A Vila Velha escrita por Sayurin Konata


Capítulo 4
Anjo ou demônio?




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Ai!

– Fique parada. Era óbvio que estaria quente, portanto aguente.

"Que chato!..."

A chaleira apitara a menos de um minuto e Halt já estava investindo contra o tornozelo direito de Camile. Um pano limpo que o arqueiro encontrara fora mergulhado com cuidado na água fervente que ele deixou derramar em uma tigela de ferro. Agora o estava pondo sobre a torção, bem em cima de onde aplicara a pasta de ervas medicinais. Sentindo a pele arder com a temperatura alta do tecido úmido, Camile instintivamente reclamou, mas parecia que o arqueiro não entendia ou simplesmente não tolerava reflexos, o que a fez praguejar em pensamento e logo se arrepender preocupadamente por isso. Temerosa, limitou-se a ranger os dentes enquanto sentia o pano envolver o inchaço e ser amarrado por uma corda fina e simples, a qual foi fixada com um puxão que não chegou a ferí-la.

Como ainda estavam na sala, Camile não estava tão tensa quanto estaria em qualquer outro canto da casa. O cripitar e o calor do fogo ainda aceso na lareira ajudava a relaxar um pouco. Era uma sensação comum às pessoas e essa foi uma das razões para que Halt permitisse que Edward pousasse a garota na poltona quase primitiva. Terminado o serviço ali, o arqueiro levantou-se completamente do chão onde havia pousado um dos joelhos, molhou na água quente um segundo pano, pegou dois dedos de pasta de um recipiente pequeno e aberto próximo dele, pegou uma segunda linha e deu dois pequenos passos até ficar do lado da garota.

– Agora dê o pulso. - disse ele.

Sua voz transmitia uma autoridade incontestável a qual fez Camile dar o pulso esquerdo sem hesitar, mas já prevendo a dor eminente. Não dando em outra, ela se conteve para não repelir o pulso, apesar de tê-lo feito minimamente em reflexo. Olhando para o lado oposto, mordeu o lábio enquando sentia sua pele arder novamente enquanto apertava o vestido o máximo que podia para conter a exclamação que queria liberar.

– Pronto. - Halt anunciou em voz seca quando terminou de enfaixar a região. - Não se mexa demais e nem pense em sair dessa cadeira. Dormirá aqui esta noite e amanhã irá para o quarto. Trarei um cobertor, afinal mesmo que eu alimente o fogo, terei que deixar você sozinha e ele não durará a noite toda. O calor dele também vai ajudar a melhorar esses machucados. E não - acrescentou quando a jovem olhou penosamente para o pulso e o tornozelo e escancarou a boca na direção dele -, você não ficará com a pele queimada. Não sou tão idiota assim.

Constrangida de novo, ela cerrou os lábios e olhou para o chão do lado oposto ao de Halt, o qual foi logo guardar todos os utensílios que utilizara para o breve tratamento.

Com tudo posto em seu lugar em dois minutos, o arqueiro decidiu evitar ser visto, parando à beira da porta da cozinha, às sombras, para observar Camile. Notara um ar de preocupação e insegurança na jovem desde o começo. Os olhos levemente amendoados ainda miravam o mesmo ponto inexistente, chorosos e quase transbordando ansiedade. Depois de alguns segundos eles passaram a transmitir que Camile tivera uma ideia e, indo de um lado para o outro com leve surpresa, por fim foram apertados em um olhar de de determinação. O arqueiro estreitou os olhos e seguiu em frente com uma panela de carne para ser assada.

A noite foi tranquila e Camile dormiu bem apesar da inevitável torcicolo. Tomaram um café da manhã simples, no qual ela sentiu o pulso esquerdo bem melhor quando, por costume, foi pegar um pedaço de pão. Sorridente e olhando para o pulso já livre do pano e devidamente seco - assim como o tornozelo - , sentiu uma pontada longa quando insistiu em partir o alimento. Halt girou os olhos diante da ingenuidade, o que a deixou vermelha até a raiz dos cabelos.

O dia correu e tudo o que ela pôde fazer foi permanecer ali, sem fazer nada, sentindo Halt cuidar dolorosamente de suas torções, dar-lhe instruções sobre como alimentar o fogo direito e o que deveria fazer caso tivesse fome.

– Simplesmente vá pulando até a cozinha e procure algo. - foi o que dissera.

Halt saiu e só voltou no início da noite. Camile estava na poltrona como deveria, aparentando uma tranquilidade anormal. Notando a presença do arqueiro, entretanto, os músculos endureceram outra vez e seu olhar de totalmente perdido passou para um atento e quase discreto. O homem de cabelos grisalhos sentou-se logo na cadeira próxima e com olhar e voz firmes e sem transmitir um mínimo ar de cansaço - não que não estivesse -, foi direto em sua pergunta:

– Por que você fugiu do castelo?

O clima quase despreocupado de antes da volta de Halt agora piorara com aquela pergunta. A menina, sem olhá-lo, arregalou os olhos de surpresa e preocupação diante do questionamento. Certamente ele não perguntaria à toa.

– Perguntei ao barão ainda hoje e ele não soube responder. - continuou firme depois que o silêncio persistiu. - Essa foi a gota d'água para ele. Pelo o que descobri, você já voltou ferida nas outras vezes em que escapou. Não em todas, mas na maioria. Como protegida você é responsabilidade especialmente dele, então, por consideração ao barão, responda de uma vez.

Camile permaneceu muda, apesar do último argumento parecer afetá-la. Camile suava frio e gradativamente seu olhar foi entristecendo. Impaciente, Halt se inclinou para frente, aproximando-se, e disse em um sibilo frio:

– Mesmo que fique bem, você não sairá daqui sem que responda a isso.

– O quê?! - ela exclamou sobressaltada, dando um pulo na cadeira e virando o rosto para ele com os olhos claros vidrados, a boca quase desaparecendo de tão pálida.

– E não ouse duvidar. - prosseguiu no mesmo tom ameaçador, os olhos gelados fixando-se nos dela, que os viram com temor crescente. - Já causou problemas demais.

"Maldito bruxo." pensou Camile com a chama de raiva ardendo no fundo de seu peito, misturada com um medo inevitável. Halt permaneceu na ofensiva por mais alguns segundos, suficientes para firmar a palavra, mas não o bastante para fazer crescer a ousadia da menina de mirá-lo sem temor. Depois levantou-se rápido.

– Fique de pé. A levarei para o quarto agora.

Os cuidados de Halt Camile admitia serem eficazes. Ela conseguiu se erguer da cadeira sem muita dificuldade. Sentia pontadas, de fato, mas eram suportáveis. Eles andaram em passos lerdos apesar do esforço solitário que a jovem fazia para ser rápida – o que lhe rendeu boas dores e uma parada no meio do caminho. O fazia por se sentir extremamente pressionada pela figura baixa de olhar duro. Parecia estar sempre ouvindo um “Quanto mais rápido melhor”.

Halt indicou a porta esquerda, sendo que lá haviam duas feitas de madeira gasta, e Camile a abriu dando empurrões leves com o ombro para destravá-la mais acima. Ela entrou e deparou-se com um quarto pequeno e simples, mas aparentemente confortável. A cama de madeira era magra, porém firme. O travesseiro e o colchão brancos eram forrados com palha e tinha um armário pequeno de madeira próximo ao leito. Mancando um pouco para a cama e concentrada em analisar o quarto, tomou uma surpresa maior quando ouviu Halt dizer às suas costas:

– O barão deu-me uma tarefa para esta noite. Ficará aqui e somente aqui.

Quando girou os calcanhares aflita, Camile já ouvia o som de chave trancando a porta.

– EI! - berrou, indo o mais rápido possível para a porta e a socando freneticamente. - Não pode fazer isso!

Continuou socando e chutando como lhe era possível por um minuto e meio, gritando protestos sem dar lugar a sons que não viessem por sua causa, a voz chorosa e transmitindo desespero. Quando achou que já dera, parou, ofegante, a testa apoiada contra a madeira. Ficou parada ali por alguns momentos sem ouvir nenhum sinal do homem tão coberto por superstições, tanto do outro lado como em qualquer canto da casa - pelo que podia ouvir com o ouvido grudado na porta.

Com o fôlego reconstituído rápido como sempre, ela sorriu com malícia e vitória. Olhou por cima do ombro direito. O velho tinha esquecido a janela aberta. Era hora de fugir.

Com pressa, silêncio e mancando um pouco, foi na direção dela. Após olhar para os lados e ter certeza de que estava sozinha, com cuidado passou as pernas para fora e sentou-se no parapeito velho, pousando com a perna boa no chão. Inevitavelmente perdeu um pouco do equilíbrio, pisou com a direita e sentiu uma pontada. Esquecendo aquilo ao limitar-se a mordiscar o lábio, partiu apressadamente nas sombras das árvores e, mais tarde, das casas que conseguia achar. Rápida e agilmente, Camile ia pela parte de trás das casas e tomava cuidado com janelas de forma precisa, afinal conseguia quase nunca encontrar alguma no caminho.

Como era só o início da noite, não estava escuro o suficiente para facilitar seu trabalho, o que exigia cuidado maior. Não estava muito acostumada com aquele horário, mas também não era uma total despreparada. Conseguia se virar, seus movimentos eram sutis. Tinha que ficar somente atenta à onde estava indo e se tinha alguém vindo.

Durante todo o caminho Camile foi vista duas vezes, mas por sorte conseguira escapar. Cinquenta minutos penosos depois chegara a uma casa escura e simples de sapê, decorada com pequenos arbustos de flores e engolida pela sombra de um chorão imenso que quase a encobria por inteiro, ligeiramente excluída da concentração de casas do feudo. Olhando ao redor para verificar se não estava sendo seguida quando diante da porta dos fundos, o tornozelo começando a incomodar apesar de repetidas paradas no trajeto dadas com cautela extrema, furtivamente ela conseguiu entrar e fechou a porta com um estalido leve e baixo. Era a hora.


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