1997 escrita por N_blackie


Capítulo 74
Samantha




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Havia certa liberdade no perigo, quando se parava de se importar com consequências. Foi pensando nisso que Sam, cansada de ouvir planejamentos e promessas de vingança dos amigos, decidiu sair e dar uma volta. Não importava mais se fosse pega ou não.

A primeira coisa que pensara quando vira o jornal falando da morte de Harry fora “esse não é o meu irmão”. A foto era dele, mas a ideia de que agora era a irmã mais velha lhe dava calafrios, além da impressão de que nunca conseguiria fazer a função como ele. Não que Violet precisasse. Dentre as grandes perdas causadas por aqueles tempos sombrios estava a inocência dela.

O sol se pusera havia horas, e a lua cheia era um lembrete torturante de que, em algum lugar, seus pais estavam presos no escuro, sofrendo e passando frio, sem saber que o filho estava morto. O Lago Negro se estendia como um espelho na grama úmida, cercado pela floresta e suas criaturas. De longe, ela viu a movimentação noturna das águas, e podia jurar que vira uma cabeça submergindo. Daria qualquer coisa para entrar naquele lago e ver aqueles sereianos de perto.

Com esse pensamento, seus pés simplesmente a guiaram para lá, e quando atingiu a margem, sentou-se ali. Não havia ninguém por perto, nem para o bem, nem para o mal. Ninguém para lhe encher a paciência sobre luto, como se soubesse como ela se sentia. Ninguém sabia como ela se sentia. Ninguém jamais saberia.

A silhueta do castelo, que tantas alegrias já lhe trouxera, agora só lhe fazia sentir presa. De certa forma era como de Hogwarts a tivesse traído. Chegara lá com esperança e empolgação, e passara anos em busca de glória entre aquelas paredes. Não queria ser conhecida para sempre como filha de James Potter, tampouco como a irmã de Harry Potter. Não era “a menina mais velha de Lily”, e nem a irmã mais velha de Violet. Era Samantha. Tinha um nome, e tinha um talento. Jogar quadribol.

Esperara anos para Harry se formar e sair do posto de capitão do time. Ela, muito mais do que ele, merecia isso. Era seu sonho, jogar profissionalmente. Em sua cabeça estava tudo planejado. A família sabia, e lhe dava apoio.

Mesmo Harry.

Agora que estava tudo acabado, só sobrava a tristeza, e o sentimento de que todos os seus planos não eram nada perto do que estava acontecendo. Sentia falta de quadribol. A vassoura era uma extensão de seu corpo, a goles, parte de suas mãos. Fazia piruetas, fintas, passadas espetaculares, e se fechasse bem os olhos, ouviria nitidamente os gritos da torcida quando entrava em campo. Amava a glória do quadribol.

Nada disso tinha a mesma graça sem a sua família, contudo.

Frustrada, bateu na praia de cascalho na qual estava sentada, como se pudesse descontar nelas a raiva pelo seu futuro perdido. Pegou uma pedra e jogou. O lago respondeu, impassível, com ondulações.

Jogou outra.

E outra.

Agora furiosa, Sam pegou a maior pedra que conseguia carregar com a mão, e jogou com tudo no lago. Então, bem no fundo da água, algo refletiu contra a lua.

Intrigada, parou de brigar com o lago e se ajoelhou, se aproximando da superfície até a ponta do nariz umedecer. Havia algo dentro do lago.

Apressada, tirou os sapatos e as meias, agradecendo pelo uniforme dos trouxas ter uma calça em vez de saias. Apertou o cabelo preso. Ia mesmo mergulhar?

Outro flash de luminosidade tirou suas dúvidas.

Queria saber o que tinha lá dentro.

Prendeu a respiração, e mergulhou. Para seu espanto, seus ouvidos se encheram de uma música linda, cantada por um coral distante, mas tão belo que Sam quase esqueceu o motivo que a levava ali. Abriu os olhos, mas só viu o escuro ao seu redor. Parou para tentar se orientar, mas não podia aguentar muito mais tempo ali.

Sua garganta fechou, e começou a nadar para a superfície o mais rápido que podia. Era sério que ela só conseguia passar um mísero minuto sem respirar? Irritada, ofegou quando o oxigênio voltou aos seus pulmões.

De olhos fechados, respirou o quanto podia, e um galope chamou sua atenção. Ah, não.

“Boa noite, Potter.” Um homem moreno, de olhos azuis profundos, lhe encarava da margem. Seus cascos estavam parados perto dos sapatos de Sam, e a cada patada que ele dava para os lados ameaçavam acabar com o único par dela. Assustada, ainda meio submersa, cumprimentou o centauro.

“Boa noite, senhor. Te incomodei?”

“É difícil não ouvir o som de um nado... Quando se vive na floresta.”

“Hm, desculpa. Samantha Potter.”

“Eu sei quem você é. Firenze.”

“Firenze.” Repetiu, se sentindo meio tola por estar ali, nadando cachorrinho para não afundar, na frente de um centauro. Ele virou a cabeça, intrigado.

“O que está tentando fazer?”

“Acho que vi alguma coisa no fundo.”

“Sereianos vivem no fundo.”

“Eu sei, mas não isso... Tem outra coisa aqui embaixo. O senhor sabe o que é?”

Em silêncio, o centauro ficou pensativo, e olhou para o céu. “Marte está vermelho hoje.”

Hein?

Sam não sabia o que responder, mas para não perder a confiança dele – tê-la já era um milagre, pois Sam já ouvira falar que centauros eram muito desconfiados de humanos – olhou para o céu e repetiu. “É, bem vermelho. Sabe como posso ir pro fundo?”

“Marte está anormalmente vermelho.” Firenze assentiu para si mesmo. “Isso não é bom.”

“Realmente, é péssimo. Sabe o que também é péssimo, Firenze?”

“O que dizia?”

“Quero ir pro fundo.” Sam se esforçou para não pular no pescoço do centauro e chacoalha-lo. Presta atenção em mim! Pensou. Firenze voltou a encará-la, e então se ajoelhou. Era uma visão estranhamente bonita, pois ele dobrava as compridas pernas para frente, abaixando-se graciosamente até a margem em que estava. Sam sentiu algo roçar em suas pernas, e tentou se concentrar no centauro para ignorar que aquele podia ter sido um tentáculo na lula gigante.

“Gelricho. Planta nobre. “Firenze recolheu um mato que brotava logo abaixo da superfície, no limiar entre o solo descoberto e o submerso. Sam franziu a testa, e ele se estendeu um pouco. “Vamos, pegue.”

“E isso vai me ajudar?” Sam nadou desajeitadamente até ele, se arrependendo quando uma parte de seu corpo começou a sair da água. Merlin, que frio insuportável.

“Saturno dá voltas em torno do Sol.” Foi a resposta confusa. Firenze sorriu. “Se confiar que ele sempre fará isso, todos os seus planos se realizarão.”

“Hum, obrigada, acho. O que eu faço com isso?” Pegou o mato da mão delicada dele, e ficou encarando a plantinha. Cheirou, e Firenze negou com a cabeça. Então, com uma careta de nojo, pôs um pouco na boca.

Mastigou aquele negócio borrachento e úmido amaldiçoando todos os parentes do centauro, e desejando que ele sim tivesse que comer aquilo todo dia. Devia ser comida de centauro. Com certeza ele me enganou, pensou.

Engoliu com os olhos postos desafiadoramente no centauro, mas antes que pudesse xingá-lo por aquela sacanagem, sentiu –se completamente sem ar. Ah, não, esse cara me envenenou!

Suas mãos imediatamente voaram para a garganta, e quando Sam tentou agarrar a traqueia, não conseguiu separar os dedos. Se debatendo, estendeu-as diante de si, e se assustou quando viu que membranas nasciam por entre seus dedos, grudando-os como pés de pato trouxas. Quando voltou a apertar o pescoço, guelras tinham nascido.

Firenze ainda sorria, e Sam o agradeceu com um sorriso de volta. Virara um peixe!

Respirou fundo, e mergulhou novamente, mas logo percebeu que não fazia diferença se estava com a respiração suspensa ou não. Podia ver tudo embaixo do lago. E respirar.

Era como um sonho.

Ouviu a música tocando, e com seus olhos modificados conseguiu enxergar um grupo de sereianos que cantarolava próximo a um portão de coral, provavelmente em guarda contra estranhos como ela. Queria se aproximar, mas não sabia a língua deles. Queria que Violet e Harry estivessem ali para ver isso, e imediatamente se contraiu ao pensar no irmão.

Desviando o olhar para não sofrer mais, procurou pelo brilho, e viu-o novamente mais para o fundo. Determinada, bateu os pés.

O brilho foi ficando mais opaco, e o fundo, mais nítido. Samantha estava até sorrindo, algo que mão fazia há tempos. Quando começou a chegar perto, viu um pé.

Assustada, parou imediatamente, e usou suas mãos especiais para se afastar daquilo. O pé estava vestido com um sapato chique, e dava continuação para uma perna, também com uma calça chique. Sam piscou, chegando com cautela mais para frente. O homem usava um terno preto, e a gravata branca flutuava como o balançar da água. Sam se aproximou mais, respirando fundo para se acalmar. Aquilo era um cadáver. Ok, Samantha, ar entra, ar sai, você consegue, repetia mentalmente.

A cabeça de cabelos negros estava virada para o outro lado, mas Sam não queria nadar mais longe. Queria sair correndo dali. Olhou em volta, e achou um graveto particularmente grosso, que pegou. Tremendo e com bolhas de ar saindo o mais rápido possível de sua boca, cutucou o corpo, que saiu um pouco do lugar e ficou mais mole. A cabeça, como num filme de terror dos trouxas, começou a virar.

O grito de Sam ficou engasgado pela água profunda. Ali, no fundo do Lago Negro, estava Don Baron, ex-chefe do Departamento de Mistérios, e em sua boca escancarada e azul, uma caixa com as iniciais dos Pettigrew.


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