A Indomável escrita por dona-isa


Capítulo 11
Capítulo X - Veredicto




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Acordei tão cedo, que me assustei comigo mesma. O sol nem aparecera no alto do céu e a luz que invadia meu quarto era de um cinza sombrio.
Eu senti tanto frio, e o café quente descendo na minha garganta parecia um calor totalmente alheio ao meu corpo, aquecendo somente a garganta como se ela não pertencesse ao meu corpo, mesmo eu a sentindo.
Girei meu pulso e olhei o relógio. Eram quinze pra cinco horas. Eu precisava acordar nove horas. Precisava.

- Use essa roupa e você ficará invisível - disse criteriosamente, Tess.
Era raro Tess ter alguma roupa que fosse considerada "invisível", porém pela primeira vez eu concordava com ela.

-x-
- Você está pronta? - meu tio perguntou indeciso, me olhando de lado.
- Estou pronta há mais de três horas - sussurrei, tentando disfarçar o nó na minha garganta.
- Vai ficar tudo bem, Mely.
Ele me puxou para dentro do carro e assim encaminhamo-nos para o tribunal. Era só mais um passo pra ter mais um encontro desagradável.
- Se não se importa, prefiro que nos separemos aqui, tio.
Ele arregalou sutilmente os olhos castanhos, idênticos ao de papai. E simplesmente acenou com a cabeça, consentindo.
-x-
Fui assistindo lentamente o tribunal se encher de pessoas que iam entrando exalando alguns murmúrios baixos e conversas avulsas e aleatórias. A juíza fora exemplarmente pontual.
Meu coração gelou ao ver, meu tio entrar seguido pelo advogado, e logo em seguida o seu adversário. Pietro Ottavio.
Ele era um homem corpulento, alto, moreno de cabelos pretíssimos, que batiam na nuca, os olhos eram tão pretos quanto os de um tubarão, ele usava um cavanhaque que combinava perfeitamente com a cor de seus cabelos.
A juíza bateu o malhete, pedindo silêncio. Não demorara muito pra ser atendido. E assim começara a minha tortura.Fiz o possível pra me camuflar diante das várias pessoas que murmuravam ao meu lado.
- O réu, Doutor Pietro Ottavio, aqui presente é acusado de Homicídio Doloso, pela família de Elisabeth Cristina Sandersen, o senhor Christopher Sandersen, irmão de seu falecido esposo. Vendo que em questão, o réu está sendo submetido a juri popular, pois cometera ação ofensiva contra a vida.
Um tambor rugiu dentro da minha cabeça assim que a juíza ditava sílaba por sílaba do nome de minha mãe. Era como se uma onda de realidade me atingisse na cabeça, me ensopando e me afogando. Era realmente de minha mãe que se tratava, e o que meu tio havia dito não era mentira, e não era apenas um pesadelo.
Todos os minutos que se passaram dentro daquele tribunal eu me resumi a uma bolha fechada, sem vida. Eu respirava e piscava roboticamente, somente assistindo o que se passava em minha frente. Eu era apenas um telespectador totalmente alheio à qualquer interatividade com a cena.
Eu levei um solavanco somente no momento em que a juíza tratava da negociação de pena com o advogado de Pietro. Eu via toda a lábia daquele ser repugnante sendo exalada pelo tribunal inteiro, como um aroma de um perfume barato.
- Veja bem, meu cliente é um réu primário...
Suas palavras aos poucos iam me causando repulsa, ele parecia um vendedor fanfarrão e pretensioso, pronto pra enrolar a vítima e a devorá-la como uma serpente.
- 12 anos de reclusão, alguma objeção?
A juíza ergueu o malhete, imediatamente arrastando os olhos para o advogado de Pietro.
- Senhora, pela conduta exemplar de meu cliente! - ele diz, entregando uma pasta para a juíza, que passa os olhos rapidamente por cima dos óculos caídos sobre o nariz.
Após mais um longo momento de discussão, seu suspiro cai como um bufar. Ela ergue o malhete novamente, dando de uma só vez o veredicto.
- O réu poderá cumprir 9 meses de reclusão com auxílio monetário à organizações sociais e hospitais do governo.

O juri inteiro se levanta ao meu lado, em extremo rebuliço. Meu tio olha com boca e olhos escancarados para o seu advogado ao lado, que somente abaixa o rosto fechando sua maleta.
Assisto em câmera lenta o advogado monstruoso e repulsivo de Pietro, dando uma girada nos calcanhares, esticando e contraindo um dos braços em sinal de comemoração.
Eu me mantive ali. Fria, inconsolável, porém contida. Esperei o alvoroço se acalmar, do mesmo jeito que recebi a notícia, sentada, olhando para minhas mãos, que suavam frio.
O tribunal havia se esvaziado instantaneamente, ou pelo menos instantaneamente para mim, que passei tanto tempo absorta que nem percebi o que havia ocorrido ao meu redor.
Peguei minha bolsa e segui em direção ao corredor frio com chão de mármore lustrosíssimo. E assisti meu tio, esmurrando uma parede, lutando bravamente contra lágrimas de raiva e frustração.
- Oh tio! - abracei-o com força.
- Maldito! Salafrário de uma figa! Ele me paga! Me pagará cada tostão que eu lhe paguei, maldito advogado enganador de porta de cadeia!
Olhei para o meu tio que estava derrotado.
- O filho da puta tinha sido comprado! E a juíza também! A JUÍZA TAMBÉM! - ele gritava intensamente indignado.
Meu tio somente se acalmou ao assistir minuciosamente meu rosto inexpressivo.
- Amélie? O que houve?
Abaixei meu rosto. Era incrível que eu não tivesse mais lágrimas para oferecer, mas era plausível, afinal, eu tinha um objetivo, e chorar não ia me impulsionar. Pelo menos não ali, não naquele momento.
- Tio, preciso ir, nos falamos mais tarde.
- Onde você vai, minha filha? Eu pensei que você...
- Eu temo que não haja tempo, tio. E por favor, não me questione por enquanto, tudo bem?
Meu tio me olha cabisbaixo, tombando o rosto de lado. Um rosto por ora, endurecido.
- O que houve com a minha Amélie de antes?
- Receio em dizer que ela se foi, tio - suspirei, sentindo a dureza de minhas palavras.
- Não sabe o quanto eu sinto por isso.

Mordi meu lábio inferior, meu queixo trêmulo, e eu me vendo obrigada a segurar uma lágrima esguia, escorregadia e travessa.
- Não sinta. Não sinta.
Simplesmente lhe virei as costas. Eu sabia que mais cedo ou mais tarde, eu teria de encarar meu tio novamente, e eu precisava ser ainda mais dura e decisiva. Era necessário dar adeus ao meu passado, e infelizmente meu tio pertencia à esse passado.
Enquanto eu corria pelo corredor, alguém esbarrou em meu ombro, quase me levando junto. Minha distração quase impede que eu perceba quem era.
O rosto que como o de muitos outros jamais sairia da minha mente atravessou meu caminho, dessa vez tão nítido e tão perto. Eu era capaz até de enxergar o espectro de cores de existiam em seus olhos e formavam um negrume ácido, intenso.
Mi scusi, signorina! - ele disse numa voz suave feito veludo, sorrindo pra mim, antes de se virar e andar tranquilamente. Era óbvio que ele estava triunfante, feliz.
- Não - sussurrei comigo mesma - Eu não te desculpo.
Sorri sutilmente, antes de sair e arrancar aquela peruca, deixando que meus verdadeiros cabelos respirassem. Deixando que novamente meu verdadeiro eu respirasse.-x-
- Quem é o cara dessa vez?
- Por que você quer saber? - torci minhas sobrancelhas, encarando o velho Johnny, que limpava o cano de uma escopeta.
- Hey, garotinha! - ele ergue os braços pra cima em resposta da minha ríspidez. Eu apenas sorri e balancei a cabeça.
- Está certo. O nome dele é Pietro Ottavio.
Ele passou a língua pelos dentes e balançou a cabeça, sem tirar os olhos da escopeta.
- Não é aquele doutor que estripou sua mãe?
Lizie fofoqueira!
- Como você é sensível, Johnny! - murmurei.
Ele solta uma gargalhada relinchada.
- Quer que eu chore e toque violino?
Engoli em seco e fiquei séria de repente, absorvendo novamente sua pergunta.
- Sim, é ele mesmo.
Pela primeira vez ele deixou a arma de lado, e olhou fixamente para mim. Os olhos dele eram perturbadores. Olhos de alguém que já matara antes. Será que eu também tinha aquele olhar agora?
- Tome cuidado, garotinha. Acho que não é a primeira vez que você ouve isso, mas deve ser a primeira vez que ouve de mim. Ainda pretendo te ver muitas vezes.
Estiquei o canto dos lábios num sorriso sem humor.
- Fique tranquilo, seu velho. Eu irei voltar sã e salva, você vai ver!
Ele pousou o pulso no canto do balcão, balançando a cabeça, sorrindo.
- Assim eu espero, menina. Assim eu espero.
Ele andou até o fim do balcão, tirando pó de uma Bacamarte de sei lá que época.
- Você saberia me responder uma charada?
Sorri.
- Eu adoro charadas.
- Mas não quero minha resposta de imediato. O mais adorável das charadas é quanto tempo se leva matutando uma resposta.
Fiz uma suave reverência.
- Vai lá, rapazinho. Manda ver.
Ele bufou uma risada e balançou a cabeça, logo se aproximando de mim, mudando suas feições de repente retorcidas em repentino misticismo. 

- Que animal anda com quatro patas de manhã, duas patas ao meio-dia, e três patas durante a noite?
E sorriu, se afastando novamente. Assistindo em meu rosto que eu já começara a imaginar o que seria.
- Até logo, Amélie - ele murmurou.
Antes que eu me virasse e saísse porta afora ele me puxou pelo braço, sussurrando.
- Por favor, volte com a minha resposta.
E depois sorriu, voltando sua atenção às suas armas e quinquilharias.

-x-

Virando na rua de meu velho prédio, sinto uma sutil impressão de estar sendo seguida.
Disfarço, enquanto paro e olho para trás, não vendo absolutamente nada. Balancei minha cabeça e voltei a andar. Eu ficara tanto tempo presa ao irreal e a uma sanidade duvidosa que nem sei mais separar o real do imaginário.
Talvez pudesse sem mais uma peça que o meu subconsciente me pregava. Por isso tratei de continuar minha caminhada, além do mais, a sua estava absolutamente vazia, não havia possibilidade de alguém estar me segundo.
Não haveria. Até um pilar de concreto duma construção abandonada tilintar de repente, era um barulho mais parecido com peças de porcelana batendo uma na outra. Ou talvez um relógio batendo no concreto puro...
Pela primeira vez a idéia de estar sendo seguida era perfeitamente palpável pra mim. Mais ainda quando o Sol resolveu ser bondoso e dedurou uma sombra que respirava escondida atrás do pilar.
Meu coração disparou como nunca antes.


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