Requiem escrita por sousukemishima


Capítulo 2
CAPÍTULO 2: ASAS PARA A ETERNIDADE.




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“Um ano... tão pouco tempo e tantas mudanças... Ah, quem me dera se aquela tragédia não tivesse acontecido! Mas... pelo nosso amor eterno, eu faria tudo novamente! Tudo mesmo, minha amada Elise!”

Após beijar a sua amada – que permanecia sentada, com uma expressão vagaem sua face - o homem conhecido como Faustus VIII acomoda-se com certa dificuldade na sua cadeira. Ele dá um rápido relance no rio que corre a vários metros abaixo, com suas águas tingidas de dourado e de vermelho, mas no instante seguinte, volta o seu rosto, como se não tivesse interessado pela beleza natural da paisagemgrandiosa que se estendia ao redor do castelo.
A sua amada nada responde, mantendo uma pose elegantemente discreta, devidamente acomodada na cadeira em estilo medieval estofada com um veludo vermelho-escuro. Desde a infância, Elise não era de falar muito, mas o seu olhar – ah, aquele olhar! – valia mais do que mil palavras,. pensava Faustus.
Não havia um serviçal ou mordomo para servi-los. Afinal de contas, era um jantar íntimo e o jovem pálido havia dispensado os raros empregados do castelo na véspera, a fim de poder gozar do máximo de privacidade. Desde a infância, ele crescera num mundo de solidão e silêncio, tendo seus livros como companhia, além da lembrança do doce sorriso da jovem Elise. Com um pouco de dificuldade, o anfitrião abre a garrafa de vinho, despejando parte do precioso líquidoem duas taças de cristal previamente escolhidas para este fim. Após fechar a garrafa, serve um dos copos para Elise, enchendo a sua taça logo em seguida.
O vinho não tinha nada de excepcional, tratando-se apenas um excelente vinho branco do Reno. O mesmo fora comprado numa adega no vilarejo mais próximo,e posto para resfriar, horas atrás. Com gestos inicialmente hesitantes, tornando-se gradualmente precisos, Faustus se serve, começando com a entrada de queijos, acompanhados com pão branco e molho de ervas finas, passando o prato à sua companheira.

Como de costume, Faustus come muito pouco, mais preocupado em apreciar a beleza de sua linda amada do que com a comida em si. Afinal de contas, ela era a razão de sua alegria, de sua vida... Sem ela, aquele jantar careceria de todo o sentido, assim como a sua vida.
Após o seu anfitrião e amado começar-se a servir, Elise faz o mesmo, manuseando os talheres com precisão, embora os seus movimentos fossem algo mecânicos. O jovem alemão fita a sua adorada companheira com ternura e uma certa condescendência. Tanta coisa se passara nestes últimos 12 meses. Ele, junto com sua inseparável parceira, conhecera tudo que o mundo poderia oferecer: a glória, o triunfo, promessas de felicidade, a dor da tragédia, o medo, o desespero, o ódio... mas, sobretudo, o gosto de transcender os os seus limites e se tornar algo maior do que si mesmo. Ao pegar a faca para cortar o pão e o queijo à sua frente, o médico parece perdido no emaranhado de lembranças recentes.

Por um instante, tem a impressão de que a faca que está segurando é um bitsuri cirúrgico todo manchado de sangue e o pedaço de queijo assume as formas úmidas e algo gordurosas de um órgão humano. Sorrindo com o canto da boca como se zombasse do súbito devaneio, Faustus VIII guarda os talheres no canto do prato e pega o guardanapo de pano para limpar a sua boca. Elise nada diz, apenas fitando o seu anfitrião com seus olhos penetrantes, enquanto ingere um trago da singular bebida que lhe foi oferecida.

(Início do Flashback):

Um grande hospital particular numa cidade da Alemanha. Dez e Meia da Noite. Há exatamente um ano atrás...

Pare, Doktor Faustus, é inútil! Não percebe? Não temos mais como ajudar Elise! – Ecoa uma voz exasperada na sala de UTI do enorme complexo médico, pertencente ao Herr Doktor Krause, o médico-chefe do plantão daquela noite e colega de Faustus na faculdade.

Era evidente a inutilidade da equipe médica em prosseguir com quaisquer esforços. Os cirurgeões e enfermeiros presentes estavam apenas ali, na vã tentativa de trazer o jovem colega à realidade, acompanhando, importentes, a tragédia consumada.

Por favor, me deixem tentar, me deixem tentar! Ela pode ser salva! Ela ainda não está morta! ELA NÃO ESTÁ MORTAAA! – Chorava convulsivamente um nervoso e transtornado Faustus , tentando agarrar os instrumentos cirúrgicos que poderiam salvar aquela vida... Se aquele disparo fatal de arma de fogo não tivesse atingido um ponto vital vital como a cabeça.

Assim que ele adentrou no hospital com aquele corpo inerte e todocoberto de vermelho, criou-se um pandemônio. Os funcionários de plantão bem que tentaram impedir a entrada do jovem doutor e da "paciente" na UTI, mas foi humanamente impossível. Além de estar desorientado física e emocionalmente, por mais que fosse absurda a situação, Faustus era um dos médicos mais talentosos e conceituados que já haviam atuado naquele hospital.

Por favor, retirem-no daqui e o levem para enfermaria! Enfermeira, passe-lhe um calmante! Enfermeiro-chefe, por favor, leve este corpo para a sala de necropsia. – Vendo a inutilidade de argumentar com o transtornado médico, o cirurgião-chefe resolve fazer o óbvio, apenas aquilo que estava no seu alcance, de uma forma até ríspida mas necessária.

A um gesto seu, dois enfermeiros começam a transportar aquele corpo imóvelpara os procedimentos médicos finais, enquanto Faustus é contido por dois médicos colegas seus, com muita dificuldade.

O que estão fazendo, seus loucos? Me larguem, idiotas! Elise, por favor... fale comigo!... Minha Elise! Não, não quero sair! Não quero sair! - Debatia-se Faustus VIII,dando mais trabalho aos seus colegas que sua aparência frágil supostamente sugeria.

Elise nada responde. Afinal de contas, estava definitivamente morta, tendo a sua cabeça varada por um tiro na testa. Justo no dia em que a clínica particular de seu amado iria ser inaugurada.
Tal fora o estado em que um atônito Faustus a encontrara, cerca de duas horas atrás, quando ele tinha retornado para atender a uma consulta de emergência, tendo deixado apenas Elise e o seu cachorro no local.
Recusando-se a acreditar nas evidências da fatalidade consumada, Faustus liga para o hospital aonde estava trabalhando até então e logo em seguida, corre a toda velocidade para lá, com o seu automóvel levando o corpo ensangüentado de sua jovem esposa. Mas,era tarde demais.
Um choro agudo e desesperado rompe a barreira entre o passado e presente, se fazendo ouvir de forma nítida nos corredores da enorme construção pintada com um opressivo branco. Consternados e sentindo-se impotentes, os seus colegas de profissão, os enfermeiros, o pessoal da faxina e demais presentes nada respondem.
Pois nada havia mais a ser feito.
Com muita dificuldade, os dois médicos colegas de Faustus conseguem retirá-lo da sala de cirurgia, encaminhando para uma outra aonde ele pudesse se recuperar do choque. Em seguida, ele é sedado com uma injeção de um poderoso medicamento antidepressivo, enquanto é inutilmente consolado por um de seus colegas, o mesmo Doutor Krause.
Porém, por mais que entendesse a dor da perda e o sentimento de revolta, Krause pouco podia fazer. Afinal de contas, por mais habilidosos que fossem, médicos eram apenas humildes agentes designados pela Providência Divina para apenas adiar aquilo que costuma ser a única certeza da vida de um ser humano:

A Morte.

E a dama negra havia vencido. Mais uma vez. Destroçando sonhos, esperanças e uma vida que era toda especial. Vencido pela dor que tomava conta de todo o seu ser, pelo esgotamento nervoso e pelos efeitos sedativos da injeção aplicada às pressas, Faustus VIII mergulha num sono sem sonhos: Negro e escuro como a noite, enquanto lágrimas amargas escorrem de seus olhos carentes de luz e de brilho. Pois a luz de sua vida tinha acabado de se esvair para sempre.

Horas mais tarde...

A madrugada havia entradonas suas horas finais eHerr doktor Krause fuma nervosamente um cigarro, andando em círculos no interior da sala que servia de seu escritório no gigantesco complexo médico.
Diferentemente de Faustus, Krause tinha uma compleição mais baixa, mais atlética e um rasgo de vivacidade emanava de seus olhos negros. Ainda que um princípio de calvície fizesse-se sentir na sua cabeleira, ele ainda era uma pessoa atraente, por volta de seus quase trinta anos.
Gostava de uma vida ativa, com prática de diversos esportes, o que unicamente destoava com o seu apego ao tabaco. Krause tinha sido um dos raros colegas de Faustus que havia conseguido obter a sua amizade, durante a os anos passados na faculdade de medicina. Tendo freqüentado a mesma sala, ele tinha uma bagagem cultural e uma conversa capazes de encantar e entreter o jovem loiro - tido como excêntrico, desligado e arredio entre seus colegas.

Era para ele - Krause - ter comparecido na inauguração da nova clínica de seu amigo. Contudo, os seus deveres de médico responsável pela UTI do maior hospital da cidade - bem como sua agenda social hiper-apertada - o impediram de confirmar presença. Voltando à dura realidade do presente, o veterano médico contempla, impotente, a suntuosa garrafa de champanhe francês, devidamente embrulhada para presente, bem como um outro pacote, adornado com fitas douradas. Seriam os presentes que ele iria entregar para o seu amigo e a companheira dele, desejando-lhes sucesso e felicidade.

Porém, aquele momento mágico havia desaparecido, antes mesmo de começar. E, para sempre. Como ele poderia imaginar que reencontraria aquela jovem de olhar encantador e modos hiper-educados que conhecera, daquele jeito? Imóvel, totalmente ensangüentada e sem vida? Eadivinhar que aquilo que se configurava ser o prelúdio de uma nova vida se transformar num martíriohorrível?
A vida tinha seus momentos injustos e cruéis e aquele instante era um deles. Seu colega e amigo Faustus VIII dormia de forma inquieta, num divã, como se tentasse resistir aos efeitos do medicamento que lhe foi ministrado. A monotonia do ambiente apenas é quebrada com um bater de porta, seco e discreto.

Por favor, entre. – Responde o doutor, sem tirar os olhos do papel que estava manuseando no momento.

Acabamos de fazer o laudo do óbito da paciente, Herr Krause. O Doktor Faustus... – Pergunta, de forma hesitante, o funcionário do hospital, justamente o responsável pelo setor de autópsias.

Deixe comigo. Infelizmente ele não está em condições de recebê-lo.

O servidor entrega o documento e se retira. Krause assina de uma só penada o lúgubre documento que confirmava a causa mortis de Elise: Ferimento causado por arma de fogo. Palavras meramente técnicas que não refletiam a dimensão da tragédia.

Pelo laudo, a jovem esposa de Faustus foi morta instantaneamente por causa de um disparo de uma pistola calibre 9 mm. A bala - de alta velocidade - atravessou o crânio, abrindo um horrível buraco na parte posterior da cabeça, jogando fora pedaços de pele, sangue e massa encefálica. O disparo foi preciso e feito a uma distância de não mais que três metros. Segundo o documento de óbito, não havia outras marcas de violência na vítima, seja de ordem física ou sexual. E pela distância, seria improvável que Elise tivesse tido tempo de reagir ao latrocida.
Krause suspira, ao mesmo tempo inconformado e frustrado. Ele sabia de antemão que ele e Faustus teriam uma longa e estressante conversa com o delegado da cidade, em breve.
Pela ótica legal, Faustus jamais deveria ter removido o corpo por conta, antes que a polícia chegasse no local e fizesse o seu trabalho. Mas... quem disse que o seu amigo iria esperar os policiais chegarem – atrasados como sempre?
Aquilo prometia ser uma conversa desgastante e no fundo, infrutífera. O máximo que os técnicos do departamento de polícia podiam fazer seria no sentido de determinar os possíveis motivos do assassinato e especular sobre pistas que levassem sobre a real identidade do latrocida.

Tendo terminado a cruel tarefa de assinar o laudo, o amigo de Faustus apanha uma agenda telefônica com capa de couro e começa a checar os números contidos lá. Havia muitas coisas a serem feitas, e como o único amigo do infeliz colega, caberia a ele a dolorosa tarefa de informar os familiares e conhecidos do mesmo, bem como providenciar um enterro digno para Eliza. Tentando escolher mentalmente as palavras mais apropriadas – se é que isto era possível – Krause começa a discar lentamente o telefone.


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