Requiem escrita por sousukemishima


Capítulo 4
CAPÍTULO 4: O HOMEM SILENCIOSO.




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Dez dias depois do enterro de Elise...

O mistério da vida e da morte era por demais profundo para que os vivos pudessem se deter no tempo, chorando e lamentando os que já partiram. Até por uma questão de sanidade pessoal, a vida precisava continuar o seu curso normal, ainda que de forma lenta e dolorosa.

Em seu escritório, Doktor Krause estava gozando de um dos seus raros momentos de descanso e privacidade, no enorme hospital aonde trabalhava.

Quando não estava imerso na rotina estafante de exames, consultas e cirurgias, ele tinha que se desdobrar, na administração do dia a dia do enorme complexo médico, bem como redigir minuciosos relatórios para seus superiores.

Naquele momento, o veterano médico estava usufruindo do seu momento para escrever anotações num elegante diário com capa em couro, que costumava ficar sigilosamente guardado a sete chaves.

Mas nada do que escrevia tinha a ver com o serviço ou o cargo que ele exercia.

Cultivando este hábito desde a época da escola, Krause se preocupava em deixar registradas as suas impressões e sentimentos a respeito das pessoas e fatos que o cercavam, como um testemunho invisível.

A sua escrita era metódica e ordenada, fruto de seu temperamento. Entre uma pausa e outra, destinada a ordenar o pensamento, ele passava no papel todos os seus apontamentos, apenas se detendo para revisar uma ou outra palavra ou expressão.

Depois de vários minutos em silêncio, a tarefa estava concluída e Krause começava a ler as entradas mais recentes no seu jornal íntimo:

“(...)

A perda da jovem Elise foi um golpe muito rude para todos nós, mas especialmente para o meu amigo Faustus. Mal posso acreditar que aquela jovem tão bela e com olhar tão encantador estivesse agora no mundo dos mortos...

Faustus jamais saberá disto, mas naquela mesma noite derramei minhas lágrimas. Não apenas por ele, mas principalmente por ela. Como médico, não é a primeira vez que presencio um falecimento com meus próprios olhos. Mas ela era mais do que uma paciente. Era uma pessoa muito querida, carismática, e admirada por todos que a conheceram.

Nós, médicos, somos as impotentes testemunhas da única realidade da vida: que ela, em última análise, não passa de uma longa preparação para este momento fatal chamado morte.

Há muito tempo, deixei de acreditar em qualquer religião e na crença de um ser supremo, devido ao fato destas crenças não terem me dado respostas precisas e confiáveis a respeito de um “além-vida”. Mas, pelo que eu conheci de Elise, se existe algum lugar que as pessoas de coração bom possam estar depois desta vida tão curta, com certeza ela mereceria estar nele...

Depois do enterro de sua amada, Faustus foi levado a uma clínica de repouso, numa cidade próxima. Ele estava à beira da exaustão física e mental e todos os que conheciam - inclusive eu - temiam seriamente pela sua estabilidade mental.

O psicólogo que o examinou depois da crise nervosa que ele teve no cemitério, confidenciou-me que jamais vira um caso de depressão pós-traumática tão grave.

Embora para os olhares leigos o pior tivesse passado, Faustus requeria atenção redobrada por parte dos psiquiatras e atendentes da clínica, devido ao enorme risco dele tentar tirar a própria vida, por estar esmagado pelo sentimento de impotência e de culpa.

Em termos leigos, ele estava como se fosse uma bomba-relógio, prestes a explodir.

Um dos seus parentes se encarregou de cuidar dos negócios particulares até que ele pudesse se restabelecer, o que poderia demorar muito.

Alguns dias mais tarde, eu passei com o meu carro bem em frente do que seria a futura clínica particular do casal e vi uma enorme placa de “aluga-se” colocada na entrada do imóvel.

É uma trágica ironia de que aquele lugar - que seria o marco da nova vida de ambos - jamais tivesse sido inaugurado, como se fosse um símbolo impotente de uma esperança perdida diante da trágica realidade. A vida é cheia de perdas amargas e decepções para as quais não existe um “por quê”, uma resposta plausível. E não há forma de escapar à esta realidade.

Uma semana depois do enterro, foi realizado um culto ecumênico.

Poucas pessoas compareceram e a maioria dela eram familiares, parentes e conhecidos de Elise. Poucos ou quase ninguém da parte de Faustus compareceu, o que causou um certo constrangimento visível nos presentes.

Era sabido por todos que Faustus se casou com a falecida à revelia de sua família. Até onde eu sei, seus pais e tios queriam que ele buscasse uma pessoa de melhor classe social e evidentemente, com mais saúde.

Era óbvio que eles não queriam que Faustus se apegasse a uma pessoa cuja vida podia ser medida não em questão de décadas, mas de poucos anos.

Mas no coração não se manda e ele decidiu continuar com o romance, mesmo após ter brigado com os pais. Com o tempo, era de se esperar que estas rusgas fossem superadas, mas não imaginava que a rixa familiar se mantivesse ainda depois da morte da coitada.

O Padre Schwarz e um pastor do qual não me recordo direito o nome se encarregaram de ministrar a cerimônia.

O ambiente obviamente estava triste, ligeiramente depressivo e praticamente ninguém ousava cochichar ou lembrar os fatos recentes, mesmo depois do culto.

Faustus obviamente não pôde comparecer à cerimônia, por ordens médicas. Ele ainda continua internado na clínica de repouso.

Pelo que fiquei sabendo por um colega que trabalha lá, ele está sendo sedado com medicamentos antidepressivos muito fortes... três enfermeiros se revezam dia e noite, cuidando dele.

Como médico talvez tenha que admitir que era a única maneira de tratá-lo, mas como pessoa e como amigo, creio que o único remédio que poderia fazê-lo voltar a vida, infelizmente se foi”.

Subitamente, o telefone toca e Doktor Krause é obrigado a interromper a sua tarefa. Ligeiramente contrariado, ele pega o fone, apenas para se arrepender logo depois.

Era o diretor-geral do hospital, e pelo tom do telefonema, ele estava “naqueles dias”.

O motivo do irado telefonema era evidentemente o incidente na Unidade de Terapia Intensiva naquela noite fatídica. Pelas regras do hospital, a equipe de plantão jamais poderia ter permitido a entrada de Faustus “com aquele cadáver”.

As fofocas de corredor correram mais rápido do que ele imaginava e o incidente chegou não apenas aos ouvidos da diretoria do hospital, mas – pior – junto ao conselho de acionistas do mesmo.

Era evidente que o veterano diretor geral estava mais preocupado com a imagem pública da instituição do que com os sentimentos feridos de um dos seus funcionários mais talentosos.

Com um tom rude e severo, o irascível diretor falara a Krause que, por muito pouco, Faustus VIII não foi exonerado do seu cargo em função de sua conduta “abusiva” e “absurda”. Apenas e unicamente por causa de sua brilhante ficha profissional pregressa, ele escapou de ser demitido, sendo que o conselho do hospital havia decidido apenas aplicar uma suspensão de uma semana, além de uma repreensão na sua ficha técnica, tão logo ele voltasse.

Depois, foi a vez do amigo de Faustus ouvir o que queria e o que não queria do seu superior.

Krause escuta a monumental bronca em silêncio, apenas respondendo com monossílabos lacônicos. Sabia que era inútil argumentar com o seu rabujento chefe e tudo o que pôde fazer é engolir mais um “sapo” em sua carreira.

Quanto a ele mesmo, afora a advertência verbal, ele tinha quase certeza que a diretoria passaria a considerar o seu nome descartado - a curto e médio prazos - da lista de futuras promoções.

“Maldito velho arrogante!”, pensava Krause. Com um suspiro de resignação, ele se recordava ironicamente dos dias em que ele encarava o exercício da medicina com raro idealismo e de sua preocupação sincera em ajudar os doentes. À medida que foi se envolvendo com a área administrativa dos hospitais aonde passara, ele foi tomando consciência que a profissão que ardorosamente abraçara era igual às outras.

Por trás de todo o falatório humanitário, do juramento de Hipócrates e dos artigos idealistas nas revistas médicas, se escondia a dura realidade de uma empresa movida a lucros e que, de certa forma, se beneficiava do sofrimento humano.

Desde que entrou na Faculdade de Medicina, tudo havia sido difícil para ele.

Oriundo da classe média–baixa, sem “padrinhos” influentes, carecendo da genialidade natural que o seu colega possuía, todas suas conquistas acadêmicas e profissionais foram adquiridas de forma lenta e gradativa.

Há tempos ele não sabia o que eram férias e o contato com seus pais, conhecidos e colegas de faculdade se reduzira a um mínimo. Os poucos eventos sociais que ele ainda ia eram todos relacionados à medicina: congressos, palestras, etc.

Quando ia retomar a escrita do seu diário, o telefone toca novamente. Meneando a sua cabeça ligeiramente calva, Krause atende a ligação de forma mecânica.

Agora era a voz trovejante e barulhenta do delegado responsável pelo caso do assassinato de Elise. Depois de criticar um tanto quanto indiscretamente a atitude “estúpida” de Faustus – a seu ver, evidentemente - ao remover o cadáver de jovemda cena do crime, o investigador da polícia relatava com a sua voz pouco agradável, as conclusões parciais do caso.

Krause se esforçava para entender o relato do oficial, que freqüentemente interrompia a conversa para atender a outros telefonemas, além de certas pausas constrangedoras, onde pelo barulho, ficava evidente que ele estava mastigando um sanduíche, sem qualquer consideração especial pelo seu interlocutor.

Pelo que o experiente médico conseguiu entender entre uma interrupção e outra, o laudo da perícia indicava que Elise foi executada a uma distância igual ou inferior a 3 metros de distância e de frente para o criminoso.

Também foram encontradas no local, duas 2 cápsulas vazias de bala calibre 9 milímetros Parabellum. Uma, que executou Elise e a outra, que havia acertado mortalmente no cachorro de Faustus.

A hipótese aceita pelas autoridades policiais era a de que o autor do assassinato possivelmente agira ao ter sido surpreendido pela chegada do cão, após ter rendido Elise. Pela reação, era possível supor que o assassino estivesse drogado, tendo fugido imediatamente do local, sem ter roubado nada de valor.

De acordo com o relato do irritante investigador, afora o ferimento do disparo, não haviam sido encontradas marcas ou indícios de violência física ou sexual em Elise, o que leva a supor que a ação foi muito rápida e que sequer ela teve tempo de reagir. Ao ver o animal entrando na sala, ela poderia ter se assustado ou feito algum gesto brusco, que fez com que o assassino atirasse nela e no cachorro.

Terminando a conversa, Krause tentou fazer mais perguntas ao oficial, contudo recebeu em troca um lacônico “a polícia ainda está investigando o caso e não pôde fornecer mais informações”, antes da ligação cair bruscamente.

Suspirando, inconformado, o médico indagava até que ponto aquele oficial chato ligou, se não haviam chegado a qualquer conclusão mais concreta.

Tentando associar os fatos recentes em sua mente privilegiada, na opinião dele, ou o suspeito era um ladrão inexperiente que estava tentando fazer o primeiro assalto de sua vida ou era um latrocida que deveria estar drogado durante o assassinato. Pois só assim para explicar as circunstâncias trágicas do assassinato.

Bem, mas fazer o quê? O mundo não era perfeito, e cada pessoa tinha a sua dor, a sua cruz particular para carregar no Calvário de suas vidas.

Sem mais inspiração para continuar escrevendo, Krause desiste de colocar suas impressões pessoais no diário e guarda o mesmo dentro da gaveta de sua escrivaninha, trancando-a.

Eram por volta das dez e meia, quando Doktor Krause dá por encerrado seu expediente. Cansado, ele se dirige para a saída do complexo médico e vai ao estacionamento reservado aos funcionários mais graduados.

Ele não via a hora de chegar em casa, tomar uma ducha refrescante, calçar seus chinelos gastos e fazer uma rápida refeição antes de ler algum livro e ir dormir.

Sua rotina semanal era entediante e algo mecânica, cumprindo uma jornada de trabalho entre dez a doze horas por dia - isto quando não tinha alguma cirurgia ou plantão de emergência. Nestes casos, ele chegava praticamente a viver o dia todo no hospital.

Claro que existiam as folgas para compensar, mas elas eram usadas apenas para repor o sono, caminhar ou ir a alguma eventual compra ao supermercado.

Até mesmo o trajeto de seu local de trabalho para a casa era previsível : as mesmas ruas, os mesmos atalhos e as mesmas paradas – Banca de jornal, tabacaria e o posto de gasolina. Comparado a ele, neste ponto, Faustus VIII era mais imprevisível.

Embora fosse um “workaholic” ainda mais fanático que Krause, a rotina de trabalho de Faustus era mais instável, dependendo muito das cirurgias marcadas pelo hospital. Às vezes, era comum ele entrar depois das duas da tarde e sair pouco depois como também ficar o dia todo, atravessando a madrugada sem demonstrar o mínimo sinal de cansaço.

O fato do jovem médico de cabelos claros e pele pálida possuir uma clínica particular e uma melhor condição financeira do que Krause era responsável por este diferencial entre ambos, fazendo com que não dependesse totalmente do hospital.

Contudo, justamente naquela noite, ao invés de ir abastecer o seu automóvel, comprar seus charutos e voltar para casa como de costume - talvez movido pelo stress da semana, talvez inspirado por um certo sentimento de compaixão – Doktor Krause decide dar uma última olhada no prédio que seria a futura clínica de Faustus VIII, agora fadada a nunca mais ser inaugurada.

Era uma pena que aquele local iria ser vendido..., suspirava Krause. Um imóvel no estilo neoclássico, com uma ótima localização num bairro fino e com um acabamento de dar inveja a muitas clínicas particulares...

Mas era evidente que depois de toda a tragédia, aquele local nada mais significava para o seu amigo. Desfazer-se do mesmo era a opção mais sensata.

Só que algo estava errado. Ao se aproximar do consultório abandonado, Krause nota que uma das luzes estava acesa no andar superior.

Quem estaria lá numa hora dessas?

Estacionando o carro no meio-fio, Krause desce rapidamente e se dirige ao enorme imóvel. Apenas para ter um susto ainda maior.

Em frente a garagem, um odor forte de papel queimado impregnava o até então verdejante gramado da entrada do consultório. Uma fogueira havia sido acesa e as chamas bruxuleantes tornavam a cena ainda mais surreal.

Com uma expressão vaga e mecânica, um vulto estava alimentando a fogueira com papéis, pequenos objetos e várias pequenas coisas que pegava de um enorme pacote de papelão: fotos, rolos de filmes de fotografia, “souvenirs”, etc.

Duas garrafas de vinho francês que supostamente haviam sido entregues a título de lembrança, estava abertas e esparramadas pelo gramado, após o seu líquido ter sido consumido.

Krause aproxima-se com cautela, temendo que algo de grave tenha acontecido. Ele imaginava que fosse o tal parente do seu amigo e colega de trabalho, mas ao chegar mais perto, ele percebe que algo está errado.


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