Essência escrita por Andy


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Você tem a sua Essência, aquilo que te torna único(a) dentre todas as pessoas do planeta. Qual é o valor disso para você? Responda depois de ler "Essência".



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“Idiotas, idiotas...!” – eu as xingava mentalmente, enquanto corria desenfreada, as lágrimas já surgindo em meus olhos. “Idiota, idiota...!” – agora o xingamento passara para o singular, e eu sabia que era direcionado a apenas uma pessoa: eu mesma. Porque era assim que eu me sentia naquele momento. Uma completa idiota.

  Passei pelos portões da reserva ambiental correndo, sem que qualquer dos guardas me parasse. Eu costumava correr sempre por ali, era algo de que eu realmente gostava muito. Eles me conheciam. E eu passara rápido demais para que eles notassem a minha expressão ou as lágrimas que escorriam por meu rosto.

  Quando me vi dentro da reserva, na larga trilha que havia ali, reduzi um pouco o ritmo, meus olhos passeando entre as árvores, procurando aquilo. “Aquilo” era uma pedra que marcava um pequeno caminho através do bosque: minha trilha particular. Tendo finalmente encontrado-a, suspirei aliviada e comecei a correr novamente, agora por entre as árvores.

  Correr era bom. O movimento, a velocidade, a sensação de estar fugindo me consolavam. Eu gostava disso e da maneira como eu era rápida; certamente muito mais rápida e ágil que qualquer uma delas. O pensamento me fez acelerar ainda mais, como se eu estivesse tentando provar aquilo.

  Finalmente me vi na clareira que procurava. Na minha clareira. Bem ao centro dela, havia uma pedra chata, que parecia não se decidir entre ser redonda ou retangular, ficando no formato de uma espécie estranha de polígono cujo nome eu não saberia definir. Não saberia nem dizer quantos lados tinha aquela coisa. Sorri entre as lágrimas comigo mesma, sem saber bem o motivo. Caminhei para a pedra estranha e me sentei nela, mal ofegando por causa da corrida – aquilo não tinha sido nada, eu já correra distâncias mais longas (e muito mais rapidamente) antes.

  Com um suspiro, entreguei-me de vez à tristeza que naquele momento preenchia todo o meu ser. Mesmo os pensamentos que normalmente me animariam (era sexta-feira, nós teríamos pizza no jantar, não tinha deveres do colégio...) não estavam funcionando naquele momento. Isso porque eu estava cansada; eu sempre relutava muito em chorar, dificilmente deixava-me deprimir, mas não tinha mais condições, não havia mais força em mim para suportar. Eu precisava desabafar; o acúmulo de choros contidos agora era uma dor física em meu peito. Meu nome agora pericia uma ironia; eu não me sentia nada "Felicie".

  Meus soluços eram altos, e eu devia estar horrível, com o rosto vermelho por causa de uma mescla de esforço e choro, e os cabelos desgrenhados pelo vento durante a corrida até aquele lugar. Não tinha importância. Ninguém me ouviria, ninguém me incomodaria ali. Minhas únicas companhias eram as árvores, as flores e os passarinhos do bosque amigo.

  Por que as coisas tinham que ser assim? Por que eu tinha que ser um alien? Por que eu não podia ser que nem as outras pessoas e gostar daquilo de que todos gostam, daquilo que todos conhecem? Por que eu tinha que ser diferente? Uma aberração... Uma deslocada, uma intrusa que não pertencia àquele lugar, e tampouco pertencia a qualquer outro lugar. Por quê?

  No colégio ninguém me queria por perto. Eles não diziam nada, mas os olhares deles diziam tudo. Isso quando olhavam para mim, porque na maior parte das vezes eles me ignoravam e me davam as costas, me excluindo. Eu queria que gritassem. Que me xingassem. Que me expulsassem dali. Qualquer coisa, menos aquele ostracismo.

  O que mais doía era que minha melhor amiga estava entre eles. Ela certamente via o que faziam comigo e como me sintia desconfortável, mas não fazia nada. Ela os deixava fazer tudo isso, como se me colocasse no grupo forçadamente (porque estava claro para mim que só me aceitavam sem dizer nada porque eu sou a melhor amiga dela), e me tirasse da reconfortante solidão – reconfortante, porque era assim que ela me parecia naqueles dias –, apenas para me deixar sofrer. Provavelmente, ela pensava que estava me ajudando. Até parece. Se aquilo continuasse, eu teria que implorar para ela parar de me chamar. Deixe-me em paz enquanto você estiver com eles; enquanto você não for a garota que eu conheço. Enquanto você for uma estranha.

  Uma estranha. Minha melhor amiga. É, eu estava sozinha mesmo.

  Se é que isso era possível, o fluxo de minhas lágrimas estava ficando mais intenso. Elas não saíam rápido o suficiente para acompanhar o ritmo da dor guardada que agora eu deixava sair.

  O pior de tudo era que eu não podia fazer nada. Já fizera tudo que estava ao meu alcance. Por mais que eu tentasse me interessar pelos assuntos deles, por mais que eu tentasse ouvir suas músicas, ver seus seriados, me informar a respeito de seus artistas preferidos... Não dava. Não conseguia viver assim. Eu não posso fingir ser algo que eu não sou. Provavelmente meus amigos verdadeiros (alguns dos quais nem sequer conheço os rostos, pois nos falamos apenas por internet) me diriam para continuar sendo eu mesma. Mas eu sentia que ser eu mesma não era o suficiente; e, no entanto era tudo que eu podia fazer. Não posso contrariar minha verdadeira natureza, não posso mudar o que sou. Tudo o que me restava era continuar sendo eu mesma e buscar desesperadamente ser aceita. Era terrível.

  Os soluços sacudiam meu peito. Parecia que algo estava me rasgando por dentro. Eu não sabia que a solidão era tão dolorosa. Não, não era a solidão. Eu gosto da solidão. Ela não te critica, ela não te machuca, ela não te julga. A solidão é uma amiga. Ela vinha sendo minha melhor amiga ultimamente. Afinal, não era para isso que eu tinha corrido tanto e tão loucamente até ali? Não, não era a solidão que doía. Era a solidão forçada. Rejeição. Exclusão. Exílio. Qualquer uma dessas palavras deve ser a certa.

  Não sei ao certo há quanto tempo estava ali. O sol estava descendo, logo estaria se pondo, parecia que foram várias horas. Meu estômago doía, fazendo um barulho alto, mas eu o ignorava. As lágrimas ainda escorriam de meus olhos, embora agora lentamente. Começava a me perguntar se algum dia seria capaz de parar de chorar. Por que isso mexia tanto comigo? Logo eu, que nunca fui de me importar com a opinião das pessoas?

  Afastei do meu rosto o cabelo castanho claro e ondulado que grudara nele. Abri minha bolsa, tirando do caminho o celular desligado, sem nem me importar em ligá-lo para saber se alguém estava me procurando. Eu sabia que ninguém estaria. O celular é um mero objeto para mim, sem qualquer utilidade. Ninguém nunca me liga. Finalmente encontrei o que procurava. Um espelho.

  A garota no espelho estava com seus olhos verdes-musgo agora vermelhos de tanto chorar. Ela estava horrível, seus cabelos totalmente despenteados caindo tristemente em volta de seu rosto inchado.

  Balancei a cabeça tristemente para o objeto em minhas mãos e o atirei de novo na bolsa, continuando a chorar, agora o fluxo de lágrimas voltando a escorrer mais intensamente, impulsionado pela visão de minha imagem deplorável.

  Estava com a cabeça entre as mãos, tentando conter as lágrimas. Eu queria, mas não podia ficar ali para sempre. Já estava começando a me sentir fraca por causa da fome, e o parque não ficaria aberto até muito depois do crepúsculo. Logo teria que voltar.

  Algo se moveu em algum lugar nas árvores à minha frente, sobressaltando-me. Não há muitos animais terrestres por aqui, apenas alguns coelhos e esquilos, porém o que estava fazendo aquele barulho com certeza era algo muito maior. O som parecia o de passos triturando as folhas secas. Uma pessoa. Na minha clareira. Provavelmente a ideia me deixaria irritada, se eu não estivesse tão assustada.

  Prendi a respiração, rezando para que não me encontrassem, torcendo para que, quem quer que fosse, passasse direito e me deixasse em paz.  Mas parecia que seria totalmente em vão. O som vinha diretamente para o lugar onde eu estava, como se soubesse que eu estava ali

  – Eu sei que você está aí, me ami. – a voz gentil e doce da mulher pareceu ecoar meus pensamentos, como se os conhecesse.

  Eu estava totalmente sem reação. O que devia fazer agora?

  Ela finalmente alcançou a clareira, sorrindo complacentemente para mim. Era bonita. Sua pele era branca como a neve do inverno francês. Era alta e elegante, e seus olhos verdes não exibiam nada além de pura bondade. Ela me inspirava paz e tranquilidade. A única coisa estranha nela eram seus cabelos, que exibiam um tom de verde semelhante ao dos olhos, porém mais brilhante.

  – Bonjour, Felicie! – meus olhos se arregalaram ao ouvir o meu nome. De onde eu a conhecia?

  – B-Bonjour. – minha voz era quase um sussurro.

  – Pardon, eu a assustei? – ela se ajoelhou suavemente à minha frente, seu rosto ficando à altura do meu. Estendeu a mão para meu rosto, e eu não me esquivei. Por algum motivo, não sentia medo dela como deveria. – Eu só vim porque seu choro estava incomodando às árvores. – uma leve brisa passou, derrubando várias folhas secas sobre nós.

  – Incomodando... às... árvores?

  – Oui. – ela continuava com a mão em meu rosto, olhando para mim com seus olhos gentis.

  O que ela dizia não fazia muito sentido para mim, mas eu me levantei devagar, fazendo com que ela tirasse a mão de meu rosto:

  – Eu... Pardon, não queria incomodar a ninguém. Já estou indo embora. – as palavras agora saíam rápidas, urgentes. De repente me sentia com pressa.

  – Não, não, querida! Não foi isso o que eu quis dizer. As árvores se sentem incomodadas porque você está triste. Elas gostam de você.

  – Elas...? – não consegui completar a frase.

  – Você vem aqui desde pequena, não é? Estas árvores gostam muito de você, como a uma amiga. E elas sabem que você também gosta delas.

  – Você... Fala com...? Quem é você? – resolvi mudar a pergunta, questionando o que realmente queria saber.

  – Vai acreditar em mim se eu contar? – (hesitantemente, confirmei com a cabeça, e ela sorriu) – Não, eu acho que não vai. Mas tudo bem. Eu sou Nature

  – É um nome bonit... – comecei, porém ela me interrompeu.

  – Não, me ami, você não entendeu. Eu sou Nature. – ela deu mais ênfase à palavra desta vez.

  Franzi a testa por um momento, tentando entender. Nature...?
  Alguns momentos depois meus olhos se iluminaram com a compreensão.

  – Quer dizer... Você é... A natureza? Criadora de tudo que está à nossa volta?

  – Bom, eu sou a personificação da natureza, sim. Não a criadora, mas a guardiã de tudo isto. – ela fez um gesto amplo, e eu sabia que ela não se referia apenas àquele bosque, mas a todo o verde do mundo, todo lugar onde houvesse vida. Tudo. – Você acredita em mim, Felicie?

  – Oui. – respondi, e era verdade; não sei por que, no entanto eu acreditava nela com todo meu coração. Ela sorriu com a minha resposta.

  – Merci! – seu tom era aliviado. – Hnm... Um passarinho me contou que você está com fome. – ela fez uma pausa e acrescentou. – Literalmente. – eu ri, sabendo que não era mentira dela.

  Meu estômago roncou alto, me fazendo corar. Ela olhou para mim gentilmente.

  – Venha, me ami, vamos comer alguma coisa.

  – Onde? Costuma ter um pipoqueiro na entrada do parque, mas... – parei quando ela começou a rir.

  – Não, não, nada de pipoca... Vamos comer algo mais saudável. – fiz uma careta. Quando minha mãe falava em coisas “saudáveis”, normalmente era algo com um gosto horrível. Meu estômago se contraiu mais uma vez; imaginei que àquela altura eu comeria qualquer coisa, e acharia delicioso.

  Nós andamos através das árvores, cada vez mais e mais fundo dentro do bosque. Comecei a ficar apreensiva: eu confiava em Nature, mas se algo acontecesse ou eu me perdesse, eu não saberia como voltar sozinha. Justamente quando eu pensava nisso, um coelho marrom surgiu de um arbusto e começou a andar ao meu lado.

  – Hnm... Nature, temos um amiguinho aqui.

   – O quê? – ela parou, virando-se para ver de que se tratava. – O que você quer, petit lapin? – disse, pondo a mão nos joelhos e abaixando-se para olhar o coelhinho. Ela ficou algum tempo em silêncio, inclinando a cabeça como se estivesse ouvindo algo, e depois sorriu. – Ah! Felicie vai gostar disso.

  – O que ele disse?

  – Ele disse que percebeu que você está meio nervosa de vir tão fundo no bosque, então ele veio para lhe fazer companhia, assim você não se perderá.

  – Merci... – falei baixinho, emocionada, abaixando-me para fazer carinho atrás das orelhas do coelho, que fechou os olhos como se estivesse gostando quando eu o acariciei. – Como funciona isso? – perguntei à Nature. – Eles falam com você?

  – Mais ou menos isso... Eu leio suas emoções e as interpreto. No fundo, é quase a mesma coisa que falar.  – ela deu de ombros. – A diferença é que as emoções não mentem, a fala pode mentir.

  – E o meu nome? Como você o sabia?

  – Eu estava em cima de uma árvore observando você um dia – (ela me lançou um olhar de desculpas) – E você disse para si mesma “Ora, deixe de ser boba, Felicie!”. Foi assim que eu soube.

  – Você ficava me observando com frequência?

  – Não, na verdade não. Foi coincidência eu estar aqui neste bosque... Você sabe, eu não fico só neste bosque o tempo inteiro... Quando percebi que as árvores em torno daquela campina estavam felizes, e pareciam estar tentando proteger algo que estava perto delas, fiquei curiosa, pensando que estivessem assistindo ao nascimento de algum animal ou algo assim, e resolvi ir ver. Era você. Elas gostam mesmo de você. – ela estava à minha frente, portanto eu não podia ver seu rosto, mas podia ouvir o sorriso contido em sua voz. Ela parecia estar sempre feliz, sorrindo.

  Fiquei quieta, absorvendo tudo aquilo, e Nature não me interrompeu. Só enquanto caminhávamos foi que eu reparei nas roupas dela: era uma espécie de túnica grega branca, parecida com aquelas daqueles desenhos que havia no meu livro de História do colégio. Fiquei me perguntando o que isso queria dizer, até que não resisti a perguntar:

  – Nature, você...

  – Hnm?

  – Por acaso você seria... Uma deusa grega?

  – Por q...? Ah! Por causa da minha túnica?

  – É... Eu pensei que talvez...

  – Bom, faz sentido. Mas não, não sou uma deusa grega. – seu tom era gentil como sempre. – Eu escolhi estas roupas apenas porque me pareceram confortáveis, quando eu estive na Grécia Antiga. Desde então não encontrei nenhuma roupa melhor.

  Certo. Ela esteve na Grécia Antiga. Achei que seria indelicado perguntar quantos anos ela tinha, então apenas continuei andando, calada.

  Já estava escuro agora. Isso devia estar me deixando nervosa, mas por incrível que pareça não estava. Tudo era tão calmo ali, e a presença de Nature me passava uma segurança tão grande... Eu não cheguei nem a pensar sobre meus pais, se eles estariam preocupados por eu ainda não ter voltado. Simplesmente, naquele momento parecia que só existia o bosque ao meu redor e a personificação da natureza à minha frente; mais nada importava. Nada, nem mesmo a tristeza que tinha me levado até ali naquele dia. Tudo isso pertencia a outro mundo.

  Não sei precisar por quanto tempo nós andamos até que eu ouvisse um leve burburinho à nossa frente. O som me era familiar, mas não correspondia àquele bosque para mim.

  – Isso é...? Água corrente?

  – É sim, de um pequeno riacho logo à frente. Imagino que esteja com sede depois daquela correria e desta caminhada?

  Até ela tocar no assunto, eu não estava sentindo sede. No entanto, assim que ela falou aquilo, senti minha garganta ardendo, seca.

  – Oui, estou com sede mesmo.

  – Então eu acho que escolhi o lugar certo. – ela sorriu.

  Andamos apenas por mais alguns minutos, até que ela parou. Afastando-se, abriu caminho para que eu passasse por entre duas grandes árvores secas:

  – Vá em frente, s'il vous plaît.

  – Merci. – agradecendo, passei por ela para encontrar um dos mais belos lugares que já vira em toda a minha vida.

  Havia ali uma pequena abertura entre duas rochas da parede, de onde escorria uma água cristalina – a nascente do riacho, percebi. Às suas margens, a grama, onde não estava coberta pelas folhas secas de tom avermelhado, era de um verde que eu nunca vira igual. Iluminado à luz da lua, que estava completamente cheia naquela noite, o richo cintilava, dando ao lugar um aspecto mágico. E havia ali àrvores com frutos bem vermelhos...

  – Les pommes! – exclamei, minha boca salivando à visão dos meus frutos preferidos da estação.

  – Você gosta? – a pergunta dela era desnecessária, mas imaginei que ela estivesse apenas sendo educada ao fazê-la.

  – Oui! Adoro!

  – Bom, neste caso, sirva-se à vontade. Pode comer quantas quiser. E pode beber da água do riacho também se quiser; garanto que será a água mais pura que já bebeu em toda a sua vida. – dizendo isso, Nature dirigiu-se a uma das árvores, onde pegou uma maçã, e depois se sentou à beira do riacho, olhando a água corrente. O pequeno coelho, que tinha mesmo nos seguido até ali, aproximou-se dela e deitou com a cabeça sobre seu colo. Com a mão livre, ela começou a acariciá-lo.

  Primeiro, eu ajoelhei-me ao lado dela, pegando água com as mãos em concha e bebendo. Era deliciosa, fresca e de um gosto diferente: o gosto da pureza que só podia ser encontrada ali, na nascente. Como a mulher dissera, era diferente de qualquer água que eu já tinha bebido antes. Bebi até saciar minha sede, e um pouco mais.

  Depois, corri até as macieiras, onde peguei três das frutas mais vermelhas que havia ali. Lavei-as no riacho, embora não parecesse realmente necessário fazê-lo, e comecei a comer avidamente, de repente com tanta fome que mal conseguia mastigar direito antes de engolir.

  – É lindo, não é? – eu já estava terminando a segunda maçã quando Nature falou.

  – Oui. – concordei. Eu não sabia se ela se referia ao riacho, àquele lugar ou ao bosque inteiro. Não importava; tudo era lindo ali. – Não sabia que tinha um riacho neste bosque...

  – A maioria das pessoas não vem tão longe para saber disso. Nem mesmo as pessoas que trabalham na reserva vêm aqui com frequência...

  – Faz sentido. Eu estou completamente perdida. Se você me largar aqui, não saberei como voltar. – eu ri de leve, mas um tanto nervosa. Aquilo era verdade mesmo.

  – Não se preocupe, não farei isso. E você tem seu amiguinho aqui. – ela apontou para o coelho que dormia no colo dela.

  – É verdade. – sorri, todo o nervosismo deixado de lado.

  Ficamos quietas mais um pouco, enquanto eu comia a terceira maçã, agora mais calmamente, apreciando o sabor. Eu nunca tinha provado frutas tão saborosas. Já tinha devorado metade da última quando Nature falou novamente:

  – Então, Felicie... Por que estava chorando tanto antes?

  – Eu... – parei, tentando encontrar as palavras certas. – Eu acho que as pessoas não gostam de mim.

  – Como assim? – pela primeira vez, o rosto daquela mulher de cabelos verdes não estava alegre ou sorridente; ela estava franzindo a testa, confusa, tentando compreender.

  Então eu lhe contei tudo o que estava acontecendo no colégio – a maneira como me tratavam e como eu me sentia com relação a isso. Eu não sabia por que confiava tanto nela; mas confiava. Por fim, conclui:

  – Sabe, eu acho que ser eu mesma não é mais o bastante. Eu nunca vou ser aceita assim.

  Nature não respondeu; seu rosto estava sério, e ela parecia imersa em pensamentos. Achei melhor não interrompê-la. O tempo ia se passando, e eu me perguntava que horas devia ser. Com certeza o parque já tinha fechado. Isso certamente era um problema, porém estranhamente não chegou a me preocupar. Estava pensando sobre isso, quando a mulher ao meu lado tirou delicadamente o coelhinho de seu colo e se levantou. Eu olhei para ela, imaginando se deveria me levantar também.

  – Felicie, eu posso ajudar-te com seu problema. – o rosto dela estava completamente austero, assim como sua voz. Ela não estava brincando.

  – C-Como...? – minha voz falhou, de repente ficando com medo.

  Nature começou a andar de um lado para o outro enquanto falava:

  – Há muito tempo, eu ganhei um poder. – ela fez uma pausa, mas eu sabia que não esperava uma resposta. Provavelmente, queria me dar um tempo para entender suas palavras. – Me foi permitido que a cada século eu realizasse um desejo de alguém que achasse que merecia. Ainda não realizei o desejo de ninguém, em nenhum século até hoje. – olhando para mim, ela sorriu de leve, sem muito humor: – Ninguém fez por merecer. Mas você, Felicie, é diferente. Eu vi como as árvores gostam de você, e o carinho que você tem por este bosque, pela natureza de um modo geral. Você é diferente dos outros humanos que encontrei, os quais esperavam ter tudo da natureza, e em troca lhe davam apenas destruição. – ela parou, olhando para mim; seu olhar era carinhoso novamente.

  Eu engoli em seco. Que resposta ela estava esperando?

  – Eu acho que você merece que eu realize seu desejo. Você quer se encaixar; não ser mais, como você disse, “um alien”. Quer ser igual a todas as outras garotas da sua idade. É isso mesmo?

  Não pensei antes de responder. Não precisava pensar mais:

  – Oui.

  – Nesse caso, eu posso te dar o que você quer. Você será exatamente como todas as outras. Gostará das mesmas coisas, falará sobre os mesmo assuntos, se vestirá e pensará do mesmo jeito que elas.

  Eu olhava atentamente para ela. Meus olhos verdes-musgo estavam se enchendo de lágrimas, cujo motivo eu não entendia, enquanto piscava várias vezes para combatê-las.

  – Mas, como tudo na vida, isso terá um preço.

  – Você... Vai pedir minha alma em troca? – as palavras saíram da minha boca, antes que eu pudesse segurá-las.

  Nature riu levemente:

  – Não, não! Você anda vendo ficção demais, me ami!

  – Então... Qual é o preço?

  – Você deve desistir de tudo aquilo o que você é.

  – Desistir de... Tudo o que eu sou? – perguntei, arregalando os olhos.

  – Isso mesmo.

  – E-Eu...

  – Calma. – ela me interrompeu, antes que eu pudesse falar qualquer coisa. O que na verdade foi bom, porque eu não sabia o que falar. – Não precisa decidir agora. Vamos voltar para aquela clareira primeiro, e lá você me diz sua decisão. Está bem assim? – Nature me estendeu a mão.

  – O-Oui... – respondi, aceitando a ajuda e me levantando.

  Enquanto andávamos no escuro caminho através das árvores, eventualmente entrecortado pela luz da lua, eu pensava na proposta dela. Desistir de tudo o que eu sou... Isso não soava bem. Quero dizer, se eu desistisse de tudo o que eu sou... Significaria simplesmente não ser mais eu. Será que eu realmente queria isso?

  Desta vez ela não falou comigo durante todo o percurso, deixando que eu me concentrasse em meus pensamentos. Era uma decisão tão complicada... De um lado, a aceitação que eu tanto queria; do outro, todo o meu ser, a minha essência. Poderia eu decidir?

  Foi aí que comecei a pensar: de que adiantaria ser aceita por todos, ser finalmente bem-vinda no grupo, se não fosse eu? De que adiantaria me tornar outra pessoa para agradá-los? Seria mesmo essa a chave para a felicidade? Parecia-me que havia algo de muito errado nessa história. A equação não estava equilibrada.

  Eu estava tão imersa em meus pensamentos que o tempo pareceu passar mais rápido agora na volta. Quero dizer, eu seria capaz de jurar que na caminhada de ida para o riacho tínhamos andado muito mais. Quando dei por mim, já estava novamente reconhecendo as árvores à nossa volta, e soube que meu tempo estava acabando. Não importava; a decisão já estava tomada. Porque não havia realmente uma escolha ali.

  Quando enfim alcançamos a minha clareira, Nature fez sinal para que eu me sentasse, e eu obedeci. Esperei que ela fosse imediatamente me perguntar qual tinha sido minha decisão, mas não foi bem assim. Ela primeiro deu uma volta por ali, afagando de leve os troncos das árvores. Eu me perguntei o que ela estava fazendo; consultando-as, talvez?

  Passou-se cerca de cinco minutos, até que a mulher de cabelos esverdeados parou à minha frente, e olhou para mim, séria:

  – Então, Felicie... Acredito que você já tenha tido tempo suficiente para decidir... – ela parecia apreensiva; não era como se ela estivesse prestes a me dar algo que eu queria, mas sim algo que ela sabia que eu não queria de verdade, e não pudesse me dizer nada quanto a isso.

  – Oui. – assenti com firmeza, decidida.

  – Então... Qual é a sua decisão? – ela estava agora falando ainda mais baixo que o normal, e se não fosse pelo silêncio total do bosque (pensando nisso agora, parecia que tudo ali, as árvores, os animais e até mesmo o vento, decidiram ficar quietos de repente, esperando por minha resposta), eu não seria capaz de ouvi-la.

  – Eu... – fiz uma pausa, tentando escolher as palavras – Pardon, Nature, mas eu não posso desistir de tudo o que eu sou por uma bobagem dessas. Isso seria quase o mesmo que deixar de existir, talvez até pior. Porque mesmo que eu ficasse feliz com isso... Não seria eu, entende? Então, pardon, mas eu vou abrir mão do meu desejo. Guarde-o para alguém que precise mais dele do que eu. – dizendo isso, sorri para ela.

  Nature não foi capaz nem de disfarçar seu alívio perante minha resposta:

  – Tem certeza? – um sorriso enorme estava estampado em seu rosto. – Quero dizer, você sabe que não poderá fazer nenhum outro desejo para mim, não sabe, me ami? Na verdade, é pouco provável que eu a veja de novo...

  – Oui, tenho certeza. – e tinha mesmo. Porém a última frase dela fez o sorriso desaparecer do meu rosto: – Mas eu gostaria de poder vê-la de novo...

  – Eu lamento, mas não é possível, Felicie. Mesmo que daqui a alguns anos eu volte a este bosque, eu não posso aparecer duas vezes para o mesmo ser humano. Nem que eu estivesse andando bem ao seu lado você seria capaz de me ver ou ouvir. – (ela fez uma pausa, avaliando minha expressão; provavelmente, parecia que eu estava à beira das lágrimas) – Mas não se esqueça dos seus outros amigos... – (Nature fez um gesto amplo, envolvendo não só aquela clareira, e sim todo o bosque) – Eles sempre estarão aqui para você.

  – Oui. – assenti, mordendo o lábio para não cair no choro.

  – Bom... Acho que agora é hora de você voltar para casa, não é? Seus pais devem estar preocupados...

  – É verdade. – admiti, sentindo uma pontada de culpa; eu nunca tinha ficado fora de casa até tão tarde sem dar notícias antes.

  – E acredito que precisará de uma ajudinha para sair do parque, certo? – ela sorriu de leve, o mais perto de sarcástica que ela chegara a ser.

  – S’il vous plaît.

  – Nesse caso... Ligue seu celular. – Nature estava séria, de modo que eu pude perceber que aquilo não era uma piada, como parecia. Fiz o que ela mandou, sem nem me preocupar em verificar chamadas perdidas ou mensagens não lidas. – Muito bem, agora feche seus olhos. – eu fechei meus olhos, e senti sua mão fria tocar minha testa, enquanto ela murmurava alguma coisa ininteligível.

  No segundo seguinte, quando reabri meus olhos, eu estava correndo. Quero dizer, eu estava correndo mesmo, como louca. A surpresa foi tão grande que eu pisei em falso e por pouco não caí de cara no chão. Conseguindo recuperar o equilíbrio, olhei em volta aturdida. Eu estava de volta à rua do parque, sua entrada pouco à frente. O sol ainda estava relativamente alto no céu, provavelmente eram umas 14h30min agora. Pisquei, confusa. Não era noite, há menos de um minuto?

  Devagar, aproximei-me dos portões do parque, e falei com um dos guardas:

  – Pardon, monsieur, poderia me dizer que dia é hoje?

  – Bonjour, Felicie! – ele me chamou pelo nome, me reconhecendo porque eu ia muito ali. – Hoje é dia cinco de outubro. – meus olhos se arregalaram quando ele respondeu.

  – M-Merci. – agradeci, atônita, e me dirigi ao único lugar para o qual parecia adequado ir naquele momento: minha clareira.

  Ela tinha me feito voltar no tempo. Isso com certeza era um poder muito grande. Mas fiquei realmente grata por aquilo; agora eu não precisava mais derramar tantas lágrimas desnecessariamente, e ainda ia evitar deixar meus pais preocupados à toa.

  Ainda tonta com tudo isso, cheguei à clareira e sentei na pedra ao centro. Eu não sabia o que pensar; parecia que as últimas horas... Não, aquelas horas (porque, como eu tinha voltado, elas não deviam ser consideradas as “últimas horas”, mas horas à parte, separadas daquele dia e de qualquer outro dia), tinham sido parte de um sonho. Um sonho estranho, mas que eu jamais esqueceria.

  Estava justamente pensando sobre isso quando meu celular tocou, sobressaltando-me. Eu não me lembrava de tê-lo ligado, e demorei um pouco a entender: Nature tinha me dito para fazer isso. Eu peguei o aparelho na minha bolsa e olhei no visor, surpreendendo-me ao ver quem era: Clarisse. Uma das garotas do colégio. Pensei por alguns segundos, então resolvi atender:

 – Allô!

 – Felicie? – ela perguntou. Nunca entendi por que as pessoas ligam no celular, e ainda perguntam quem é.

  – Oui.

  – Ah, até que enfim resolveu aparecer! Estava todo mundo louco atrás de você!

  – Todo mundo quem? – a surpresa em minha voz poderia até parecer exagerada aos ouvidos dela, mas era verdadeira.

  – Eu, a Anabelle, a Bianca, a Mirelle... Você sabe, todo mundo!

  – P-Por quê...?

  – A gente precisa de você! Onde mais a gente vai encontrar outra amiga louca por computação para nos ajudar com o nosso blog? Além disso, estava faltando uma doidinha igual a você... Quero dizer, uma pessoa “diferente” na equipe! Vem já para a minha casa, garota!

  Assim que assimilei o significado daquelas palavras, meus olhos se encheram de lágrimas, que imediatamente começaram a escorrer. Consegui, por pouco, controlar a histeria por tempo o suficiente para dizer, com a voz embargada pela emoção:

  – Oui, já estou indo, mes ami.

  – Então tá, estamos te esperando. – Clarisse desligou.

  Assim que ela desligou, deixei o celular cair no fofo cobertor de folhas secas que cobria o chão, e depois eu mesma caí...  No choro. No entanto, desta vez eu não chorava porque estava sofrendo, aquelas lágrimas não eram de tristeza. O alívio e a alegria se misturavam de uma forma estranha em meu peito.

  – Elas... Elas precisam de mim... Elas... Elas me querem no grupo... Pelo que eu sou...! – eu comecei a rir entre as lágrimas, enquanto murmurava isso para mim mesma e... Para as minhas amigas árvores que me cercavam. – Elas me aceitaram... Elas... – e neste ponto interrompi-me, minha expressão novamente demonstrando surpresa. Surpresa, não; choque. Finalmente, a conclusão óbvia me chegou: – Elas... Naquela hora... Elas estavam me procurando! E se eu tivess... – não consegui concluir meu pensamento. A agitação, o pânico retardado que me tomaram foram tão grandes que me fizeram levantar de um salto. Só para depois cair de joelhos, chorando mais forte agora. – Merci... Merci...! – eu não saberia dizer ao certo a quem estava agradecendo. Talvez a mim mesma, por ter sido capaz de tomar a decisão certa? Talvez a Nature, por ter me ensinado aquela lição tão preciosa? Talvez a ambas?

  Fiquei chorando naquela mescla de alívio, pânico, alegria e gratidão por mais algum tempo, até que finalmente consegui me recompor. Então, levantando-me, corri para a árvore mais próxima e a abracei:

  – Merci, me ami! Até mais... – dizendo isso, me virei, limpando a poeira das roupas, e me dirigi à saída da clareira.

  Estava quase chegando aos portões do parque, quando meu celular tocou outra vez. Eu o atendi:

  – Allô?

  – Õ Felicie, onde você está? – desta vez, a voz era da Anabelle. – Está todo mundo preocupado aqui! Você sabe onde é a casa da Clarisse, não sabe? Não se perdeu, não é?

  – Pardon, Anabellle. Eu já estou chegando... Tinha que resolver uma coisa.

  – Bom, então é melhor você vir voando, entendeu? Senão a gente vai atrás de você!

  Eu ri, me sentindo plenamente feliz naquele momento:

  – Pode deixar, serei rápida como uma raposa do outono!

  – Então até daqui a pouco.

  – Até.

  Assim que guardei o aparelho na minha bolsa, criei asas e disparei pelos portões do parque, novamente correndo com todas as minhas forças. Mas desta vez eu não estava chorando, estava rindo; não me sentia como se estivesse num pesadelo, e sim num sonho. Devia estar parecendo louca, correndo e rindo daquele jeito pelas ruas francesas. Porém, naquele momento, isso não importava nem um pouco; naquele momento, eu estava grata justamente por isso: por ser diferente.


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Notas finais do capítulo

Essa é uma das minhas histórias preferidas, dentre as que escrevi - modéstia à parte, é claro. Gosto muito da mensagem que ela passa e tudo o mais. Se você é uma dessas pessoas que, como a Felicie, não tem medo de ser você mesmo, mesmo quando isso é assustador, parabéns! Você tem a minha admiração!

Mas o que VOCÊ achou de "Essência"? Eu quero muito saber a sua opinião, ela é muito importante para mim! Tanto elogios quanto críticas são muito bem-vindos. Então, comente! S'il vous plâit?

De qualquer forma, obrigada por ler!
SakuraHime



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