Aqueles Olhos Azuis. escrita por Nina Cervantes


Capítulo 1
Lembranças.




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E agora permaneço aqui, apoiada no parapeito de minha varanda, sob a luz do luar, que para mim nem parece tão brilhante assim. Acredito que tudo se ofuscou a partir do dia em que você se foi. Nunca mais será igual.

Mas eu continuo sob o luar, e me permito – como se eu me controlasse – minha mente vagar anos atrás, levando-me diretamente a você.

Assim que meus olhos encontram os seus – em minha mente - parecendo tão reais, tão azuis quantos antes, eu sorrio e desejo poder ficar ali, observando tais olhos, talvez os mais bonitos já existentes no mundo. Pelo menos para mim.

Pergunto a mim mesmo o que fiz de errado. Porque é que não era para acontecer? Eu sei. Tenho certeza, que tínhamos tudo para acontecer. A não ser a maldita distância, que era e ainda é nossa maior inimiga. Mas eu espero que um dia seja diferente. E eu vou lutar para que esse dia chegue. Enfim, o restante de mim neste momento se baseia em saudade e esperança.

- Louise? –minha madrinha pergunta por mim, abrindo a frestinha do meu quarto, com ar preocupante.

- Oi, Carter. Estou aqui. – digo, virando-me para fechar as portas que dão diretamente para a varanda, onde eu permanecia a maior parte do tempo observando o dia lá fora. Mas nesse caso, à noite.

- Oi, querida. Tem certeza que ficará bem? – ela pergunta, entrando definitivamente no quarto e deixando à mostra seu lindo vestido laranja, o que ficara claro que ela já estava pronta para sair.

- Ficarei ótima, não se preocupe. – respondi automaticamente. Embora faça tempos que eu não tenha me sentido ótima. Mas em relação a isso, eu sempre fora boa em mentir.   

- Saiba que qualquer coisa que precise você pode me ligar. – ela juntou as mãos com unhas perfeitamente feitas e fez um sinal de preocupação, o mesmo que ela sempre costuma fazer quando está realmente preocupada.  – Caso precise de mim, pode com certeza me chamar

Disse-me ela finalmente sorrindo.

- O.K. Divirta-se!

 – À propósito, anotei meu número e coloquei na geladeira. – avisou-me ela, com um sorrisinho irônico no rosto. – Você não conseguiria me ligar caso eu não tivesse feito isso.

Senti uma pontada de vergonha mas ao mesmo tempo aliviada.

- Ah, é claro. Ligarei qualquer coisa. – respondi rapidamente entre risos e confortei-a.

- Então tá. – ela se aproximou, beijou-me a bochecha e virou-se para sair. Mas parou diante da porta e disse  – Se Jenny  acordar deixei a mamadeira pronta no micro-ondas. Tchau, Louise! Fique bem!

Ouvi o som do carro do novo namorado de Carter acelerar e sumir em meio às buzinas da cidade movimentada.

Carter é minha madrinha de intercâmbio aqui na Inglaterra, onde eu viera à fins de aprender melhor a língua inglesa e com um pequeno propósito de pegar o sotaque, o qual eu sempre achara tão lindo. Quase todas as noites eu fico sozinha em casa com os filhos de Carter: Henry, de 9 anos e Jennifer, com apenas 5. O pai morrera em um acidente de carro, enquanto ele dirigia com o amigo do lado. Ninguém sabe muito bem o que acontecera, só sabemos que o dia era nublado e com tempestades horrendas. E o carro capotou, morrendo então Gave, e deixando seu amigo apenas com alguns cortes ao redor do rosto.

A família sofreu muito com isso. As crianças ainda eram pequenas, tinham respectivamente 5 e 1 ano. E então, Carter criou seus filhos sozinha.

Agora que eu estou aqui para olhar seus filhos, Carter sempre sai à noite para encontrar um rapaz diferente. Carter não é velha: tem apenas 32 anos, ainda com direito de ser feliz. E eu apoio isso, não estou reclamando. Eu realmente gosto de crianças. Embora eu queira sair de vez em quando sair com as amigas que eu fizera aqui em Londres. Afinal, eu tenho 16 anos.

Deitei-me na cama e observei as estrelinhas e luas neons coloridas coladas em meu teto por Jenny, a qual me dissera que eu dormiria melhor à noite sabendo que as estrelas estariam me vigiando. As estrelas tinham nomes, de acordo com Jenny, mas eu nunca fui capaz de decorá-los, a não ser aquela estrela azul, com o nome de Martin. A mais isolada e distante de todas as estrelas, a mais difícil de alcançar, a que – em minha opinião – brilhava mais.

Com um salto eu me levanto da cama ao escutar o meu celular vibrar e tocar ao mesmo tempo um rock pesado. Pego o celular apressada, e na tela um nome aparece: “Mãe”

- Oi, mãe. Estava demorando a ligar.

- Porque é que a senhorita não me liga então?

- Mãe, você sabe que meus créditos são valiosos, não posso ficar gastando, eu demoro à conseguir dinheiro para carregar os saldos, por que o Sr. Hans nunca me dá salário adiantado.

- Que drama, filha. Mas você não me disse que iria trabalhar em uma loja de roupas do centro?

- Eu ia, mas os horários que encaixam para eles são somente à noite. E à noite eu não posso, sabe como é.

- Sei. Vou conversar com Carter sobre isso.

- Não mãe, está tudo bem. Não me importo. Eu já disse.

- Mesmo?

- Mesmo.

- Tudo bem então. E como anda seu relacionamento com David?

- Ah, mãe, eu não sei. Eu não consigo gostar realmente dele, entende?

- Mas ele é tudo que você sonhou! Ele é romântico, engraçado, inteligente...

- Mãe...

- Filha, eu preciso desligar. Está tudo bem aí, então?

- Tudo certo, e ai?

- Está tudo O.K. Mas agora preciso sair, tenho uma reunião importante. Tchau, filha. Eu te amo.

- Eu também, mãe. – eu disse por fim, até que minha mãe desliga o telefone.

Largo o celular em cima da cama, e me dirijo até a cozinha, à fim de encontrar algo doce para comer.

- Onde é que eu coloquei meu chocolate...?  - pergunto à mim mesmo, colocando uma das mãos na boca, e abrindo o primeiro armário da dispensa repleta de besteirinhas de criança.

- Está na porta do lado. – uma voz fina e doce ecoa pela cozinha respondendo a minha pergunta.

- Jenny! O que está fazendo acordada? – exclamo ao ver Jenny com sua almofadinha de estrelas em um dos seus bracinhos finos e branquelos. – Com os pés descalços, Jenny! Você acabou de sair de uma gripe! – ela correu para colocar os sapatos, e num instante ela já estava de volta com um sorriso no rosto, mas ao mesmo tempo, pude sentir um receio neste sorrisinho.

- Acordei com o toque do seu celular. – disse Jenny inocentemente. O que amoleceu totalmente meu coração.

- Desculpe-me Jenny, esqueci de colocar no silencioso. – eu disse comendo um pedaço da barra de chocolate-suíço enorme que eu comprara.

- Mais chocolate, Louise? Você só come chocolate – disse ela.

- Jenny... Quer sua mamadeira, sua mãe deixou aqui para eu esquentar.

- Quero. – respondeu ela rapidamente, e correu para a sala, ligando a TV e começando a assistir a seus programinhas infantis.

Trouxe o leite para Jenny, que rapidamente adormeceu no sofá, e eu a carreguei até seu quarto.

Voltei para a sala e me banhei de lágrimas vendo um filme romântico novo, que lançara há pouco tempo...

- Louise! Acorda! – eu abro meus olhos lentamente assim que Carter começa a me chacoalhar e chamar meu nome. – Você dormiu na sala Louise... – isso me faz sentar de um ímpeto e abrir meus olhos assustadas. Carter ri, e me guia até minha cama, apagando as luzes do meu quarto, que como sempre, eu esquecera acesa, e eu adormeci novamente. Estava cansada.

A brisa do mar brincava com meus cabelos enquanto eu observava as ondas.

- Louise... – enfim a voz que eu mais senti falta ecoa novamente perto de meus ouvidos, grave e confortante. Meu coração não acelerara tanto quanto no momento em que eu me virara e olhara, depois de anos, novamente, para aquele rosto braquelo, com perfeitos olhos azuis, e com seu sorriso sinceramente sendo refletido à mim, era como se eu estivesse respirando pela primeira vez depois de muito tempo debaixo da água. Era o mesmo alívio.

 - Eu senti tanto a sua falta. – eu disse contornando os braços em torno de seu pescoço, um abraço. E inspirando o máximo que eu conseguira o cheiro doce dele, que um dia fora real.

- E você acha que eu não senti a sua? – Ele disse, abraçando-me igualmente. Pegando com uma das mãos uma mecha de meu cabelo e começando a brincar com ela. – Por onde é que você andou?

- Procurando você. Onde você estava? – eu disse, enquanto uma lágrima percorria meu rosto lentamente, a qual Martin levantou uma das mãos para limpar. Passando a pele macia em meu rosto e fazendo com que a minha se arrepiasse. Eu sorri involuntariamente, era inevitável, eu estava novamente perto dele.

- Eu estava esperando você.  Aqui. Onde nos conhecemos. Você demorou. – seus olhos permaneceram azuis mesmo com a luz do sol fraca sobre nós. Segurei em uma de suas mãos. E começamos a caminhar, 

Mas quando olhei para o lado, eu estava sozinha novamente. Ninguém estava ali. Eu voltara novamente para de baixo da água. Eu voltara a não fazer menor sentido de existência. Eu voltara a sentir saudade.

Acordei com um barulho escandaloso vindo da cozinha. Levantei-me rapidamente, e fui ver o que acontecia.

- O que aconteceu? – perguntei à Madson, a faxineira, que sorrira vergonhosamente, limpando os cacos de porcelana do vaso de Carter.

- Desculpe-me. – disse ela, olhando para mim ainda com vergonha.

- Tudo bem. Quer ajuda? – perguntei.

- Não, pode voltar a dormir. – disse Madson.

- Não mesmo... – eu disse pensando no sonho que eu tivera.

- Louise? Está tudo bem? – perguntou ela quando eu já estava saindo da cozinha.

- Claro. – naturalmente, eu menti.

- Porque está chorando? – ela disse apontando para meu rosto. O qual eu toquei, e estava realmente molhado, repleto de lágrimas.

- Não estou, eu... – encarei Madson, que agora ficara curiosa e preocupada. Olhei para o relógio atrás dela, que marcava exatas 6 horas da manhã. Carter já havia saído, as crianças ficariam com Madson enquanto eu iria para a escola. Eu precisava me arrumar. – Vou me arrumar. – usei como desculpa e corri para o banho.

Despedi-me de Madson e das crianças. Abri a porta do elevador e entrei apressadamente. Apertei o botão térreo e esperei, escutando aquela musica de elevador. Até que este parou no 6º andar, e eu resmunguei para mim mesma, imaginando que eu me atrasaria ainda mais para o colégio. 

A porta do elevador se abriu, e um senhor entrou:

- Bom dia, Louise. – cumprimentou ele.

- Bom dia. – disse envergonhada por não reconhecê-lo, como ele me reconheceu.

O senhor continuou segurando a porta do elevador, como se esperasse por mais alguém. E então eu olhei para o alto, impaciente.

Mal notei quando o garoto alto e forte entrou no elevador, somente quando o senhorzinho disse:

- Você vai se acostumar.

O garoto não respondeu, bufou algumas vezes entediado, como se já tivesse escutado isso repentinas vezes. Olhou para mim um tanto curioso, e eu envergonhada por estar olhando. Virei a cabeça e estremeci ao sentir o elevador chacoalhar quando para no térreo.

O senhorzinho, acompanhado do menino bonito saem primeiro e, eu logo em seguida.

Ando quase correndo até o quartinho dos fundos do prédio, onde guardam as bicicletas, retiro a minha de lá e saio pelo portão mais próximo, pedalando.

Uma típica manhã de Londres, totalmente fria. Sinto minhas mãos congelarem enquanto aperto o breque assim que paro diante do sinal vermelho. Eu sei que não é muito aconselhável se andar nas ruas, ao invés das ruas feitas especialmente para bicicletas, mas acontece que eu estou muito atrasada. Então, caso alguém reclame, eu já formei uma desculpa em minha cabeça. Sou boa nisso.

Estaciono a bicicleta, amarrando o cadeado.

- Oi, Lu.

Essa voz inconfundível da Cameron soa próxima ao meu ouvido acompanhada de  uma brisa gélida que sai diretamente de sua boca, por culpa do frio.

- Oi, Cameron. Como foi com ele ontem? – perguntei, referindo-me ao novo garoto que Cam está saindo.

- Nada bem. Ele disse que queria largar tudo e fugir daqui. Ir embora! Você acredita nisso? – ela parou por um momento esperando ver minha reação, que foi um tanto parecida com a dela. – Diz ele que seríamos mais felizes, porque aqui não temos tanta liberdade. Mas o que foi engraçado... sabe para onde ele queria ir? – Cam colocou as mãos na cintura, e alinhou a boca, como se segurasse para não rir.

- Não faço idéia. – respondi, nem um pouco curiosa.

- Ao Brasil. – ela deu risada. E eu me encolhi, sentindo um calafrio. Talvez fosse o clima, não sei.

- Qual o problema do Brasil? – perguntei indignada, porém ao mesmo tempo curiosa. Cam, nem ninguém, a não ser minha madrinha de intercâmbio sabiam que eu viera do Brasil. Não sei por que, mas eu preferia esconder. E, quando me perguntavam de que lugar eu vinha, por conta do meu sotaque diferente – nos meus primeiros dias, porque agora eu já estava me acostumando com o sotaque britânico – eu dizia sempre que eu vinha do México.

- Lá só tem mato! – ela riu um pouco, mas parou ao notar que eu não ria. – Me imagina no meio do mato.

- É... não dá pra imaginar. – eu disse entediada. – Já volto.

Contornei os braços ao redor do meu fichário e me guiei até o grupo que eu mais me encaixava. Os melhores amigos que podem existir:

- Thomas, larga de ser retardado... Ooowh, e ai Lu! Não chegou atrasada hoje? Caiu da cama?

Sean perguntou rindo da minha cara, acompanhado por Peter, Anne, Samantha e Megan.

- Peter ficou com saudades, não é Peter? – Sean continuou fazendo graça, enquanto todos riam. Deixando Peter e eu vermelhos.

- Cala a boca, Sean. – eu disse, estendendo a mão, para que Thomas jogasse o saquinho de Marshmellows sabor morango. Sentei-me ao lado de Anne e Samantha. Enquanto Megan jogava certo charme para cima de Peter, que nem parecia notar. Ele estava com vergonha, o que era muito fofo. Ri ao pensar isso, e Samantha logo perguntou:

- Está rindo do quê?

- Como é que você quer que eu não ria com esse Sean dançando que nem uma garça? – menti, entre risinhos. E Sam, abriu um sorriso, ela é louca pelo Sean.

O sinal toca, e faz o barulho do pessoal falante aumentar. Mas esse barulho só aumenta quando todos começam a entrar no corredor que, apesar de largo, não é suficiente para todos passarem ao mesmo tempo. É claro que não.

Entro silenciosamente na classe, sento no fundão. Diferentemente do Brasil, aqui, em Londres, as carteiras são duplas. O que é muito legal, porque é mais fácil de conversar quando as aulas são chatas. Eu me sento com Cameron nas aulas de Álgebra e Inglês, as quais Peter, Sean, Megan, Sam e Anne, não fazem junto comigo. Somos separados por classes: A e B. Mas, somente nas aulas de Música que todos ficamos juntos.

O professor de álgebra começa o dia com um texto sobre os matemáticos antigos e, de como eles conseguiram se virar de forma tão precária à considerar os conhecimentos que adquirimos hoje, com o passar dos anos. Cameron, passa a aula inteira contando o quão Alex – o rapaz com quem ela saiu ontem – beija bem. E eu me perguntava sempre: ‘Porque diabos eu vou querer saber disso?’

A aula demorou milênios para terminar. Mas quando finalmente terminou, eu pulei da carteira apressada, recolhendo minhas coisas e lançando um breve sorrisinho à Cameron. E corri para o anfiteatro.

Atravessei o pátio apressada e ao mesmo tempo animada. O corredor ainda cheio de estudantes ecoava um barulho ensurdecedor, até eu entrar na 11ª sala. Esta tinha a porta preta e grossa, forrada por carpete azul que vinha do chão até o teto, que era enfeitado com ventiladores amarelados e ar condicionado nas paredes mais altas. Havia uma única janela no Studio:

- Olá, Louise! Como vai minha grande estrela? – cumprimentou-me Sr. Muss, o professor de música. Hoje íamos gravar um CD. À seguir iríamos mandar para um empresário muito respeitado na Universal Music, o qual visitaria a escola na sexta feira, e também o qual eu faria uma apresentação com esperança de realizar um sonho desde a infância, quando eu cantava na formatura, nas rodinhas de amigos, quando resolvi colocar na internet, quando aprendi a tocar violão e guitarra... Eu sei que vou conseguir.

- Tudo ótimo Muss. – disse sorrindo, e pegando o violão vermelho apoiado próximo ao meu banco e ao microfone. – Estamos prontos? – perguntei já fazendo sinal de que eu iria começar.

Muss sorriu e levantou uma das mãos para que eu esperasse.

- Primeiro um ensaio... 1...2...3...Vai! – contou Sr. Muss enquanto pedia para meus amigos, que haviam acabado de entrar esperassem no banco ao lado e fizessem silêncio. E eu comecei a tocar, na primeira tentativa eu errei a nota, mas logo consertei misturando as duas, deixando a música ainda mais legal. Cantei uma música velha, embora conhecida.

Assim que terminei, meus amigos aplaudiram, e Muss colocou as duas mãos no peito com os olhos marejados. Logo após levantou as duas mãos para o alto, ainda com os olhos marejados fixos a mim e disse:

- Você vai arrasar minha grande estrela! – Ele então abriu a porta do Studio e Peter foi o primeiro a entrar, acompanhado logo atrás de Sean, Anne, Megan e Samantha, que pulavam em minha volta, me dando tapinhas e fazendo cócegas.

Após toda essa brincadeira ensaiamos a música oficial do colégio, a qual iríamos apresentar no dia em que a escola recebesse o tal empresário.

- O.K, Sam. Sábado nos vemos lá. – disse eu aceitando o convite de Sam para comprar o sapato que ela tanto queria para usar em sua festa de 16 anos. 

O sinal do final das aulas de hoje já havia tocado, e eu estava caminhando em direção ao local onde eu havia estacionado minha bicicleta.

O vento não estava tão gélido quando no começo da manhã. O sol do meio-dia de fato estava mais forte, mas não suficiente para que eu não me arrepiasse assim que uma mão gelada agarra meu braço com cuidado, mas larga quando percebe meu susto.

- Oi, Louise. – disse Peter olhando para baixo, coçando com o braço a cabeça, deixando perceptível sua timidez.

- Olá, Peter. – eu disse sorrindo. E ele ergueu a cabeça quando percebeu que eu o respondi entusiasmada. – Você me assustou. – disse eu rindo, assim como ele.

- Desculpe-me. – o sol bateu em seus olhos amendoados e ele permitiu-se um sorriso acolhedor. – Eu só queria saber se... – ele riu de si mesmo tornando a olhar para baixo. – Louise, - olhou-me ele agora, seriamente. – Eu só queria saber se você gostaria de sair comigo hoje, meus pais vão sair, eu iria ficar sozinho em casa com meu irmão mais novo mas...

- Ah, você quer que eu o ajude a cuidar dele? – perguntei sorrindo.

- Não... eu... – ele hesitou por um momento, mas logo assentiu: - Sim. Você poderia me ajudar?

- É claro! Que horas você quer que eu vá?

- Eu vou te buscar. – ele disse lançando-me seu último sorriso e acenando à medida que ele deixava o pátio já vazio e entrava na van que o levaria até sua casa.

Destranquei o cadeado da minha bicicleta e pedalei até meu prédio.

Fiz o caminho mais longo, à fim de ter tempo para pensar nas coisas que haviam acontecido à minha volta nos últimos tempos que eu passara aqui. Eu só tinha mais meio ano aqui. E eu voltaria para o Brasil. Por um lado eu queria, mas por outro, não.

- Louise! – David gritou do outro lado da rua, acenando com os dois braços. Dei meia volta com a bicicleta e pedalei até ele. O qual me recebeu com um sorriso e um beijo, rápido, seco, sem o menos sentimento, eu podia sentir. Fiz cara de impaciente olhando para ele, que tentava novamente me beijar, mas eu arrisquei ir para trás para impedi-lo. O que não foi exatamente uma boa idéia, porque eu me desequilibrei e senti meu corpo perder a força para me segurar, mas logo vi que não foi preciso da força de meu corpo, pois um par de braços bem fortes e seguros me segurou antes que eu me espatifasse no chão.

- Er... Obrigada. – Agradeci ao rapaz que me segurara, cujo o mesmo eu supus que fosse o mesmo que entrara no elevador hoje cedo.

- Tome mais cuidado. – disse ele se afastando sério e sumindo na curva mais próxima.

- Que sorte. – disse David, tirando de dentro de seu bolso uma rosa pequena. – Senti saudades.

- David, você não pode mais continuar com isso. – eu disse friamente, embora não quisesse ser assim.  Ele fez cara de quem não entendeu muito bem. E foi o que realmente aconteceu:

- Como assim, Lu?

- Eu não tenho mais nada com você. Eu já disse isso. – me virei para atravessar a rua. E pedalei mais rápido do que era necessário e deixei David plantado na calçada. Ele merecia. David nunca teve o direito de cantar Cameron na minha frente, enquanto estávamos namorando.

Novamente o vento brincava com meus cabelos brutamente. E foi assim até o final do meu percurso, o momento em que eu estacionara a bicicleta no quartinho dos fundos e entrara com pressa no elevador. Um alívio. Era quente e acolhedor ali.

Eu mal percebera, somente após alguns longos segundos.

- Você! – disse o menino do 6º andar, o qual entrara hoje de manhã.  O elevador começou a subir. Eu e o menino, cujo nome eu não sabia, nos encarávamos, o que demorou minutos. Embora aquilo tenha sido estranho, eu não me preocupei.

- Desculpe-me, quem é você? – perguntei quebrando de uma vez o silêncio.

- Hugo Solda, muito prazer. – disse ele sorrindo pela primeira vez para mim.

- Louise Andrade. – respondi, sorrindo forçadamente. Era engraçada a sensação que se apoderava de mim neste momento. Eu não gostava, nem um pouco. A última vez que isso acontecera, ela nunca mais parou, embora tenha ficado permanente de um jeito diferente. Virei o rosto e olhei para frente. Eu não queria me deixar levar pelo par de olhos que Hugo possuía, quase tão lindos quanto os do...

- Quem era aquele cara que estava com você na rua? – perguntou ele, intrometendo-se e deixando claro de que fora ele quem me segurara quando eu estava prestes a cair da bicicleta.

- Um idiota qualquer. – respondi ainda olhando para frente, evitando o máximo que pude olhar para tais olhos. Os quais me faziam sentir um aperto no coração muito pior do que já sentia a todo o momento desde o dia em que ele se foi. E eu nada fiz. Nada. Talvez seja eu a idiota.

- Ele parece gostar de você. – o elevador chacoalhou quando parou no 6º andar. – Vejo você qualquer dia. – disse ele saindo do elevador e despedindo-se, com os olhos cravados em mim. 

- Até mais.

Um vento forte tomou conta do elevador assim que ele abre sua porta, cruzo os braços a fim de bloquear um pouco o ar gélido. Caminho até o apartamento nº28. Coloco as malas no chão e me esforço para achar a chave que Carter dera para mim.

O tranco da porta faz um barulho alto, que provoca um eco enorme na sala vazia, a qual abriga dois apartamentos. Com o meu incluso. É claro.

A porta enfim se abre, e Henry, um garoto alto, magricela e de olhos escuros segura minha mãe e me puxa até a sala. Onde Carter, Jenny e...

- Mãe? – fico imóvel assim que a vejo, meu rosto sorri imediatamente e eu largo a mochila no chão e corro para abraçá-la. – O que você está fazendo aqui?

Ela me lança um olhar feliz e responde:

- Surpresa! – disse ela erguendo os braços para pegar uma caixa prateada pequenininha ao seu lado. E então, para a minha excitação e curiosidade ela estende o presente para mim. – Comprei para você. Tenho certeza de que vai amar!

Henry murmurou alguma coisa, cruzou os braços em volta de suas pernas finas e brancas, e olhou para cima. Deu para ver que ele estava bem irritado.

Ignorei por um momento, perguntando:

- Eu não estou entendendo nada. – confessei, ainda com o presente nas mãos.

- Sua mãe me ligou ontem, disse que faria uma visita a você. Ela acabou de chegar. – Carter sorriu, e logo lançou um olhar de repreensão a Henry, que continuava murmurando.

- Eu já não agüentava mais de saudades. – disse ela sorridente. E, por fim eu comecei a desamarrar o laço que prendia o presente pequenino e prateado.

- Mas, por que o presente? Meu aniversário é só daqui 2 meses. – eu disse rasgando o papel crepom.

A caixa era de couro preto, cravado com strass em cima a letra L, em letra de forma.

- É linda. – eu disse.

- Sim, mas abra! – disse Carter e minha mãe me apressou também.

Assim que abri, uma chave, prateada como o papel do presente, acompanhando um chaveiro quadrado, retratando em si a bandeira da Inglaterra.

- Uma chave? – perguntei com uma mera hipótese do porque deste tal presente. – Mãe, você não vai querer que eu volte para o Brasil, não é? Porque eu já lhe disse que eu não vou voltar. Eu ainda não terminei o ensino médio aqui. É tão difícil de entender...

- Louise – disse Carter. – Sua mãe...

- Ela quer que eu volte para o Brasil, comprou uma casa para mim lá. Não foi isso?  Sinto muito mãe. Muito mesmo. Não vou voltar. Não vou. Não vou. Não vou. Não... – fui abaixando a voz, até virar um murmúrio.

- Filha, - disse minha mãe rindo, acompanhada de Carter. – Eu comprei sim uma casa para você.

- Aqui, na Inglaterra. – disse Carter sorrindo, mas dentro daquele sorriso eu pude ver uma certa frieza ao confessar aquilo. – Você vai morar sozinha, Louise.

Novamente eu fiquei imóvel. Olhei para Henry, que estava com os olhos marejados. Olhei para minha mãe, que analisava minha expressão. Olhei para Carter que sorria deslumbrantemente esperando que eu falasse alguma coisa.

- Eu não quero que Louise vá. – Henry quebrou o silêncio, deixando uma lágrima correr pelo seu rosto. – Eu não gosto de sentir saudades.

Um sorriso cresceu em meu rosto.

- Eu também não, Henry. – afirmei rapidamente. – Bom, obrigada, mãe.

- Carter contribuiu também. – disse minha mãe.

- Obrigada vocês duas. – sorri colocando novamente e chave dentro da caixinha. – Mas o que foi, hein, Carter? Você não me quer mais na sua casa? – brinquei.

Carter riu e disse:

- Acho que você merece muito mais do que ficar aqui... Você sabe. – ela fez um sinal quase imperceptível para Henry.

- Eu não me importava. – eu disse, olhando para minha mãe, que era a que mais implicava com o fato de eu cuidar das crianças todas as noites. – Mas, obrigada. – sorri.

Eu me levantei e completei:

- Bom, eu preciso conhecer a minha nova casa. Onde é que ela fica? – coloquei as mãos na cintura e esperei que me respondessem.

- Fica aqui nesse apartamento. No 6º andar. – disse Carter. E eu me lembrei de que aquele menino, Hugo, morava neste mesmo andar. Tudo bem. Pensei. Ou não.

- Quer ir até lá? – perguntou - O último rapaz que eu saí trabalha numa empresa de tintas, e ele mandou pintar todas as paredes, que antes estavam acabadas, cheias de mofo. – disse Carter.

- Meu Deus, nem sei como agradecer!

-Vamos até lá! – disse minha mãe.

- Vão vocês, vou ficar aqui com Henry. Depois tenho que pegar a Jenny no Balé.

Eu e minha mãe entramos no elevador. Eu carregando a caixa forrada com couro e minha mãe segurando uma mala pequena de mão.

Olhei para minha mãe. Nunca tinha reparado o quão ela era bonita. Seus cabelos escuros lisos despencavam até os ombros, seus olhos castanhos brilhavam com a luz forte do elevador. Ela sorriu para mim, deixando seus belos dentes enfeitarem ainda mais seu rosto. Sorri ao perceber quanta semelhança eu tinha dela. Meus cabelos lisos e enrolados na ponta passavam dos ombros, iam até a metade das costas. Eles eram castanhos, do mesmo tom os de  minha mãe. Meus olhos eram idênticos aos dela: Castanhos, grandes e brilhantes.

O elevador chacoalhou como sempre fez ao parar no 6º andar.

Minha mãe andou até o apartamento 11, o qual ficava de fronte ao 10.

- É aqui. – ela sorriu, pairando em frente à porta e esperando que eu, atrapalhada, abrisse a porta com a chave.

Foi o que eu fiz. E então, quando minha mãe acendeu a luz do corredor. Meu corpo inteiro foi tomado por uma felicidade imensa. Era a minha casa!

O corredor curto tinha o piso de madeira, e sua parede era amarela. Tal corredor levava a duas passagens, uma passagem larga e aberta, dando diretamente na sala pequena e outra à cozinha, próxima a um lavabo, que igualmente a tudo: era pequeno. E a segunda passagem possuía uma porta branca, a qual dava para um corredor com dois quartos e um banheiro pequeno. Simples. Aconchegante. Perfeito.

- Gostou? – disse minha mãe após vermos tudo.

- Se eu gostei? – eu perguntei indignada e sorridente. – Se eu dissesse isso eu estaria mentindo. Isso aqui é perfeito! Obrigada mesmo, mãe!

Abri a janela, e a luz clara se apoderou da sala.

- A vista é linda. – disse olhando para baixo: Eu tinha vista para todo o bairro. Eu conseguia ver um pontinho lá no fundo, minha escola. Conseguia ver as praças mais próximas. Conseguia até mesmo ver uma parte do Big Bem, que logo soou 1 hora da tarde.

- Ah, tem mais uma coisa. – disse minha mãe, largando a maleta no chão e procurando por entre as roupas de cores vivas, as quais ela sempre usava no Brasil. E tirou de um bolsinho do fundo um cartão de crédito.

- Mãe... Agora já é demais. – eu disse. – A casa já deve ter sido uma nota para você. E você ainda quer me dar dinheiro? Mais ainda? Pode deixar mãe. Eu me viro.

- Como é que você acha que vai arranjar os móveis para sua casa? Com que dinheiro? Com o dinheiro que você ganha todas as quintas no restaurante do Sr. Hans? Não me faça rir. – disse ela, seriamente, estendendo o cartão. Eu fiz que não com a cabeça. – Pegue! Eu venho guardado esse dinheiro desde que você era uma menininha. Por favor, não me faça ficar chateada!

Eu sorri, e pulei em seus braços:

- Obrigada, obrigada, obrigada, obrigada! – beijei seu rosto várias vezes e peguei o cartão.

- Tem 100 mil libras aí. – disse minha mãe sorrindo. – a maior parte foi seu pai que conseguiu, com o aluguel do apartamento e a venda da chácara.

- Você vendeu a chácara? – perguntei surpresa.

- Vendi. Tinha que conseguir dinheiro rápido. – disse ela – Mas ninguém ia mais lá.

- Para quem você vendeu? – perguntei.

- Seu pai é que sabe o nome. Um nome complicado, eu não sei pronunciar. – ela riu, forçando a voz e arranhando a garganta, tentando pronunciar o nome. E eu ri ao vê-la fazer isso. Quanta saudade eu senti.

- Obrigada, mãe. Pode me visitar sempre que quiser.

Voltei para o apartamento de Carter e a agradeci por tudo.

- Eu é que lhe agradeço. – disse Carter.

Henry cutucou Carter e sussurrou, um pouco alto demais:

- Mãe, eu estou com fome.

E assim, após pegar Jenny no balé fomos até o restaurante mais próximo e almoçamos.

- Até quando você vai ficar mãe? – perguntei já dentro do carro de Carter, enquanto voltávamos para o apartamento.

- Volto nessa quarta. – respondeu ela.

- Que rápido. – disse á mim mesma, e ela escutou.

- Eu trabalho. – disse ela rindo.

Mais tarde, tomei um banho e coloquei uma roupa casual. Eu iria ajudar Peter à olhar seu irmão pequeno. Já era final de tarde. E eu estava em frente à portaria conversando com Walter, o porteiro, sobre a minha nova casa.  Até que um Palio preto e brilhante buzinou algumas vezes, era ele. Despedi-me de Walter e corri até a porta do carona de Peter. Eu já havia me acostumado com o fato do carona ser do lado esquerdo.

- Nossa! Você está cheiroso. – eu disse, vendo ele sorrir e acelerar o carro.

- Você está linda. – Peter elogiou.

- O quê, você está brincando, não é? Eu estou de calça jeans e toda encapotada aqui por causa desse frio maldito. Meu cabelo então...  

- Repetindo. Você está linda. – senti meu corpo todo esquentar por longos segundos, nessas horas minha bochecha estaria vermelha. Ele olhou para mim, e sorriu. Após um momento eu finalmente consegui dizer.

- Bom - eu sorri para ele – obrigada.

Entramos na rua das casas iguais, onde Peter morava. E estávamos nos aproximando de sua casa, porém, para minha surpresa, Peter não parou ali.

- Peter, eu acho que você confundiu as casas, a sua já passou. – chamei sua atenção, e ele riu.

- Mudança de planos. – disse ele ainda sorridente.

- Para onde nós vamos? – perguntei confusa.

Ele balançou a cabeça e disse:

- É surpresa. – Ele lançou-me mais um daqueles seus sorrisos.

Não demorou muito para pararmos em frente à  uma casa pintada de vermelho vivo. A qual, na fachada, em neon, com luzes ao redor, estava escrito: LET’S PLAY.

- O que é isso? Uma boate? – eu perguntei.

- Quase isso. – disse ele saindo do carro e abrindo a porta para mim, antes que eu pudesse fazê-lo.

Ao entrarmos na porta decorada com adesivos de cantores famosos, como os Beatles, Elvis, Michael Jackson, Beyoncè, Madonna e o guitarrista do ACDC, Angus, minha curiosidade só aumentava.

Peter cumprimentou o recepcionista:

- E aí, meu grande? 

- Pedrão! – o recepcionista cumprimentou e, logo: - Senhorita. – disse ele tirando seu boné amarelo que se camuflava em seu cabelo.

- Olá. – respondi sem graça.

Entramos em um corredor silencioso, almofadado, que continha luzes verdes, azuis, rosas. Eu comecei a rir.

- Hoje estou tendo muitas surpresas. – disse para Peter, que sorriu, e quando foi falar alguma coisa, sua voz foi abafada pela multidão de vozes e gritos que começaram assim que a primeira nota de uma guitarra soou pelo salão amplo, repleto de mesas e adolescentes da minha idade ou mais velhos que eu, alguns em frente ao palco ansiosos pelo show que acabara de começar.

E, então a guitarra começou a tocar um solo difícil, era um som que levaria qualquer um à loucura. E então eu gritei no ouvido de Peter em meio ao som.

- Por que você não me avisou disso?  - perguntei, levantando o braço e fazendo o mesmo sinal que todas as outras pessoas faziam com a mão.

- Fiquei com medo de que você não quisesse vir. – disse Peter.

- Bobão! – brinquei, e logo comecei a pular e balançar o cabelo, copiando uma garota loura em pé, próxima a uma mesa vazia. Ou não.

Havia uma única pessoa sentada ali. De costas, com uma guitarra preta em seu colo. Essa pessoa parecia afinar as cordas.

- Vamos nos sentar ali? – perguntei à Peter.

- Claro. – disse ele se aproximando da pessoa, que ao bater a luz, percebi que era um rapaz.

- Com licença, - disse Peter, de frente para o rapaz. Eu então me virei e prestei atenção na banda que tocava no palco.

Em cima da banda, chamada de Fooders – eu sei, porque era o que bateria vinha retratando – havia uma facha grande trazendo um anuncio: Competição de Bandas, Solos vocais ou de i instrumentos.

- O cara disse que nós podemos nos sentar. – informou-me Peter.

E foi o que eu fiz. Olhei novamente para a garota loura, que agora, falava com o rapaz que afinava concentradamente seu violão. Ela percebeu o que eu olhava, e encarou-me por alguns segundos, ou mais. Analisando-me, como se me reconhecesse. Estranhei.

- Percebeu que aquela garota não para de olhar para você? – disse Peter curioso.

Assim que ele disse isso, eu assenti com a cabeça e tornei a olhar a garota, que me observava pelo canto do olho.

- Acho que a conheço de algum lugar. – conclui à mim mesma, embora Peter tenha suposto que fora para ele.

- Tem certeza? – perguntou ele.

- Não. – respondi – Melhor pararmos de olhar.

E viramos o rosto no mesmo momento, e que por conhecidencia um garçom pairou defronte à nós dois e estendeu um cardápio que continha sobreposto à ele um banner anunciando as bandas que competiriam, e novamente minha imaginação se libertou: ao olhar aquele nome. Foi nesse mesmo momento que as palavras ecoaram repetidamente em minha mente: ‘‘ Eu tenho uma banda...”  Foi aí que minha imaginação vagou ainda mais.

“ Você estava ali, no canto da piscina com um amigo, provavelmente feito naquele mesmo local, naquele mesmo momento. Olhando cuidadosamente para mim. Eu percebia, e sorria ao pensar que aquilo poderia dar em alguma coisa. Pelo menos uma vez na vida. Foi aí que aquele tal amigo me chamou. Lembro-me bem, você não tirava os olhos de mim, por algum motivo, que eu jamais descobrira. Olhei para você:  teus olhos refletindo minha imagem em meio àquela cor cristalina incrível, sorri automaticamente, e percebi, você fez o mesmo. O garoto ao seu lado comentou que havia escutado alguma vez que eu gostaria muito de ser cantora. E então você olhou com mais intensidade e tomou iniciativa: implorou para que eu cantasse. De primeira eu não o fiz. Mas o que me surpreendeu foi que você insistiu. Dizendo que tinha uma banda, e que era o guitarrista dela, e seu sonho era seguir tal carreira. Foi quando percebi que tínhamos mais em comum do que qualquer coisa. Éramos apaixonados pelas mesmas coisas,  ou por coisas parecidas demais. Foi quando senti que poderíamos sim, dar certo. E então, qual o nome da sua banda? Perguntei. E você respondeu. “

- Stealth... – murmurei para mim mesma e Peter me encarou.

- Conhece também?

- Nunca ouvi uma música. – respondi me lembrando de tais olhos, imaginando que o dono deles estaria aqui, em algum lugar. Perto de mim. Naturalmente, sorri.

Então uma onda de lembranças inundou minha mente. Eu conhecia aquela garota. Era ela. Então, se era ela, ele estava aqui! Ou não. Mas eu sou a melhor pessoa em ter esperanças. Disso eu tenho certeza.

- Louise? Está tudo bem? – perguntou Peter.

- Estou ótima. Qual a próxima banda? – eu disse ao perceber que a banda havia parado de tocar e todos gritavam à seu favor para que continuasse. Peguei novamente o papel e lá estava. Será? Olhei novamente para o lado. O rapaz que se sentara um pouco próximo, aquele que afinava a guitarra, não estava mais ali.

E então todas as luzes se apagaram, e somente um holofote focou o centro, onde um rapaz de cabisbaixa tocou uma primeira nota muda, e o ‘apresentador’ anunciou o nome da música.

Prestei atenção, focada no brilho que os cabelos louros dourados eram capazes de fazer. Embora as pessoas em torno do palco estivessem gritando histéricas, eu nada ouvia, parecia que o mundo realmente havia parado, somente para me dar a oportunidade de contemplar aquela imagem que eu jamais imaginei ver novamente. Meu corpo estava imóvel, esperando que ele fizesse o primeiro movimento e me permitisse distinguir quem era realmente. Eu tinha certeza de quem era, estava claro. Então, o rapaz levantou a cabeça. Foi quando fui tomada por tamanho sentimento. Eu sabia qual era, mas tão grande era que eu nem sabia se poderia chamá-lo assim realmente. Decepção. Não era ele. Onde é que ele estava? Eu sei, ele tem que estar aqui!

- Olha só, é aquele rapaz que estava sentado aqui! – disse Peter alto, levantando-se e pulando conforme o ritmo daquele rock pesado. Eu conhecia o guitarrista, mas não era ele, não era.

Tornei a olhar para o palco. A menina loura estava encostada na parede esquerda, onde ficava o acesso para a coxia, e onde também notei um movimento estranho. Ela estava falando com alguém. Inclinei-me para olhar. E então um feixe de luz que brincava livremente no salão escuro, focou dois olhos cristalinos, que brilharam contra os meus, me olhando. Foi como um raio de um segundo que demorou minutos para terminar.

A garota cochichou algo de mim e tornou a me olhar.

A música já era algo abafado para mim, abafado novamente pela minha esperança.

Então, o feixe de luz não atravessou novamente nossos olhares. Foi quando decidi fazer uma loucura. Foi quando descobri uma coragem dentro de mim que nunca imaginei ter tido.

Levantei-me e me direcionei à recepção.

- Onde você vai? – perguntou Peter correndo em minha direção.

Eu não respondi. Estava confusa e incerta do que faria.

- Pois não? – a mocinha sorriu forçadamente mostrando que ela já estava de saco cheio.

- Tenho tempo de me inscrever?

- O que? Você está louca, ou alguma coisa do tipo? – perguntou Peter.

- Eu vou cantar. – disse lentamente para Peter.

- Você é louca! – ele disse rindo e ao mesmo tempo surpreso.  – Você não tem coragem de cantar nem para a Sam direito.

- Pois então, está na hora de parar com essa frescura. – pisquei algumas vezes e arrisquei um olhar para a coxia: vazia.

- Cahãm! – disse a recepcionista. – não vai ser possível a sua apresentação.

- Porque não? É rápido. Uma única música! Eu não preciso nem competir! – implorei – Como se fosse uma apresentação especial, ou de surpresa! Sabe? – implorei um pouco mais.

- Desiste, Louise. – murmurou Peter, percebendo a impaciência da recepcionista.

- Não vai rolar. – disse ela sentando-se em sua cadeira de rodinhas, colocando um protetor de orelhas e lixando as unhas.

- Aé? – me virei e subi nas escadas que davam para os camarins, que davam para a coxia, que davam para o palco. E voi lá!

- Louise, aonde você vai? – ele perguntava indignado, porém me seguia.

- Vamos. Você toca a bateria.

- Louise, você não escutou o que a mocinha disse? ‘’Não vai rolar”! – repetiu ele com.

- Ah, vai sim! – eu disse um pouco irritada. Eu não ia deixar passar de novo.

Abri a porta de ferro, e dei de cara com um corredor largo lotado de roqueiros com roupas malucas, umas mais que as outras, alguns eram aceitáveis. Fechei a porta, fazendo um grande barulho, e todos olharam para nós dois.

- Vamos embora. – disse Peter. Que deixara na cara seu medo.

- Então eles são os próximos! – gritaram alguns. – Vão! Estão atrasados! Os Stealth estão acabando de tocar! Vão logo! – Exclamavam empurrando-nos até uma sala de camarim; e fecharam a porta.

- O que foi isso? – disse Peter rindo um pouco. Embora aterrorizado.

- Bom, ouviu o que eles disseram. – sorri – “Somos os próximos”!

- Tem certeza disso? – perguntou ele inocentemente.

- Tenho. – menti.

- Vocês são os próximos? Como assim são os próximos? – perguntou a garota loura que saiu misteriosamente de trás de uma cômoda. – Vocês não são os próximos!

- Me desculpe, mas os caras ali disseram que não tinha próximo e...

- Eu sei, ele não disse à eles que era ele o próximo. – ela apontou para detrás da cortina de troca de roupas – Porque aqueles homens fazem muita pressão! – disse ela um pouco nervosa.  –Ele vem ensaiando isso à tempos! Um empresário importante está comparecendo aqui hoje e ele quer ter essa chance mais que tudo. Então...

- Ele quem? – perguntei já irritada.

A porta se abriu brutamente e dois caras altos puxaram eu e Peter até o palco. Pude escutar a voz da menina loura abafada:

- Esperem! Não são eles!

E então, mal vi o que estava acontecendo e já estava dentro de um palco, defronte para um salão escuro. E, como as outras bandas, um holofote centrado em mim.

Ouvi as vaias quando perceberam que eu não tinha um corte de cabelo maluco ou uma guitarra. Foi quando o segundo holofote focou Peter. E ele bateu as baquetas 3 vezes e começou uma batida improvisada e então eu segurei firme no microfone, apertei os olhos imaginando estar sozinha, concentrando-me bem em meu motivo de estar ali.

Abri meus olhos e procurei em meio à multidão enfurecida o alguém específico. Troquei olhares rápidos com a recepcionista nervosa e comecei a cantar a mesma música que eu cantara da última vez para ele: ‘Because of you’ da Kelly Clarckson.

É claro que a platéia não esperava por isso, mas me surpreendeu que alguns começaram a curtir, até a vibrarem. Casais se beijavam, outros se abraçavam e trocavam olhares. E eu, esperando uma reação, de alguma forma, de algum alguém.

Até que de repente, durante o solo da bateria de Peter,  notas variadas e afinadas de guitarra tomaram conta de tudo. A platéia vibrou como nunca e aquele alguém, apareceu no palco, roubando a cena por um momento, para todos. Mas roubando a cena para sempre, para mim.

Um solo aparentemente difícil que Martin fazia melhor que todos. Meu coração ameaçou rasgar meu peito e sair por aí batendo feliz assim que Martin lançou um sorriso e uma piscadela discreta para mim. Eu então paralisei, apenas deixando que meu sorriso que se formara automaticamente como sempre se formara quando eu estava com ele, tomasse conta de mim.

E então quando minha parte da música – a de cantar – começou, ele tornou a tocar, embora com menos intensidade que o solo, dando espaço para que eu cantasse. Era engraçado o quão à vontade eu me sentia. Era como se nada mais existisse. Era ele e eu. Sempre foi. Embora antes, em minha imaginação, que obviamente sempre fora muito criativa. E, por um momento me perguntei se aquilo não era fruto dela.

Então ignorei tudo e todos, e cantei, olhando somente para ele. 

Ele então se virou e começou a tocar e mudar de nota; em frações de segundos naquela guitarra, a mesma que um dia eu vira.

Ele sorriu e assentiu com a cabeça, para me confortar, como forma de dizer que estava tudo bem e para que eu continuasse. E eu percebera que eu estava parando de cantar, indignada. E então a última palavra, a última nota, a última batida e escuridão. A música acabara. A platéia aplaudia. Tão alto quanto meu coração batia.

Algo segurou minhas mãos e me puxou para a coxia onde a claridade era maior.

- Fomos demais! – disse Peter. – Aquele cara arrasou também! – ele disse apontando para a direita, embora ela estivesse ocupada por uma parede vazia e uma espécie de vulto correndo para dentro do corredor agitado e sumindo diante dos roqueiros enlouquecidos.

- Espera aí! – gritei ignorando Peter e correndo atrás de Martin. Ele me reconhecera. Eu sei disso. Meus olhos embora marejados, não me impediam de ver a imagem que eu vira assim que entrara no camarim.

A garota loura abraçara Martin e dissera:

- Você foi...

- Incrível. – completei. E os dois olharam para mim.


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