ou

deveres de casa à vista. Parece um milagre. Para comemorar a ocasião, escolho um

vestidinho verde bem justo e decotado, com um par de botas de camurça preta de salto

alto. Estes detalhes bastam para que me sinta mais forte e tranquila.

Quando chego à escola, todos os meninos viram os olhos para mim. Mas

instintivamente, os meus procuram alguém especial. Morgan.

Não está no pátio, nem na escada.

Está na porta de minha sala. Esperando por mim?

Veste uma calça preta ou talvez azul-marinho e um suéter azul bem justo. É a

primeira vez que o vejo com alguma coisa clara. Usa uma echarpe, escura como a calça,

enrolada ao redor do pescoço como uma serpente protetora. Alguns raios de sol filtrados

pela janela o iluminam como se fosse um ator em seu palco. Seus cabelos são pura luz,

seus olhos pedras preciosas. Parece um anjo.

Olha para mim como se quisesse me hipnotizar e espera que eu me aproxime.

Segura minha mão sem dizer nada. Depois desaparece na multidão de alunos e me

vejo com um bilhete na palma da mão. Aperto o pedacinho de papel por alguns instantes

antes de abrir os dedos e ler: .Encontro você no Zebra Bar depois da aula. M..

****

Quando entro na sala, meu olhar cruza imediatamente com o de Agatha. Ela voltou.

Bom.

— Oi.

Tento manter o tom mais neutro possível. Não tenho medo de que tenha descoberto

tudo. Sei que é impossível.

— Oi — responde ela com a costumeira expressão impenetrável.

— Como vai sua tia?

— Como alguém que tem uma doença incurável e tenta resistir de qualquer maneira

— responde seca. Acho que é a frase mais longa que já pronunciou desde que a conheço.

— Fico contente.

Ela bufa:

— Ouça, Alma...

Faço um gesto com a mão:

— Deixe isso para lá. Não devia ter ido sem avisar.

— É — diz ela ainda, antes de abaixar os olhos.

Seline e Naomi também chegam. Seline continua desaparecendo de vez em

quando, sem que ninguém se preocupe com isso. A pele de seu rosto é pálida e esticada,

os olhos são dois sóis apagados, encovados na fossa de duas olheiras profundas. Os

cabelos caem dos dois Iados do rosto, sem iuz, em sintonia com a tristeza que toda a sua

expressão transpira.

— Oi — cumprimento.

— Oi.

Naomi também parece mais cansada que o habitual.

— Tudo bem? — pergunto.

— Sim, tudo.

— Parece que não dormiu direito.

— Não dormi muito no fim de semana — admite com um sorrisinho.

Não sorrio.

— Como assim?

— Saímos!

Tito.

Trata de se corrigir em seguida, agitando as mãos.

— Quer dizer... não foi um encontro propriamente dito. Não estávamos sozinhos.

Em todo caso... Tito me convidou para uma festa muito exclusiva.

Dou um olhar atravessado. Não gosto desse tipo de coisa, nem se tipo de gente. E

ela sabe disso.

— Quando?

— Pediu que me aprontasse toda noite. Será uma surpresa.

— Não deixe de nos contar — concluo sem dar a menor satisfação a Naomi.

Ela fica mal, pois o pensamento de participar de alguma coisa extremamente

.exclusiva. a enchia de orgulho.

— Alma, tem uma coisa que me deixou curiosa.

Olho para ela com uma expressão interrogativa.

— Conhece uma menina chamada Tea?

Sinto o alarme soar em minha nuca.

— Sim, por quê?

— Fui apresentada a ela por Tito. Disse qual era a minha escola, de minhas amigas,

e quando citei o seu nome...

— Como é que ela frequenta essa turma?

— Pelo mesmo motivo que faz alguém frequentar qualquer turma: gosto. É amiga

de Tito. Não falamos muito, para dizer a verdade. Não me pareceu uma pessoa muito

sociável.

— É filha do namorado de minha mãe — digo eu.

— Ah, não sabia... — Naomi esfrega as mãos um pouco, como quem decide se

deve ou não fazer uma revelação. — Bem, tem uma coisa que você precisa saber.

— O quê?

— Sem querer, fiquei sabendo de uma coisa que não deveria ter ouvido.

Espero que continue.

— Ela pretende roubar dinheiro do pai porque está no vermelho.

— Foi pega roubando no lugar onde trabalha — corrijo.

Olha para mim contrariada:

— Não, tenho certeza: falava em roubar o caixa de um bar.

Agora quem fica mal sou eu, como se uma pedra enorme tivesse caído em minha

cabeça.

Repito comigo mesma que não tenho nada a ver com isso, que não devo me meter,

pois quem se intromete em coisas que não lhe dizem respeito sempre acaba se dando mal

e se metendo em alguma encrenca.

No entanto, a ideia de Gad sendo roubado pela própria filha gela meu sangue.

Sacudo a cabeça. Naomi sorri, como se tivesse acertado as contas.

— E você? — pergunto a Seline.

— Estou me esforçando.

— Notícias de Adam?

— Está na diretoria.

Agatha senta em sua carteira, um pouco distante da minha.

— E Morgan? — pergunta sem olhar para mim.

— Morgan? — respondo fazendo eco.

— Estava falando com ele ainda agora.

Olho as costas de minha amiga e confirmo para as outras.

— Ele me convidou para tomar um café.

— E você vai? — pergunta Naomi.

— Acho que sim.

— Então deve gostar mesmo dele...

Sabem como sou difícil. Dou de ombros.

— Simples curiosidade, nada mais.

A campainha interrompe a conversa.

Vou para o meu lugar.

Tem alguma coisa sob a carteira: um origami, um pequeno animal de papel. Pego e

examino à luz da janela. Parece um dragão. Um dragão?

Meu pensamento corre veloz... para o anel de Adam, a emboscada no rio, os atos

de vandalismo na diretoria.

Um dragão.

A professora entra.

Enfio o bicho no bolso e me esqueço dele por enquanto.

****

Adam está imóvel diante da porta da diretoria. A seu lado, o pai. Um homem alto e

despenteado, com uma jaqueta de veludo marrom. Adam está com os olhos pregados no

linóleo verde. Não é por medo de encarar julgamentos e recriminações. A verdade é que

seu olhar dá medo. Descubro isso quando desço a escada de mármore e ele, quase como

se tivesse percebido minha presença, levanta os olhos ainda avermelhados fixando-os em

cima de mim. É como se quisesse me matar. De susto tropeço nos degraus. Quer se

vingar. Como se tivesse incendiado a diretoria por minha culpa. Como se tivesse filmado

Seline enquanto se trocava por minha culpa. Faço a concessão de aceitar que esteja

furioso pela lição que lhe demos no rio. Quanto ao resto, o único culpado é ele mesmo.

Chego ao térreo, viro para o outro lado com um movimento muito acentuado da

cabeça. Meus cabelos são chicotes que gostaria de jogar contra sua cara. Sinto seu olhar

queimando minhas costas.

Um olhar de dragão.

Um dragão que despertou. E do quai quero manter distância.

Saio da escola me esforçando para não correr.

Não tenho mais vontade de encontrar com Morgan. Uma angústia incrotolável

serpenteia pela minha garganta e desce em seguida até o estômago.

Mas tenho menos vontade ainda de voltar atrás. Nunca voltar atrás, dizia sempre

meu pai.

E, pelo menos nisso, ele sempre foi coerente.

21

O ZEBRA BAR É UM LOCAL PEQUENO QUE FICA A POUCOS QUARTEIRÕES

da escola. Talvez seja por isso que não costumo frequentá-lo. É muito chato encontrar

sempre as mesmas caras. Não há intimidade. Todos se vigiam, olham com quem você

está e depois partem para a fofoca. As histórias mais incríveis foram inventadas nas

mesinhas daquele bar. E impressionante o poder do boca a boca.

Ao longo da rua, uma fila indiana de carros dispara nuvens de gás carbônico como

se fossem serpentinas no carnaval. Tem gente que segiue rápido, com a cabeça baixa,

como um monte de aríetes. Protejo-me na gola de minha jaqueta. Não sinto cheiro algum.

Enfio as mãos, quase congeladas de frio, nos bolsos. Quando faço isso, toco no

origami. Tenho a sensação repentina de que ele vibra sozinho. Com certeza, é pura

impressão.

O letreiro branco e preto sobre a porta e a enorme zebra de plástico a seu lado me

recebem na entrada do bar. Têm alguma coisa de surralista, sobretudo nesta cidade que

não tem sequer um zoológico.

No interior, a saleta está entupida de jovens, vozes e música lounge como pano de

fundo. Pavimento negro brilhante, mesas e sofazinhos brancos. Balcão com listras

obçíquas. Luzes baixas.

Levo menos de um segundo para localizar Morgan; tenho a nítida sensação de que

alguém está olhando para mim. Viro e lá estão seus olhos, magnéticos. Está sentado no

fundo da sala, numa das mesas, virado para a entrada para controlar quem entra. Não faz

nada, nenhum gesto para identificar. Parece seguro de que seus olhos são suficientes. E

são.

Vou chegando lentamente, sem mudar de expressão, sem tirar meus olhos dos

dele. Quando chego lá, ele sorri e se levanta.

— Oi — diz com voz calma.

Oferece seu lugar, de onde dominava o ambiente, para mim. Tiro a jaqueta e coloco

no sofazinho ao lado. A partir desse momento só nós dois existimos.

— Fico contente que tenha vindo.

— Bem, não gosto muito do Zebra, mas...

— Colegas demais.

— É, exatamente.

Como faz para adivinhar o que penso? Sou um livro tão aberto assim? Ou ele

simplesmente vê as coisas da mesma maneira que eu?

Um garçom alto, moreno e bronzeado se aproxima.

— Dois cafés Zebra — diz Morgan.

Olho para ele, mas não protesto. Em geral, gosto de fazer meus próprios pedidos,

mas escolheria exatamente um café Zebra, a melhor coisa que servem por aqui.

— Foi para isso que me convidou?

— Claro: para um café Zebra... — sorri ele.

Quando Morgan sorri, seu rosto muda completamente. Suas feições um pouco

angulosas se suavizam bruscamente e seu charme misterioso se envolve numa beleza

solar, arrebatadora. Não saberia explicar melhor, ele ilumina tudo que está a seu redor,

inclusive eu.

— Não vai me dizer a verdade?

— Foi por causa de um dragão.

De todas as respostas que podia esperar, aquela me confunde completamente.

— Um dragão?

— Um dragão.

— Foi você?

Enfio a mão no bolso da jaqueta a meu lado com cuidado, como tivesse medo de

que o origami me mordesse.

Os olhos de Morgan seguem meu movimento.

— Eu o quê?

— De que dragão está falando? — pergunto.

Meus dedos remexem no bolso. Tiro lentamente o origami e coloco na mesa.

Morgan está surpreso. Olha sem dizer nada.

— Bonito — diz em seguida. — Mas não é obra minha.

Naquele momento, o garçom chega com os pedidos. Pousa na mesinha duas

xícaras fumegantes de café coroado com uma nuvem de chantilly com listras de chocolate

derretido. Entre as xícaras, o pequeno dragão de papel que parece vibrar sob as luzes

baixas do local.

— Com certeza ouviu falar do que aconteceu na diretoria.

— Claro, toda a escola ouviu — respondo. — Foi Adam.

— Foi Adam — repete ele. Mas seu tom deixa entender que existe uma versão dos

fatos que ignoro.

— Encontraram o anel — acrescento.

— É.

Inspiro o perfume inconfundível do café. Morgan me imita, ma não sei se está

zombando de mim.

Com a colher, raspo a tira de chocolate e levo à boca. Depois faço o mesmo com o

chantilly. Pela primeira vez, fico tímida, acho que estou com um bigode no canto da boca e

não estou relaxada e segura de mim como sempre.

— Isso não é um simples dragão, é um dragão-marinho — diz ele retomando a

conversa e apontando o origami.

Fico ouvindo, com o sabor do café na boca e um mar de pensamentos na cabeça.

— O dragão tem uma história que se perde no tempo. Existe desde sempre. Na

Mesopotâmia, no Egito, na Grécia, em Roma... nas maior civilizações antigas do Ocidente.

E tem quase sempre um valor negativo. O dragão representa o mal a ser combatido.

Ouço sem perder uma palavra.

— No Oriente, ao contrário, as coisas são bem diferentes: na China, ele é

considerado um espírito benéfico, fonte de vida. É sábio. Guarda as tradições. Protege.

— Por que está me contando tudo isso?

— Observe bem — diz ele, aproximando o pequeno origami de mim. Examino com

atenção. — Não entende nada de dragões, não é?

Como se fosse normal e comum se interessar por isso!, penso eu.

— Vou explicar... Precisa observar bem as asas.

— São pequenas.

— Justamente. Porque o dragão-marinho não precisa voar.

— Claro, mas...

— Espere. Aqui não dá para ver bem, mas o dragão-marinho também tem as patas

palmadas.

Continuo sem entender aonde ele quer chegar.

— Já viu um dragão assim antes, Alma?

Recordo a noite no rio. O dedo de Adam apontado contra mim. Seu anel flamejante

à luz do lampião.

— Não sei. Não sei se era exatamente esse tipo de dragão. Mas o anel de Adam...

— Exatamente. Ele tem um dragão-marinho gravado, O dragão é um símbolo. Um

símbolo de poder, ou melhor, de pertencer ao poder.

— O que quer dizer com isso? Que Adam faz parte de um grupo?

— Não. Só quero dizer que deve ficar atenta e se proteger.

— Proteger de quê?

— De quem usa esse símbolo.

Sacudo a cabeça.

— Não estou entendendo.

— Acho que está, sim.

— Está me ameaçando?

— Só estou avisando.

— Você não tem um anel desses.

— Não tenho nenhum poder.

Leio algo a mais em seus olhos, algo que ele não diz, mas tenta transmitir. De

repente, sinto uma sensação de sufocamento.

— Você é mesmo muito esquisito.

— À vezes.

Bebemos um gole de café.

— Em geral, os caras não costumam convidar uma menina a um bar para... ficar

falando de dragões.

— Tem razão — sorri ele. — Portanto, vou tentar fazer alguma coisa mais normal:

vou lhe dar meu telefone. Caso tenha vontade de tomar outro café Zebra ou...

Deixa a frase em suspenso e rabisca um número no rabo do dragão de papel.

Levanto, visto a jaqueta e enfio o origami no bolso.

— Preciso ir.

Ele levanta também.

— Tchau — despede-se.

Tem um monte de gente conhecida no Zebra Bar, mas me sinto como uma estranha

que caiu ali por engano, cercada de pessoas enigmáticas e péssima música.

Estou com dor de cabeça.

Quero sair.


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