Devaneios De Um Coração Amargurado escrita por Uriu


Capítulo 1
Tarde Quente de Verão




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por Willen Leolatto Carneiro



A escuridão se apossava das velhas paredes já gastas pelo tempo e castigadas pelo clima. A chuva caía pesada em cima da enorme construção que se erguia ao norte da cidade, que outrora estava apinhada de pessoas em suas ruas abrindo suas tendas para tentar ganhar a vida. As nuvens cobriam o solo e tornava o que era pra ser um dia ensolarado, em uma tempestuosa tarde escura e fria. Nas muralhas do castelo da capital de Rune-Midgard, Prontera, as sombras se destacavam pelo fato de haver várias tochas em suas amuradas, presas na enorme entrada coberta, depois da ponte de madeira que dava acesso ao castelo.

Um raio atravessou os céus e fez clarear a cidade por alguns instantes. Fez a sombra de um homem que entrava no castelo crescer, formando uma criatura grotesca na parede enquanto o vento fazia sua capa farfalhar, soando alto enquanto chicoteava o ar. A longa capa negra cobria o corpo do homem que lentamente andava pela passarela depois da entrada no castelo.

Seu olhar era tão frio como o vento que batia e assoviava do lado de fora da imponente construção, observando todo o local com uma tranquilidade inquietante. Mechas brancas escorriam por de baixo de seu capuz e escondiam parte do rosto do homem, ainda caminhando lentamente dentro do castelo. Alguns viajantes que passavam por ele vindos do outro lado, o encaravam e paravam desacreditados, tentando entender e lembrar-se da pessoa que caminhava lentamente até o interior do castelo.

- O maestro... – Um deles parou pouco depois de encarar o homem e ficou olhando para suas costas. Era um já experiente e maduro cavaleiro, que ficou observando o misterioso encapuzado andar. – Ele voltou...

- “Chegou o tempo de reviver o meu passado e percorrer novamente este caminho.” – Foi o único pensamento do homem que estava protegido em sua capa, parando em frente a uma longa escadaria e observando desde o chão até o teto do caminho. Seu olhar determinado e sereno revelava seu objetivo.



Quatorze anos atrás...


O som de passos, os pássaros voando em revoada, os vários homens e mulheres conversando e soltando suas risadas. Era a musica que animava um jovem animado no meio da Praça de Prontera. O dia ensolarado e a brisa fresca atraíam o publico até a fonte que ficava no centro da praça, e lá um homem tocava entusiasmado um instrumento de madeira, com um braço comprido saindo de sua caixa acústica e com seis cordas afinadas nos tons certos. Ao lado do jovem musico, uma bela garota dançava e acompanhava o ritmo da melodia que resoava no local e trazia muitos jovens, crianças e viajantes para ver a dupla que fazia sua apresentação.

Alguns deles puxavam as carteiras e sacolas de moedas para entregar algum dinheiro, mas a jovem que dançava ia até eles e empurrava graciosamente as mãos para longe, revelando que aquela apresentação era apenas para o bel prazer. Embora muitos pensassem que o casal fosse uma dupla de artistas querendo ganhar a vida, os dois não se vestiam de forma indigente. O musico tinha em suas mãos um violão de alta qualidade, e trajava vestes limpas, retocadas e suaves, com alguns detalhes engastados em ouro e prata, além do belíssimo chapéu com uma pluma no topo, que ele usava. A jovem dançarina usava as mesmas roupas de uma cigana, mas as joias que ela usava eram finas e muito reluzentes.

- Hey, você está no meu ponto... – Um jovem gritou em meio à multidão que se aglomerava para ver o casal. Embora houvesse soado como uma ameaça, a música não parava tão pouco a dança.

Um jovem de aparência jovial passou por entre os ouvintes e parou à frente dos dois. Tinha os cabelos ruivos e bem cuidados balançando ao vento. Carregava um violão com cordas de nylon, semelhante ao do homem que ainda tocava.

- Você não ouviu? Esse aqui é o meu ponto. Vai tocar em outro lugar. – O ruivo parou à frente do músico. A dançarina finalmente parou e ficou olhando um tanto preocupada para o seu companheiro. Tinha a íris do olho em um tom verde muito profundo, criando um contraste para seus cabelos castanhos escuros e seu belo corpo.

O homem deixou a sua ultima nota ressoar e então o publico que estava ao redor deles começou a reclamar do ruivo, culpando-o pela música que não estava mais tocando. Porém, o homem levantou da beirada da fonte onde estava e segurou seu violão, apoiando a base da caixa acústica no chão e usando o braço do instrumento como apoio. Os olhos dele reluziam o azul cristalino da fonte, deixando sua coloração esverdeada mais brilhante. Por baixo do chapéu, a luz rebatia uma fina camada dourada por cima de seus cabelos acinzentados.

- Então, esse é o seu lugar? – A voz do homem, embora fosse grossa, era harmoniosa e tranquila. Ele encarava serenamente para o ruivo, que pareceu se incomodar com a resposta.

- É sim! Eu sou quem toco nessa parte da cidade. – O ruivo falava com extrema exigência. Algumas pessoas que estavam ao redor murmuravam sobre já terem visto aquele jovem na praça todos os dias. A dançarina se aproximou de seu companheiro, mas ele levantou a mão gentilmente e sorriu para o ruivo.

- Certamente, foi algo deveras deselegante de minha parte. – O músico virou-se e começou a arrumar o violão dentro de uma capa de couro, leve. A garota ao seu lado suspirou e sorriu, acompanhando-o e também abraçando o braço livre do músico.

- Espera aí, como assim? Vai sair sem falar nada? – O ruivo estava apreensivo, percebendo que conseguira demasiadamente fácil a retirada do músico.

- Não. Não é de meu interesse competir com outros músicos ou artistas. – O homem falava tranquilamente, pendurando as alças da capa do violão em seu ombro. – Bom músico é aquele que respeita a melodia e o carisma dos outros. Se não gostassem de você, acho que não permitiram sua ilustre presença aqui.

O publico olhou boquiaberta para o homem. Suas palavras foram mais do que suficientes para retornarem em elogios, sorrisos e até alguns aplausos para ele. O ruivo percebeu que estava perdendo seu carisma com a multidão e então apontou o violão na direção do homem.

- Não. Só sairá daqui depois deles decidirem quem é o melhor dos instrumentistas. – Confiante, o jovem exibia um pequeno sorriso ao seu oponente.

- Como eu disse, não sou alguém que persegue as competições musicais. E não é correto você desafiar alguém sem dizer quem é antes. – O músico falava com uma tranquilidade impressionante.

- Eu sou Johann Klaustrus. – O ruivo apontou o dedão para seu rosto, confiante. – E sou o menestrel andarilho que é mais bem vindo em qualquer lugar do que o próprio Mariachi.

A menção daquele nome pareceu inquietar as pessoas ao redor deles, inclusive o próprio homem que outrora tocava suas melodias pacificamente. A dançarina arregalou os olhos e observou seu parceiro. Ela era mais baixa que ele, mas podia ver claramente a feição de tensão no rosto do seu companheiro.


- Compreendo. Já que você quer tanto, faremos uma pequena demonstração. – Rapidamente, o homem abaixou o ombro e a capa caiu. Ele segurou as alças antes que o instrumento tocasse o solo e então se ajeitou, soltando-se do abraço da garota e retirando o violão novamente.

Os dois se entreolharam. Johann usava um violão magnificamente detalhado com prata e todo talhado em uma madeira jovem e pintada em preto, dando um ar mais profissional ao seu instrumento. Já o violão do músico era todo em cor natural, um pouco gasto, mas possuía o mesmo encordoamento de nylon que o violão do ruivo, e nenhum detalhe exorbitante.

- Melody, você vai ficar apenas observando. Tudo bem querida? – O homem virou-se para falar com sua parceira, que assentiu e se afastou um pouco.

- E você, ainda não disse quem é. – Johann foi apressado ao perguntar.

- Perdoe meus modos. – O homem voltou a encarar o ruivo e esboçou um sorriso. Fez uma pequena reverência e então retornou a sua posição normal. – Eu sou conhecido como Tenkisei, o maestro.

Alguns viajantes que passavam sem dar importância pararam ao ouvirem aquele nome e título. Muitos dos que já estavam presentes caçoavam, duvidando de como seria uma suposta luta entre dois músicos, e outros olhavam pasmos, aguardando até o momento em que o conflito começasse.

Johann ajeitou seu violão, passando a alça ao redor do pescoço e deixando o instrumento suspenso, na altura de sua barriga. O ruivo então puxou do bolso um pequeno objeto de forma triangular, mas com os cantos curvilíneos, e usando apenas o dedão e o indicador, apoiou a mão direita em cima das cordas, situadas em cima do buraco da caixa acústica do violão.

Tenkisei seguiu os mesmos gestos do ruivo, porém ao invés de usar uma “palheta” para tocar, ele apenas colocou a mão aberta, com os dedos posicionados levemente em cima das cordas, cada ponta do dedo em uma corda diferente. Johann olhou surpreso.

- Você... É diferente do que já vi. – Ele olhava impressionado para a posição de mãos de Tenkisei.

- Ora, se devemos divagar sobre como nós tocamos, então paramos o duelo e vamos conversar. – O homem de cabelos prateados respondeu tranquilamente.

- Não, vamos duelar de uma vez. – Johann urrou ríspido.


Os dois se encararam mais uma vez e então começou. Johann bateu sua palheta uma vez em uma das cordas e o som do violão ressoou. Era grave e melodiosa, tocada rapidamente por suas técnicas com a palheta. Porém, Tenkisei seguiu o mesmo ritmo e tocava harmoniosamente, dedilhando os dedos e criando uma sequência de notas que se completavam, soando como se houvessem mais instrumentos presentes ao lado de Tenkisei.

Os dois mantinham os olhares fixos ou no outro, mas enquanto o maestro exibia serenidade, Johann tinha uma feição de impaciência e tensão. Tanto o dedilhado de Tenkisei quanto as palheta das do ruivo se complementavam e a música que tocava era uma badalada mistura de sons rápidos e bem estruturados com um toque sutil de combinações harmoniosas de vários acordes.

A velocidade das notas tocadas aumentava a cada instante, e quanto mais os dois tocavam, mas os dedos de Tenkisei pareciam sumir por cima das cortas. Johann já não estava acompanhando mais o ritmo da música do homem de cabelos prateados, e teve de diminuir o compasso até que suas batidas singulares e sincronizadas nas cordas se tornassem um conjunto de cordas tocadas para formar uma única nota, deixando os acordes e notas rápidas de Tenkisei mais altas e audíveis.

O publico já estava aplaudindo a desempenho dos dois. Os poucos que haviam se interessado antes já haviam se multiplicado para uma verdadeira plateia. Alguns tentavam criar letras para acompanhar a musica, mas ou eram desafinados de mais para complementar a melodia, ou não tinham fôlego para alcançar uma nota mais aguda.

Repentinamente, Johann mudou a posição da nota com sua mão esquerda e quebrou o ritmo, mudando também a nota base. A música parecia parar por causa da mudança brusca, mas então Tenkisei também mudou o posicionamento dos dedos da mão esquerda, acompanhando o mesmo timbre das bases de Johann e recuperando o tempo com um harpejo, uma sequencia de notas singulares tocadas rapidamente na mesma entonação da nota base.

Muitos que assistiam aquela apresentação pela tarde gritaram, pediram para que a música não parasse e vários outros imploravam por suas canções favoritas. Mas quando Tenkisei fez uma rápida sequencia de notas solos e Johann apenas encarava com uma feição abalada, a música foi tomando rumo, e o maestro decidia o duelo terminando de forma impressionante aquela melodia.

Aplausos, rosas e moedas eram jogados. Gritos e cânticos entoados. Tudo por causa da apresentação breve entre Tenkisei, tido como maestro por onde passava, e o seu desafiante Johann, cuja melodia não foi capaz de superar a do homem de cabelos prateados. Ele ficou de pé, com as mãos em cima do seu violão, e os olhos arregalados.


Tenkisei fez uma nova reverência para a plateia e se virou para olhar a dançarina. Ela sorria de uma forma tão bela que muitos homens babavam ao longe. O maestro pegou a capa de seu violão, guardou novamente seu instrumento e tornou a pendura-lo e seu ombro direito e então sorriu para Melody.

- Foi uma bela apresentação, querido. – A dançarina se ergueu na ponta dos pés para beijar suavemente Tenkisei, que retribuiu e então afagou a cabeça dela.

- Não teria sido uma apresentação assas magnífica se não fosse o entusiasmo de um jovem brilhante. – Ele tornou a olhar para o cabisbaixo Johann. Aproximou-se do jovem e então sorriu para ele.

- Você é muito melhor do que eu... – O ruivo encarou Tenkisei com uma feição triste.

- Não há ruim ou bom entre aqueles que têm amor pela música, meu amigo. – Tenkisei tocou o ombro do jovem, que pareceu sair do transe. – Você é jovem, tem uma centelha que arde em seu âmago, deve a fazer crescer para ser um bom músico...

- Eu ainda vou ser o melhor! – O ruivo deu alguns passos para trás e pareceu se irritar. Apontou para Tenkisei. – Pode lembrar-se do meu nome, eu ainda vou ser o melhor.

- Não vou esquecer o nome de um rival. – O maestro sorriu delicadamente.

Johann pareceu se contentar com aquela declaração e então se virou, dando uma ultima olhada para o homem que chamavam de maestro, o músico que encantou uma multidão, sozinho mesmo que estivesse em um duelo, cujo amor pela música e por sua amavel dançarina era grande e sua serenidade desconcertante.

O homem de cabelos prateados fazia reverências para o seu público, que respondia com aplausos e muitos sorrisos. Ele abraçou sua mulher, Melody, deu mais um beijo na jovem e então os dois andaram para o norte, indo até o castelo de Prontera. Agora todos que estavam alí conheciam o verdadeiro caráter de um músico, cujo potencial vem de seu interior. E ele tinha um título. Tenkisei, o maestro!


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