Felicidade escrita por Yokichan


Capítulo 1
Único.




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“Você me jogou no inferno e me salvou dele.”

            Os pneus dos carros rolavam naquele suspiro surdo sobre os paralelepípedos da rua logo depois da calçada. Os motores tremiam dentro das latarias e as buzinas se insinuavam, vez ou outra, em tímidos gritinhos de reprovação. A sinaleira tudo espiava com um olho vermelho e autoritário. Espetando um céu cor de chuva, as copas dos pinheiros se espichavam e balançavam, sussurrando – segredos, ameaças, promessas de amor, quem lá o sabe? – às nuvens apáticas, belas e tristes como a neve.

            Como a neve que eles nunca tocariam.

            Um canário solitário piou um lamento e calou-se na sombra que avançava e ia engolindo o dia. O garoto de jeans surrado e camiseta dos Sex Pistols que fumava sentado às costas do monumento com o busto de um cara que ele não fazia a mínima idéia de quem era – pobre busto abandonado ao esquecimento –, levantou-se e foi embora. Duas garotas com as mochilas nas costas passaram conversando e soltando risadinhas cúmplices. O cheiro de comida escapando pelas janelinhas dos restaurantes na hora do almoço foi ficando cada vez mais fraco, até não restar mais cheiro algum além do da chuva fina e quase invisível que começava a cair.

Quando o primeiro pingo caiu sobre o rosto dele, Heron fechou os olhos. Estava deitado na grama baixa e bem cuidada da praça. As mãos deixadas displicentemente sobre a barriga, e a cabeça sobre os joelhos dela. De sua bonequinha – sua bonequinha de porcelana quebrada e colada, assim, de qualquer jeito, várias e várias vezes. E por mais que ele a tivesse deixado cair, ainda podia ver amor naqueles olhos que brilhavam não com a mesma inocência de quando ele a vira pela primeira vez, mas com uma espécie sobre-humana de sentimento que resiste a tudo e nunca morre.

E por quê?

Ele fora perverso como o diabo; ela enganou a si mesma. Ele não soube dizer que a amava e ela não soube fazer as escolhas certas. Mas nada daquilo importava mais – nenhum daqueles dias sem fim em que ela esperou dormir para não acordar e que ele se sentiu tão vazio como se nada no mundo pudesse cobrir sua tristeza. Nada. Nem o barulho dos carros, nem as vozes das pessoas na calçada, nem a chuva molhando o cabelo dela e as mãos pálidas dele.

Nada.

Ela acariciou com ternura o cabelo negro dele, de seu único.

- Heron?

            Ele então abriu os olhos, e viu. Viu a chuva fina rodopiando numa dança solitária. Viu o céu encoberto, e os ramos dos pinheiros. Viu o rosto bonito dela emoldurado pelo cabelo comprido, preto como azeviche. Viu aquela que era sua, que sempre seria, e o modo esquisito como os olhos dela estavam perdidos no nada logo à frente.

            Viu o que deveria ter visto há muito tempo, e que só agora compreendia.

- Hum?

            Quando ele pensou que ela não falaria mais, veio a pergunta:

- Você está feliz?

- Estou. – pela primeira vez nessa droga de vida, ele pensou em confessar.

- Eu também. – e ela sentiu como se fosse derreter.

            Derreter só por estar com ele.

            Heron ergueu a mão – aquela mão que cavara um buraco de dor em seu peito e enfiara o amor lá dentro – e puxou-a para baixo pela nuca. E antes de seus lábios alcançarem os dele, ela viu o mundo todo naqueles olhos de escuridão – o único mundo que conhecia.

            O mundo do qual Heron fazia parte.

“Eu sempre soube, querido, que eu só seria feliz com você.”


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